Mulheres

Suprema Corte dos Estados Unidos pode reverter decisão que há 50 anos garantiu direito ao aborto às mulheres

Erika Andreassy, da Secretaria de Mulheres do PSTU and Marina Cintra, de São Paulo (SP)

11 de maio de 2022
star0 (0 avaliações)
Mulheres protestam contra retrocesso nos EUA

Por Marina Cintra e Érika Andreassy, da Secretaria Nacional de Mulheres do PSTU

Segundo um rascunho de parecer que vazou para a imprensa no último dia 2 de maio, a Suprema Corte dos Estados Unidos está prestes a reverter a decisão histórica que garantiu o direito ao aborto às mulheres no país em 1973.

A divulgação do documento provocou imediatamente uma onda de manifestações contra essa nova decisão judicial, que, se for confirmada, representará um retrocesso de 50 anos nos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.

Roe vs Wade e a legalização do aborto nos EUA

No início dos anos de 1970, em meio ao ascenso das lutas feministas que levou milhares às ruas nos Estados Unidos exigindo igualdade, a Suprema Corte do país reconheceu o direito das mulheres ao aborto, numa decisão histórica sobre o caso que ficou conhecido como Roe vs Wade.

A decisão, que se deu em base ao argumento do direito da mulher à privacidade, ocorreu após “Jane Roe”, pseudônimo de Norma McCorvey, processar o Estado do Texas por negá-la o acesso ao procedimento. Representado pelo então promotor distrital local, Henry Wade, o Texas perdeu a ação federal. Com isso, não apenas a interrupção legal da gravidez foi assegurada em todo país, como o direito da mulher de decidir sobre seu próprio corpo foi reconhecido.

A conquista, contudo, nunca foi unanimidade. Os conservadores jamais aceitaram a derrota e, ao longo das décadas seguintes, uma ofensiva foi desatada, incluindo ataques a clínicas, médicos e mulheres pelos movimentos anti-aborto. O tema também foi alvo de debates nas campanhas eleitorais, especialmente as presidenciais, sendo que o apoio a candidatos republicanos foi condicionado, muitas vezes, pelo seu posicionamento contra o aborto, na esperança de modificar a composição da Suprema Corte – o que finalmente foi conseguido com a nomeação de mais uma juíza de perfil conservador, em 2020, pelo então presidente Donald Trump –, e assim, conseguir derrubar a decisão Roe vs Wade.

Ofensiva conservadora não reflete opinião pública

Segundo levantamento realizado em abril pela ABC News/Washington Post, 58% dos norte-americanos defendem que o aborto seja legal em todos ou na maioria dos casos, e para 7 em cada 10 pessoas, a decisão de abortar deve ser da mulher e do seu médico, contra 24%, que dizem que o procedimento deveria ser regulamentado por lei. Mesmo entre aqueles que se dizem contrários à legalização, 41% também afirmam que a decisão deve ser da mulher e do médico. Além disso, 57% são contrários a diminuir o tempo de gestação para se ter direito ao aborto para 15 semanas.

Mas, em que pese a maioria absoluta da opinião pública ser favorável, as investidas dos conservadores se intensificaram nos últimos anos. Somente em 2021, quase 600 restrições ao aborto foram introduzidas em todo o país, com 90 delas promulgadas em lei. Um dos casos mais notórios foi o do Texas, que tentou limitar a interrupção da gravidez a 6 semanas de gestação, quando as mulheres muitas vezes nem sabem que estão grávidas, além de impor incentivos financeiros a denúncias de profissionais de saúde que realizem aborto, o que foi derrubado pela Suprema Corte.

Já Oklahoma, que se transformou em refúgio para muitas texanas que buscavam pelo procedimento de forma segura, também criminalizou ou aborto, exceto em emergências médicas, e ainda impôs multas de até 100 mil dólares e 10 anos de prisão para quem realizar o procedimento por outras razões.

Agora, a situação é pior ainda, pois, caso a Suprema Corte derrube a decisão, o aborto pode ser banido imediatamente em 25 dos 50 estados do país. Outros 3 não proibiriam, mas não contariam com legislações que o assegurasse. Isso tem levado os movimentos sociais a convocarem manifestações em defesa da garantia desse direito às mulheres. No último dia 5, diversas organizações progressistas e de defesa dos direitos das mulheres chamaram uma mobilização para o dia 14 de maio. Pelo menos quatro grandes protestos:  em Washington, Nova York, Chicago e Los Angeles, e centenas de concentrações em todo o país já estão sendo construídos.

Maré verde

A ameaça ao aborto livre e seguro nos EUA vai na contramão da maré verde latino-americana, onde o ascenso das lutas das mulheres já garantiu a descriminalização e/ou legalização do procedimento na Argentina, Mexico, Colômbia e Chile, além da descriminalização em casos de estupro no Equador. Em especial a Argentina, cujo país foi varrido por amplas manifestações de mulheres e homens com seus lenços verdes exigindo a legalização do aborto, numa luta importantíssima que vem irradiando por todo o continente e, mais recentemente, a Colômbia que conquistou a legalização do aborto até a 24ª semana de gestação.

Se por um lado o caso Roe vs Wade, assim como os processos recentes na América Latina, evidenciam a possibilidade de conquistas democráticas para as mulheres e os setores oprimidos, como o direito ao aborto; leis contra a violência doméstica e os feminicídio; casamento gay; criminalização da LGBTIfobia; entre outros; conquistas essas quase sempre fruto de intensas lutas; a ofensiva sobre o aborto nos Estados Unidos e a possibilidade de reversão da decisão que há 50 anos assegurou o direito ao aborto às mulheres no país, demonstram que, no capitalismo, nunca esses direitos estão assegurados permanentemente. Passa ano, muda governo ou a correlação de forças se torna desfavorável do ponto de vista institucional, e são colocados em xeque, especialmente em momentos de crise e polarização social e política como estamos vivendo no mundo.

Sistema capitalista e direitos democráticos

No capitalismo, os direitos e conquistas democráticas das mulheres estão sempre ameaçados, pois a opressão, longe de ser uma excepcionalidade, é funcional ao sistema. Por meio da opressão, a burguesia mantém a classe trabalhadora dividida e fragmentada, e também pode superexplorar parcelas inteiras da classe (mulheres, negros, imigrantes, etc.) e ainda mantém um exército especial de reserva (as mulheres trabalhadoras), que tira e põe do mercado de trabalho de acordo com suas necessidades.

Evidentemente, não são apenas as mulheres trabalhadoras ou os setores oprimidos da nossa classe que sofrem com a opressão e a falta de direitos, e é essa contradição que explica por que, muitas vezes, setores burgueses e pequeno-burgueses ou parcelas da intelectualidade, se colocam à frente das lutas e desempenham papel de direção de movimentos em defesa da igualdade. Contudo, ao limitarem o programa de tais movimentos à obtenção de conquistas nos marcos do capitalismo, que sustenta e reproduz as opressões e as ideologias burguesas que as justificam, levam a luta para um beco sem saída, já que a igualdade só pode se efetivar de verdade suprimindo o sistema de exploração que sustenta as opressões.

É a falta dessa perspectiva de classes, socialista e revolucionária o principal limite de muitas direções e movimentos, que mesmo mobilizando muita gente, acabam na prática impedindo que essas lutas extrapolem as margens burguesas, canalizando toda a energia dos lutadores para estratégias eleitorais. Exatamente como fez  o Partido Democrata com as lutas contra a violência policial aos negros na esteira das manifestações contra o assassinato de George Floyd, e a eleição de Biden, que já iniciou uma campanha para angariar votos das mulheres nas próximas eleições, ou para questões como representatividade, empoderamento, etc. E porque leis aprovadas há tantos anos, como a do Caso Roe versus Wade, possam ser revertidas pela simples mudança na composição da Corte Suprema dos Estados Unidos.

Um direito democrático e uma questão de saúde pública

A maioria das mulheres que abortam nos EUA são negras (38,4), possuem entre 20 e 29 anos (57%), tem filhos (60%), são solteiras (46%), vivem com uma renda média abaixo ao do nível de pobreza (49%) e nunca realizaram um aborto antes.  O instituto americano Guttmacher, uma organização de pesquisa que apoia o acesso ao aborto, divulgou que em 2017 o número de abortos foi quase 50% do número de 1990. Isso se deve, entre outras causas, ao maior acesso a orientações contraceptivas, pois, quando o procedimento é realizado por uma equipe médica preparada, existe a preocupação de não haver recorrências, diferente de um aborto clandestino.

O acesso a métodos contraceptivos eficientes e seguros é a verdadeira ação de promoção a vida que um governo pode ter, e não interferindo no direito particular de cada mulher decidir sobre seu futuro e seu corpo. Isso porque os métodos usados pela maioria das mulheres no mundo ainda têm taxas de falha de até 7 a 8%, fazendo com que um significativo número das gestações seja indesejado. O direito ao aborto, além de um direito às mulheres é também uma questão de saúde pública.

Pelo direito das mulheres de decidir

A revogação da decisão sobre Roe vs Wade pela Suprema Corte dos EUA representa um enorme retrocesso para as mulheres, especialmente para as mulheres pobres e negras da classe trabalhadora, por isso nos colocamos veemente contra esse ataque, pois entendemos que, assim como a conquista da legalização do aborto na Argentina, Colômbia, Chile, etc.,  fortalece a nossa luta, a perda de uma conquista como essa nos EUA fortalece os setores reacionários, de Bolsonaro e da ultradireita na ofensiva contra nossos direitos. Nesse sentido, nos solidarizamos e nos colocamos ao lado das mulheres e homens norte-americanos na luta pela manutenção desse direito. Ao mesmo tempo que reafirmamos a necessidade de vincular essa luta a uma estratégia de destruição do sistema capitalista, numa perspectiva socialista e revolucionária, para que, superando esse sistema de exploração e opressão, possamos avançar para a emancipação e a real igualdade e liberdade das mulheres em se autodeterminar, em base a outras relações, mais humanas e saudáveis.

Apoio e solidariedade à luta das mulheres estadunidenses contra esse ataque! Não aceitamos nenhum retrocesso na lei! E lutemos também pela legalização do aborto seguro e gratuito no Brasil e em toda América Latina!

Declaração de Lula não reflete os governos do PT

No mês passado, Lula (PT) afirmou que o aborto deve ser tratado como uma questão de saúde pública e um direito que todas as mulheres deveriam ter. Para ele, quem mais sofre com a proibição são as mulheres pobres, que não têm acesso a métodos seguros. A declaração causou a fúria de setores da igreja evangélica e Lula foi repreendido pela coordenação da campanha que tenta negociar o apoio desses setores.

Vale ressaltar que Lula e o PT comandaram o país durante 14 anos e, durante esse período, nenhuma palha foi movida pela legalização do aborto, pelo contrário, o governo chegou a retirar do Congresso Nacional um projeto de lei que propunha a legalização. E em troca do apoio evangélico à sua candidatura em 2010, Dilma “vendeu” a pauta do aborto e outras ligadas à questão LGBTI, com a Carta aberta ao povo de Deus, no qual assumia o compromisso de, caso eleita, fazer da família o foco principal de seu governo.

A declaração de Lula vem num momento em que a maré verde varre a América Latina e nada mais é do que um aceno às mulheres que cada vez mais vem lutando por seus direitos no país, mas nada indica que se for eleito priorizará essa pauta, ainda mais tendo como vice Geraldo Alckmin, um reacionário abertamente contrário ao aborto. Nós, que sempre defendemos a legalização do aborto, dizemos que só podemos confiar em nossa própria organização e luta, é dessa forma que arrancaremos o direito das mulheres de decidir sobre seus corpos. A campanha da Vera a presidente está a serviço desse programa e dessas lutas.