Nacional

A crise de segurança pública no Rio Grande do Norte

Maria Costa

12 de abril de 2023
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Ataques no Rio Grande do Norte

Maria Costa, do Rio de Janeiro (RJ)

No dia 14 de março último foi deflagrada, por uma facção criminosa, o Sindicato do Crime (SDC), uma onda de ataques a instituições públicas e privadas em várias cidades do Rio Grande do Norte (RN). Ônibus, um Fórum de Justiça, bases da PM, uma Prefeitura, estações de trem e um banco foram incendiados ou atacados a tiros. Foram registradas cerca de 300 ocorrências em dez dias, em pelo menos 39 cidades. Os ataques foram deflagrados, segundo comunicado do SDC, em protesto contra as condições degradantes e desumanas dos presídios, exigindo maior acesso a visitas e o fim da proibição das visitas íntimas.

O que é o Sindicato do Crime

É uma facção que surgiu por volta de 2013 nos presídios do Rio Grande do Norte a partir de dissidências do Primeiro Comando da Capital (PCC), por atritos em sua própria cúpula no estado, mas também por uma grande resistência às regras internas e ao modo de atuação do PCC. Atualmente é a facção dominante no RN, controla a esmagadora maioria dos presídios e tem cerca de 4 mil membros.

As facções criminosas no Brasil

Segundo o Anuário de Segurança Pública de 2022 existem 53 facções no Brasil (não estão contabilizadas as milícias), quase todas se organizam em nível estadual, à exceção do PCC e do Comando Vermelho (CV), que atuam em vários estados.

Ainda que tenham origem na resposta às condições desumanas nos presídios, as facções evoluíram para se tornar organizações dedicadas a negócios capitalistas ilegais, especialmente o tráfico de drogas, mas também tráfico de armas e de seres humanos, assaltos, contrabando, garimpo ilegal etc.. Seu objetivo central é o lucro.

Ao serem negócios ilegais, a disputa de mercado não se dá pelos mecanismos normais dos negócios legais. A conquista de territórios e rotas de transporte muitas vezes se dá pela via armada, o que não exclui que se façam pactos e negociações entre facções.

As guerras entre facções criminosas geram ondas de violência que aterrorizam as populações, fazem disparar o número de homicídios, com muitas vítimas de bala perdida. Além disso, muitas vezes as facções oprimem e aterrorizam as pessoas que vivem nos territórios que dominam.

Escolas do crime

As condições desumanas dos presídios do Rio Grande do Norte

As condições às quais estão sistematicamente sujeitos os presos no RN seriam consideradas criminosas até em estabelecimentos que abrigam animais. Apresentamos apenas algumas das situações apontadas pelo relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) publicado neste ano:

Superlotação: déficit de 2.100 vagas, o caso mais dramático é o da penitenciária de Alcaçuz, que tem 967 vagas, mas 1.846 presos; celas para 16 pessoas chegam a ter 60, e numa cela individual estavam nove pessoas.

Falta de higiene: o estado proíbe o uso de papel higiênico, a água só está disponível nas celas por 20-30min., três vezes ao dia, para ingestão, higienização das roupas, das celas e higiene pessoal. Inúmeras celas têm vasos entupidos.

Fome e sede: a alimentação fornecida é imprópria para o consumo, com odor fétido que causava enjoo assim que as tampas das marmitas eram retiradas. As famílias são proibidas de levar comida. Os presos não têm onde estocar a pouca água que é disponibilizada, por exemplo, as nove pessoas na cela individual só tinham dois tubos de shampoo vazios para armazenar água.

Disseminação proposital de doenças: pessoas com tuberculose ativa, muitas vezes escarrando sangue, ficam em celas superlotadas e sem ventilação; pacientes com sarna e furúnculos não têm acesso a tratamento.

Tortura: inúmeros presos apresentam lesões provocadas por balas de borracha; é comum o uso de spray de pimenta dentro das celas. Há pessoas obrigadas a dormir sem colchão, mesmo havendo colchões disponíveis.

LGBTIfobia: na cadeia de Ceará Mirim, as LGBTI não têm acesso a banho de sol nunca.

Denúncias como essas não são de agora. Há inúmeros relatórios mais antigos que reportam as mesmas condições, que são de amplo conhecimento dos sucessivos governos, inclusive da atual governadora Fátima Bezerra, do PT.

Saiba mais

Como surgiram as facções no Brasil?

Tanto o Comando Vermelho (CV) quanto o PCC surgiram a partir da organização de presos contra as condições desumanas das prisões. Relatos sobre a vida no presídio da Ilha Grande, “Caldeirão do Diabo”, onde surgiu o CV em 1974, são elucidativos. “A cadeia, construída para abrigar 540 presos, está superlotada. Os 1.284 homens encarcerados ali no ano de 1979 se vestem como mendigos. Lutam por um prato extra de comida. Disputam a facadas um maço de cigarros ou uma ‘bagana’ de maconha”, descreve Carlos Amorim, autor do livro “Comando Vermelho, a história secreta do crime organizado”.

Quatorze anos mais tarde, a história se repetiria no estado de São Paulo, desta vez não só motivada pela desumanidade das prisões, como também em resposta ao Massacre do Carandiru.

Para além da criação de regras internas que amenizam a brutalidade do convívio nas prisões (como a proibição de estupros e de uso de crack), as facções procuram se financiar, e enriquecer, com cobrança de mensalidades e recorrendo a atividades criminosas.

Culpa do Estado

Expansão das facções, a lei de drogas e o encarceramento em massa

O Estado brasileiro não só cria as condições que estimulam a organização de presos para fazer frente à situação desumana em que se encontram, como garante o fornecimento de um exército humano cada vez maior a serviço dessas facções.

Como podemos ver nos gráficos, após a aprovação da lei de drogas, em 2006, houve um aumento exponencial do número de presos, o qual se deu fundamentalmente à custa dos presos por tráfico de drogas, na sua maioria jovens, negros e pobres.

A lei de drogas despenaliza o consumo, mas não apresenta definições objetivas para distinguir entre usuário e traficante, ficando essa diferenciação a cargo dos critérios do policial que prende em flagrante e do juiz que condena. Na prática, os negros jovens e pobres são enquadrados com traficantes, e os brancos de classe média como usuários. A lei endureceu a penalização do tráfico e passou a determinar que a pena seja sempre cumprida inicialmente em regime fechado.

Na rota do tráfico

O Brasil no mercado internacional de drogas

O Brasil é o terceiro maior consumidor do mundo de cocaína e seus derivados (crack) – atrás dos EUA e do continente europeu. O Brasil é atualmente a principal rota de exportação de cocaína para a Europa, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU). A maioria esmagadora da cocaína sai do país escondida em contentores, a partir dos portos nacionais. A guerra fratricida de facções no Norte e no Nordeste do Brasil está relacionada também à disputa pelo controle dos portos e dos lucros astronômicos da exportação de cocaína.

Prender traficantes não acaba com o tráfico

O tráfico de drogas, especialmente o de cocaína, é um dos negócios mais rentáveis do mundo. O dinheiro gerado pelo lucro do tráfico não fica guardado debaixo de colchão, vai para os grandes bancos, vai para a economia legal e garante a fortuna de muitos bilionários que não fazem nem ideia do que seja uma favela. Segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), cerca de 75% das receitas do crime organizado são lavadas no sistema financeiro, o que seria equivalente a 2,7% do PIB global (2,1%-4%). Atualmente isso corresponderia a US$ 2,6 trilhões.

O crime organizado salvou os grandes bancos na crise econômica de 2008. É o que afirmou Antônio Maria Costa, chefe do UNODC, ao jornal Financial Times: “O dinheiro das drogas no valor de bilhões de dólares manteve o sistema financeiro à tona no auge da crise global (…) o único capital de investimento líquido disponível para alguns bancos à beira do colapso no ano passado. (…) Como resultado, a maioria dos US$ 352 bilhões em lucros com drogas foi absorvida pelo sistema econômico.”

Com a persistência da crise financeira desde 2008 e a escassez de liquidez, a avidez do sistema financeiro pelos lucros do crime organizado só aumenta.

Documentos vazados do FinCen, órgão de fiscalização do Departamento do Tesouro Americano, em 2020 revelam como lucros da guerra entre cartéis de drogas vão para os fundos de bancos como JPMorgan Chase, HSBC e Deutsche Bank. O HSBC admitiu recentemente lavar dinheiro dos grandes cartéis mexicanos e foi condenado a uma multa de alguns milhões de dólares. Nenhum diretor do banco foi preso, e o HSBC segue funcionando normalmente.

O que fazer?

Como acabar com o tráfico de drogas

Antes de mais nada, no RN é fundamental diminuir a população carcerária e garantir condições de vida dignas aos presos, inclusive para reduzir a influência das facções entre os presos. É possível fazer um mutirão no Judiciário para diminuir o número de presos (acelerar os julgamentos dos presos provisórios e garantir progressão de pena, por exemplo). É preciso investigar e punir os responsáveis pela tortura física e psicológica dos presos. Mas essas são medidas de curto prazo. O tráfico de drogas é um negócio que dá lucros astronômicos, não para os traficantes das periferias, mas para grandes bilionários e grandes bancos. A única forma de acabar com a violência gerada pelo tráfico é legalizando a produção, mercado e consumo de drogas, sob controle dos trabalhadores. Garantir que os lucros são estatais e não de grandes bilionários, e que uma parte desses lucros seja investida na prevenção e tratamento da dependência química.