Negros

24 de agosto mostrou o caminho: tomar as ruas para barrar o rastro de sangue deixado pela violência racista

Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

1 de setembro de 2023
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Ato em SP contra o genocídio negro Foto Sergio Koei

No dia 24 de agosto, negros, negras e seus aliados nos movimentos sociais, populares, sindicais, estudantis e partidos políticos saíram às ruas em 24 estados e mais de 30 cidades do país, em protesto contra a onda de chacinas, mortes e violência policial que têm deixado um rastro de sangue negro, pobre e periférico no Brasil.

Os atos começaram a ser organizados no início do mês, quando, em uma única semana, 45 pessoas, a quase totalidade negra, foram assassinadas em operações policiais na Bahia (19 mortos), São Paulo (16, só na Baixada Santista) e Rio de Janeiro (10). Mas, com o passar das semanas, a indignação e revolta que motivaram as primeiras reuniões somente aumentaram.

No dia 12, a menina Eloah, com apenas cinco anos, se tornou a 16ª criança carioca vitimada por armas de fogo; “doze delas vítimas de ‘balas perdidas’ [em operações policiais], que, não por acaso, quase sempre ‘encontram’ corpos pretos, pobres e periféricos”, como afirmamos no artigo publicado na época.

E, se tudo isto já não bastasse, no dia 18 ocorreu o brutal e covarde assassinato de Bernadete Pacífico, a Mãe Bernadete, ialorixá, líder do Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho (BA), e dirigente da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq). Leia artigo.

O PSTU e sua Secretaria de Negros e Negras estiveram presentes nos atos, em colunas formadas com entidades sindicais, dos movimentos populares, de luta contra as opressões filiadas à CSP-Conlutas, como o Movimento Mulheres em Luta (MML) e o Quilombo Raça e Classe, e da juventude, como o Rebeldia.

Neste artigo, para discutirmos a importância dos atos e a necessária continuidade desta luta, reproduzimos as falas de alguns destes companheiros e companheiras, que enfatizam a necessidade de travarmos esta luta com independência de classe e em relação aos governos, combinando-a com o combate à exploração capitalista, que não só cria as condições de vulnerabilidade social que alimentam a desigualdade e a violência, mas também está na raiz  repressão e das mortes, que servem aos interesses de uma burguesia desde sempre racista que se utiliza da violência como forma de controle social.

“Marchar unidos, mas com independência de classe e sem nenhuma confiança nos governos”

A jornada de lutas teve início em Salvador, às 9 horas da manhã, como uma forma de dar visibilidade para o assassinato de Mãe Bernardete. Como noticiado pelo portal G1, uma das oradoras foi Milena Oliveira, do MML. “Seguir a luta é a principal forma de manter viva a memória de Mãe Bernadete. É preciso uma apuração rigorosa, com a prisão dos mandantes e assassinos. Mãe Bernadete foi morta por lutar em defesa do seu território”, disse Milena, também como forma de denunciar a inaceitável e covarde suposição do governador petista Jerônimo Rodrigues, que levantou a hipótese de que o assassinato da ialorixá foi resultado de uma disputa de facções criminosas.

Uma insinuação vergonhosa que, na verdade, tenta lançar uma cortina de fumaça sobre uma realidade deplorável: o estado, há décadas governado pelo PT, tem a polícia mais letal do Brasil. “Estamos assistindo uma escalada da violência policial contra o povo preto e pobre em todo o país. A Bahia tem a polícia mais violenta do Brasil, apontam os dados do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ano passado, 1.464 pessoas foram mortas em ações policiais em nosso Estado. Isso tem que parar (…). É o extermínio da juventude pobre e negra sendo colocado em prática. Um verdadeiro genocídio”, disse Matheus Araújo, militante do PSTU e do Movimento Aquilombar, em Salvador.

Também no ato na capital baiana, Roberto Aguiar, da Secretaria de Negros e Negras do PSTU e do Quilombo Raça e Classe, destacou o fato de que genocídio negro também aconteça sob os governos petistas é prova inquestionável de que estamos diante de uma questão de raça e classe que precisa ser respondida através da ação direta dos movimentos, mas também com exigências aos governos estaduais e federal.

“A política de ‘guerra as drogas’ é uma desculpa esfarrapada para seguir matando os filhos da classe trabalhadora. Isto tem que acabar. Nós temos que traçar nossa luta de forma independente, como estamos fazendo, aqui, agora. É preciso seguir marchando, porque só vai ser na luta, com independência de classe, que nós iremos apontar uma verdadeira saída para este genocídio”, disse Roberto.

“Temos que cobrar do governo Lula, que em 2006, aprovou a Lei de Drogas, que hoje é usada para matar e prender os nossos jovens. Essa lei tem que ser suspensa imediatamente. Nós temos que cobrar a desmilitarização da polícia. Hoje, Jerônimo Rodrigues faz a mesma coisa que Tarcísio Freitas (Republicanos), em São Paulo, sequer querendo colocar as câmeras nos uniformes dos policiais. Nós temos que marchar unidos, mas com independência de classe. Sem nenhuma confiança nestes governos. Mãe Bernardete, presente!”, concluiu o companheiro.

“Não podemos confiar as nossas vidas nas mãos de um Estado que tem classe social e cor”

Em São Paulo, o ato na Avenida Paulista reuniu cerca de 1 mil ativistas. Falando em nome da Direção Nacional do PSTU, a companheira Vera enfatizou a necessidade da organização e da autodefesa como únicas formas de defendermos nossas vidas.

“Nós não podemos confiar as nossas vidas nas mãos de uma polícia que nos mata. Nós não podemos confiar as nossas vidas nas mãos de um Estado que mata e que encarcera. Um Estado que tem classe social, que tem cor. Você não vê um rico, um milionário, tendo sua vida ameaçada cotidianamente, como é a vida de quem é pobre e preto neste país. Garantir a segurança nos bairros tem de ser uma tarefa de quem mora lá. Nós queremos o controle dos bairros por quem mora lá”, disse Vera, que também é dirigente da Secretaria de Negros e Negras do PSTU.

 

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“Precisamos exigir que a polícia seja desmilitarizada, porque isto é um entulho da ditadura militar. E quem pode fazer isto é o governo Lula. E sabemos, também, que a polícia é dividida em classe social, por isso, defendemos, que a baixa patente também tem o direito de se organizar. O que não podemos aceitar é que a vida de um policial valha mais do que um jovem, de pai, que mora na periferia. As nossas vidas têm muita importância para nós. Para o Estado e seus governos não têm. É preciso garantir nossa segurança. Façamos isso de forma organizada, junto com as fábricas, nos bairros e em todos os cantos”, concluiu a companheira.

“Se o genocídio é histórico, a resistência também é histórica”

Também presente no ato em São Paulo, Israel Luz falou em no em nome do Quilombo Raça e Classe e do Comitê Brasilândia em Luta. “O Estado brasileiro mostrou estas últimas semanas, se ainda precisava demonstrar, que o genocídio do nosso povo, dos indígenas, da classe trabalhadora, não tem limite. Não interessa a coloração dos governos. Na Bahia foram 30; em São Paulo, 19, até agora; e, no Rio, já e quase incontável. Mas, se o genocídio é histórico, a resistência também é histórica. A Cabanagem, os Malês, Canudos e inúmeras revoltas de nosso povo mostraram o caminho”, disse o companheiro, que também é militante do PSTU.

Lutas e revoltas que devem nos servir como exemplos exatamente por terem questionado a ordem e desafiado Estado, unindo os “de baixo” contra as elites de suas épocas. “A gente precisa unir a classe trabalhadora, o povo negro, os indígenas, o pobre povo deste país pra dar uma resposta para os poderosos”, continuou Israel, lembrando, ainda, que não são só as balas que ferem nosso povo.

“Lá na Brasilândia, há vários garotos presos injustamente. Rodrigo, Samuel, Lucas, Jonathan são os nomes de alguns deles. Isto também é parte do genocídio, parte de um ataque às famílias negras e periféricas. A gente quer a desmilitarização da segurança pública. A gente não quer polícia entrando como exército de ocupação nas periferias. A gente não quer esta farsa da guerra às drogas. O ato de hoje é só o início. Um começo, de novo. Mas, um começo que a gente vai aproveitar para ir mais longe do que a gente jamais foi. Chega do sangue de nosso povo molhando o chão de nosso país”, concluiu o companheiro.

Esse foi o mesmo tom da fala de Natália Granato, militante do PSTU e do Rebeldia: juventude da revolução socialista, em Belo Horizonte (MG). “Como se não bastasse os anos de escravidão e que nos jogaram na marginalidade, ainda vemos 45 vidas negras sendo ceifadas. Isto não é ‘normal’. Nós precisamos fazer o que estamos fazendo aqui: lutar de forma unificada pela desmilitarização da PM. Mas, precisamos de uma segurança púbica que seja voltada as nossas vidas, mas não a propriedade privada”, afirmou Natália, reforçando que exatamente pelo caráter da sociedade capitalista, a luta contra o genocídio precisa também atacar a essência do sistema.

“A gente precisa confiar em nossa capacidade de auto-organização, de luta, unificada com a classe trabalhadora, com a juventude, com os movimentos populares, pra lutar por Saúde, Educação, moradia, acesso à Cultura, ao lazer. Não tem outro caminho. Mas também sabemos que tudo isto não vai se dar dentro do sistema capitalista, porque este sistema se alimenta com a nossa morte, se alimenta do tráfico de drogas, do tráfico de armas. Uma sociedade onde se possa viver plenamente não é compatível com o capitalismo. A sociedade que o povo negro precisa se chama socialismo”, concluiu a companheira.

Precisamos de um plano de lutas, unificado com todos os setores oprimidos e os trabalhadores do campo e da cidade, das aldeias e dos assentamentos”

No Rio de Janeiro, um dos oradores foi Cyro Garcia, presidente do PSTU no estado. “Essa luta tem que continuar. Essa política de segurança, que criminaliza a pobreza e que promove o genocídio do povo negro das favelas e nas periferias, é implementada no Brasil inteiro. Particularmente, aqui no Rio de Janeiro, nós estamos cansados de enterrar crianças inocentes, como é o caso de Ágata, de Thiago Flausino, de João Paulo, da Eloah e de tantos outros. Essa política de guerra drogas é uma farsa, que chacina e mata no país inteiro”, disse Cyro.

Lembrando, também, que isto não tem sido uma exclusividade da extrema direita, como, lamentavelmente, ficou evidente na Bahia, Cyro criticou as “heranças” deixadas pelos mandatos anteriores de Lula. “Não dá pra falar do braço armado do Estado, sem falar em que dirige este Estado. Não tem como esquecer que a Lei de Drogas é uma herança do primeiro governo Lula. É preciso revogar esta lei, já. E, também, temos que discutir uma outra política de segurança, que passa, obrigatoriamente, pela descriminalização das drogas e pelo fim das operações policiais nas favelas”, concluiu o companheiro.

Depois do ato, também conversamos com Júlio Condaque, da coordenação nacional do Quilombo Raça e Classe (QRC) e da Secretaria Executiva Nacional da CSP-Conlutas, que nos falou da importância do 5° Congresso da Central, que ocorrerá no início de setembro, para que possamos nos organizar para dar continuidade a esta luta.

“Os atos do dia 24 representaram um grito de revolta contra os assassinatos que atingem principalmente crianças e jovens pretos e pobres, criando um Estado de Exceção em nossas periferias e favelas. Tudo isto com a conivência do governo Lula, que, agora, pactua com setores bolsonaristas e a cúpula dos militares. O assassinato de Mãe Bernardete num estado governado pelo PT e quando deveria estar sob proteção do governo federal é um exemplo lamentável do resultado desta política de conciliação de classes”, nos lembra o companheiro.

“No congresso da CSP-Conlutas iremos discutir um plano de lutas, unificado com os trabalhadores do campo e da cidade, das aldeias e dos assentamentos, que combine o combate contra o genocídio negro, pela prisão e punição dos responsáveis, as lutas gerais do conjunto da classe, contra o Arcabouço Fiscal e demais medidas do governo que significam ataques que, como sempre, prejudicam ainda mais aqueles e aquelas historicamente marginalizados, como nós, negros e negras, as mulheres e as LGBTI+. Um plano de lutas que, exatamente por isto, tem que ser pautado na independência de classe e diante dos governos”, disse Júlio.

“Um marco decisivo no avanço do combate ao racismo o mito da democracia racial”

Também depois do ato, conversamos com Cláudio Donizete, dirigente do PSTU e de nossa Secretaria de Negros e Negras e que esteve no ato da Paulista. Cláudio lembrou que a escolha do “24 de agosto”, para lembrar o falecimento do advogado, jornalista e líder abolicionista Luiz Gama, foi excelente; mas não pode ser tomada apenas como um “símbolo”.

“Gama foi aquele que nos ensinou que ‘o escravo que mata o seu senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa’. E, hoje, é preciso que entendamos essa lição, voltando nossas lutas contra o aquilo que está por trás do genocídio do povo pobre, preto e periférico. O capitalismo mata! Então, morte ao capitalismo!”, disse o operário do ABC Paulista.

Por isso, para homenagear Luiz Gama e toda a ancestralidade de rebeldia e lutas quilombolas, a jornada do dia 24 tem que ser um novo marco, decisivo, no avanço do combate ao racismo e da demolição do mito da democracia racial. Não é mais possível conviver em um Estado que pratica a 523 anos o extermínio indígena e o genocídio negro, a partir da escravização e marginalização da nossa classe”, continuou o companheiro.

Lembrando que esta luta tem que se voltar tanto contra os que há muito vivem nas Casas-Grandes (seja a burguesia dita progressista, seja a de extrema direita) quanto aqueles que, também há tempos, se instalaram à sombra delas, através da conciliação de classes, como lamentavelmente exemplificam o governo da Bahia e o Federal, Claúdio reforçou o chamado para que os trabalhadores e trabalhadoras, através de suas entidades, se unam aos movimentos negros na convocação de novas mobilizações.

“Nós, do PSTU, com certeza estaremos em todas elas e iremos convocá-las em todos os lugares em que atuamos. Mas, se é preciso exigir, sim, a apuração rigorosa e punição aos executores e mandantes de tais crimes e violações dos direitos humanos e atentado contra a vida da população negra, pobre e periférica, para combater o genocídio negro, nós estamos convictos de que para lutar contra a violência policial e racista também precisamos construir uma oposição de esquerda ao governo Lula”, disse Cláudio.

“Isso não só porque Lula e os governos petistas também contribuíram para a escalada da violência, através de medidas como a Lei Antidrogas, que fez disparar o encarceramento. Isto já seria razão suficiente, mas o problema é ainda maior. Hoje, o PT governa com e para a burguesia e a única forma de construirmos um Estado onde possamos viver com dignidade e plenitude é superando o Estado capitalista e genocida que Lula se propõe a administrar. Seja governado pela direita ou, em parte, pela esquerda, o capitalismo nunca vai ter uma ´cara humana’. Será sempre genocida e continuará nos arrastando por essa barbárie”, concluiu Cláudio.