Nacional

O vinho amargo do trabalho escravo contemporâneo

Redação

15 de março de 2023
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A operação que resgatou 207 pessoas que trabalhavam em condições de escravidão nas vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, na colheita e carga e descarga de uvas em Bento Gonçalves (RS), mostrou novamente a dimensão do trabalho escravo no país.

Os trabalhadores denunciaram que foram vítimas de ameaças e maus tratos, incluindo o uso de choques elétricos e spray de pimenta. Eles trabalhavam para uma empresa terceirizada, prestadora de serviços contratada pelas vinícolas, Fênix Serviços de Apoio Administrativo. A maioria dos trabalhadores era da Bahia e foi atraída por falsas promessas de receber um salário de R$ 4 mil por mês e boas condições de serviço, como alimentação e alojamento decentes. Mas nada disso aconteceu. Além dos castigos físicos, seus alojamentos não tinham a menor condição de higiene, e a comida servida estava estragada.

As vinícolas se apressaram em dizer que nada sabiam, e colocaram toda a culpa na empresa de terceirização. Difícil acreditar. Até porque esse é o padrão de todas as empresas flagradas com trabalho escravo: tirar o corpo fora e culpar a terceirizada.

Bom negócio para os capitalistas

À sombra de trabalho escravo, as vinícolas brasileiras registraram um faturamento recorde em 2023. A Salton faturou R$ 500 milhões; a Aurora, R$ 756 milhões; e a Garibaldi reportou um faturamento de R$ 265 milhões. Como se não bastasse, as três vinícolas têm ao menos 18 empréstimos ativos no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), os quais totalizam R$ 66,2 milhões. Dinheiro público financiando o trabalho escravo.

Enquanto o país se indignava, a entidade dos produtores de vinho do Rio Grande do Sul tentava justificar o trabalho escravo em vinícolas. Associação comercial de cidade da serra gaúcha põe a culpa na “falta de mão de obra”.

Um vereador bolsonarista de Caxias do Sul, município vizinho, Sandro Fantinel (Patriota) culpou os baianos pelo trabalho escravo em vinícolas: “Só sabem tocar tambor”, disse em um discurso na Câmara Municipal. “Não contratem mais aquela gente lá de cima”, ainda pediu. Além do óbvio racismo e xenofobia, o discurso dessa gente mostra toda a perversidade das elites da região. Ao contrário do que pensam e falam, é o Brasil pobre que sustenta o que eles acreditam ser “o Brasil rico”, e não o contrário.


Retrato de um sistema decadente

Capitalismo e a recriação do trabalho escravo

Na escravidão contemporânea, o trabalhador é enganado por promessas mirabolantes de bons salários e condições de trabalho. No entanto, logo é atado por mecanismos de endividamento por sua passagem, hospedagem e alimentação, cujos valores cobrados são estratosféricos, muito mais altos do que o normal. Para pagar a sua suposta “dívida”, o trabalhador é aprisionado, impedido de sair, submetido a castigos e humilhações. Esse mecanismo é conhecido como peonagem.

Desde 1995, quando o governo brasileiro criou o sistema público de combate ao trabalho escravo, mais de 60 mil trabalhadores foram resgatados. Mais de 80% são negros, 92% dos quais homens e 51% residem no Nordeste.

No Brasil, formas degradadas de trabalho existem há muito tempo e estão aí até os dias de hoje. Mas elas deixaram de ser um fenômeno restrito à fronteira agrícola ou a lugares longínquos da Amazônia (leia box ao lado). Na verdade, estão por toda a parte, principalmente no campo.

O crescimento do agronegócio impulsionou o trabalho escravo. De acordo com o Ministério do Trabalho, no período entre 2003 e 2014, o agronegócio foi campeão absoluto na utilização do trabalho escravo, com praticamente 80% dos trabalhadores libertados do trabalho em lavouras, plantação de cana, desmatamento e pecuária. No ano passado 87% dos resgatados estavam em atividades rurais. Não temos apenas os “escravizados do vinho”, mas também da madeira, da carne, da soja, do algodão, do café, do suco de laranja, da erva-mate, do sisal, do ouro e, claro, dos bordéis com a prostituição.

A produção de laranja para a Cutrale, por exemplo, foi alvo de resgate de escravizados em 2013 e para a Citrosuco, em 2013 e 2020. A Cosan (conglomerado brasileiro produtor de bioetanol, açúcar e energia) foi palco de um resgate de trabalhadores de uma de suas usinas de cana-de-açúcar em 2007.

Mas se lá na ponta temos trabalhadores em situação de escravidão, no topo da cadeia produtiva do agro temos um punhado de transnacionais que controlam o financiamento, o armazenamento e a comercialização dos produtos. Hoje não são mais do que quatro grandes empresas (ADM, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus) que controlam as exportações da soja na América do Sul, do eucalipto e o pinho para a pasta de celulose, do tabaco, da laranja, entre outros produtos.

Além das atividades agrícolas, o trabalho escravo vem aumentando em atividades urbanas, como na fabricação de roupas de marca e na construção civil. Resgates de escravizados ocorreram na linha de fabricação de roupas da Zara em 2011, da Animale em 2017 e da M. Officer em 2013 e 2014. Em São Paulo muitos imigrantes bolivianos e paraguaios são vítimas de trabalho escravo no setor da confecção.

Muitas obras da empreiteira MRV foram palco de resgates em 2021, 2014, 2013 e 2011. Até trabalhadores em obras de ampliação do Aeroporto Internacional de São Paulo, realizada pela construtora da OAS, foram resgatados em 2013.

Ao mesmo tempo que o agronegócio utiliza um enorme e sofisticado desenvolvimento técnico, indústria 4.0, genética, insumos agrícolas, combina isso com essa forma degradante de trabalho que faz o setor sustentar suas enormes taxas de lucros. Em geral, o setor agroextrativista emprega pouca gente e paga baixos salários.

O trabalho escravo contemporâneo ganha impulso na profunda decadência da estrutura econômica brasileira, na qual cada vez mais o papel da indústria foi reduzido, e no aumento da desigualdade social. Hoje temos 90 milhões de trabalhadores e trabalhadoras sem emprego ou subempregados, de acordo com o Anuário Estatístico do Instituto Latino-Americano de Estudos Socioeconômicos (Ilaese/2021). Enquanto isso, 20 maiores bilionários do país concentram mais riqueza que 60% da população.


Trabalho escravo

Um grande negócio mundial

O trabalho escravo é expressão de um capitalismo decadente, que sistematicamente vem desvalorizando a força de trabalho e recriando o trabalho escravo para lucrar. A emergência da terceirização e a precariedade cada vez maior do trabalho são expressões desse processo, e abrem as portas para a escravidão moderna.

Em todo o mundo a escravidão tem se revelado um empreendimento lucrativo e florescente. Em 2005, a escravidão movimentava US$ 32 bilhões. Em 2013, os lucros da escravidão haviam saltado para US$ 150 bilhões.

O que alimenta a escravidão é a miséria crescente e a imensa desigualdade social promovida pelo capitalismo. De acordo com um levantamento feito pela Oxfam, os 2.153 bilionários do mundo têm mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas – ou cerca de 60% da população mundial. Enquanto isso, apenas a América Latina tem hoje 500 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza, um potencial exército de reserva que pode ser recrutado para o trabalho escravo. O drama das migrações de refugiados também pode engrossar esse exército.

Saiba mais

Trabalho escravo presente na história do Brasil

Escravidão no Brasil, obra de Jean Baptiste Debret

A escravidão negra que existiu no Brasil por 400 anos – além da escravidão no sul dos Estados Unidos e Caribe – foi essencial para que o capitalismo pudesse nascer e se expandir pelo globo. A escravidão financiou a industrialização, a civilização europeia e ampliou o mercado mundial. Naquela época, a lei permitia que uma pessoa fosse propriedade da outra, uma mercadoria que poderia ser negociada em troca de dinheiro.

O fim da escravidão no Brasil, entretanto, não impediu o surgimento de outras formas degradadas de trabalho que estão aí até os dias de hoje. A peonagem, por exemplo, foi usada no ciclo da borracha da Amazônia desde o final do século 19 e persistiu até os anos 1980. Na época da ditadura militar, grandes empresas compraram grandes fazendas na Amazônia e empregaram trabalho escravo. Uma delas foi uma fazenda da Volkswagen com 140 mil hectares no sul do Pará. Denúncias também envolveram fazendas pertencentes ao Bradesco, à White Martins, ao Banco Mercantil, bem como de alguns empresários como Silvio Santos. Os trabalhadores, em geral camponeses despossuídos, eram recrutados nos estados do Nordeste.

A história do capitalismo brasileiro mostra que o sistema não prescinde do trabalho escravo para lucrar. Pelo contrário, essa forma de trabalho tem se ampliado principalmente com a decadência econômica do país.

Saída

Um programa dos trabalhadores para acabar com a escravidão contemporânea

Desde 2010, o governo criou uma “lista suja” que proíbe a concessão de crédito rural a quem esteja nela relacionado. Bancos públicos e privados precisam checar a lista. A lista sempre foi atacada por associações do agronegócio e do setor imobiliário. Mesmo importante, a lista é uma medida insuficiente para erradicar o trabalho escravo moderno, que continua a se expandir. Por outro lado, as multas aplicadas até hoje aos empresários que promovem o trabalho escravo totalizam R$ 127 milhões, uma fração dos lucros que eles obtiveram.

É preciso expropriar, sem indenização, todas as empresas que promovem o trabalho escravo e destiná-las à reforma agrária ou ao uso habitacional urbano. Após o resgate de 207 trabalhadores em Bento Gonçalves, esse debate tomou as redes sociais. Em 2014, o Congresso Nacional adotou uma Emenda Constitucional ao artigo 243 que inclui a utilização de trabalho escravo como um motivo para expropriação de terras. No entanto, a Emenda ainda não foi regulamentada, sendo sempre barrada por deputados da bancada ruralista.

O governo Lula não vai impulsionar a regulamentação da medida. Primeiro, porque atualmente a base ruralista compõe a base do governo no Congresso. Segundo, porque todos os governos do PT sempre impulsionaram o agronegócio com fortes isenções fiscais e empréstimos do BNDES. O resultado foi o aumento do trabalho escravo e o fortalecimento dos ruralistas.

É preciso enfrentar o agro, punir e expropriar as empresas que se utilizam do trabalho escravo. Mas isso só pode ser realizado a partir de muita luta, independente dos governos e dos patrões, envolvendo os movimentos sindical e social.

Mas também é preciso mudar a estrutura do país, pôr fim à desigualdade e a esse sistema que promove o retorno da escravidão. É preciso fazer uma reforma agrária radical, expropriar as terras do agronegócio, enfrentar os milionários e garantir emprego, renda e salário digno.