Internacional

“Com sangue nós escrevemos para a Palestina”

Soraya Misleh, de São Paulo

2 de fevereiro de 2023
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A frase do escritor e revolucionário marxista palestino Ghasan Kanafani (1936-1972) – “com sangue nós escrevemos para a Palestina” – vem à mente ao balanço do primeiro mês de 2023 na Palestina: 35 vidas foram arrancadas pelas forças de ocupação e colonos sionistas somente em janeiro, seis de menores de 18 anos. A resistência heroica e histórica não se curva, pelo contrário, a partir da juventude, eleva-se a outro patamar. “Se um de nós for eliminado, dez outros devem vir em seu lugar. Essa é a marca genuína de nossa luta, e nem a censura nem a simples cumplicidade covarde hão de apagá-la”, já revelara o intelectual palestino Edward Said (1935-2003).

São mais de 75 anos de resistência, em meio à contínua Nakba (catástrofe cuja pedra basilar é a formação do Estado racista de Israel em 15 de maio de 1948 mediante limpeza étnica planejada). No momento, a partir dos “filhos de Oslo” – jovens que já nasceram sob o signo dos desastrosos acordos de Oslo –, essa resistência com tantos mártires e heróis a inspirá-la tem se dado inclusive pela ponta de um fuzil, que pode inclusive ter sido corajosamente arrancado de seu usurpador sionista, como algumas imagens sugerem.

Assinados em 13 de setembro de 1993 entre “Israel” e a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), sob intermediação do imperialismo estadunidense, os malfadados acordos de Oslo que germinaram essa resistência armada, apresentados com pompa e circunstância ao mundo como uma paz gradativa, nada mais foram do que uma rendição da liderança – o “Tratado de Versalhes palestino”, nas palavras de Edward Said. O resultado foi mais liberdade para “Israel” promover a agressiva expansão colonial sionista em curso, contando com um de seus frutos: a Autoridade Palestina (AP), gerente da ocupação, cuja cooperação de segurança com o Estado sionista como desdobramento de Oslo não tem outra serventia que não reprimir a resistência legítima sob todos os meios. A AP forjou uma nova classe capitalista, uma burguesia que lucra com a ocupação. A libertação nacional, do rio ao mar, jamais passará pelas suas mãos, como bem sabem muitos palestinos e palestinas.

Ao lado dos regimes árabes, imperialismo/sionista, a burguesia palestina compõe os clássicos inimigos da causa palestina identificados por Kanafani em sua obra “A revolta de 1936-1939 na Palestina” (Editora Sundermann). Os primeiros avançam na normalização com “Israel”, projeto em curso que deu salto a partir de Donald Trump e seus “Acordos de Abraão” – cuja continuidade e aprofundamento é o que mira agora o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, para somente depois “negociar a paz” com os palestinos subservientes, que não representam a totalidade de seu povo e estão cada vez mais desacreditados. Em situações limite, como a que vivem todos os dias os palestinos, a consciência se eleva: eles sabem que não há paz sem justiça. E justiça é derrotar o projeto colonial sionista rumo a uma Palestina livre do rio ao mar, com o retorno dos milhões de refugiados às suas terras históricas.

De armas na mão

A morte segue à espreita na contínua limpeza étnica e apartheid sionista, e alcança a todos (abarcando também de crianças e mulheres a idosos): basta que sejam palestinos. Mas hoje se depara inclusive com essa resistência armada, que, sob a alcunha de “Toca dos Leões”, se concentrava inicialmente em redutos na Cisjordânia, mas agora se reflete inclusive em Gaza, com jovens utilizando seus símbolos e imediatamente respondendo a massacres desde a estreita faixa submetida a cerco desumano há 15 anos e bombardeios massivos ou a conta-gotas frequentes.

Ou seja, a “Toca dos Leões” espraia-se para todos os territórios ocupados em 1967, que englobam também a Cidade Velha de Jerusalém, perfazendo 22% do território histórico da Palestina após a Nakba de 1948, em que o sionismo usurpou à força os outros 78%.

A primeira aparição oficial do grupo armado se deu, conforme reportagem da Al Jazeera, em 2 de setembro de 2022, num memorial em Nablus para dois de seus combatentes assassinados pelas forças de ocupação sionistas 40 dias antes. A “Toca dos Leões” ganhou notoriedade por suas ações diretas, com ataques a checkpoints, forças de ocupação e assentamentos. “Israel” vem tentando esmagá-la desde então, mas parece que o efeito tem sido o oposto.

São jovens descrentes das lideranças tradicionais, que fazem questão de afirmar que não estão vinculados a esses partidos ou deles recebem ordens. Também afirmam que querem unir os palestinos em resistência. Vários, ainda segundo a reportagem da Al Jazeera, passaram por prisões da Autoridade Palestina, por “porte de armas”.

Ainda sem direção revolucionária, a qual pode vir a ser forjada na luta, essa juventude que se amotina sabe que muitas vezes sua reação ao colonizador representa o martírio. Mas não há escolha. A opção é morrer sem lutar ou resistir para que todo seu povo exista. Esses jovens dão sua vida pela libertação nacional, pois tudo o que mais importa lhes foi arrancado violentamente – sua terra livre do rio ao mar e, com a brutal colonização, seu amanhã.

Dos 35 assassinados por “Israel” em janeiro último, 16 o foram nos últimos cinco dias do mês. Na noite do dia 25, um deles foi morto na aldeia de al-Ram, próxima a Jerusalém. No dia 26, em mais um massacre das forças de ocupação em campo de refugiados de Jenin, nove palestinos tiveram a vida ceifada, incluindo uma mulher de 60 anos, e mais de 20 ficaram feridos, pelo menos quatro gravemente.

Anas Huwaisheh, correspondente de um canal local, afirmou ao portal Middle East Eye que as cenas que assistiu o lembraram do massacre de Jenin em 2002, durante a Segunda Intifada – levante popular palestino iniciado em 28 de setembro daquele ano, após provocação do carniceiro sionista Ariel Sharon ao invadir a Esplanada das Mesquitas, o qual durou até fevereiro de 2005. “Os sons de balas e tiroteios eram intensos e nuvens de fumaça cobriam o céu. A ocupação israelense cortou a eletricidade, a internet e a rede de telefonia celular durante o ataque. Isso mostra que foi planejado”, destacou Huwaisheh.

Ambulâncias e paramédicos não conseguiram garantir os primeiros-socorros devido à restrição de acesso pelos mesmos que promoveram a matança, que disparavam tiros de advertência e impediam a aproximação. O Hospital Público de Jenin foi invadido pelas forças de ocupação, que, segundo relatos, atiraram bombas de gás lacrimogêneo na ala pediátrica.

No dia seguinte, um jovem palestino, Saleh Ali, de apenas 17 anos de idade, abriu fogo contra um assentamento em Nabi Yakoub, na Cidade Velha de Jerusalém ocupada. Derrubou oito colonos e feriu outros 23, antes de ser morto pelas forças sionistas. São jovens que cresceram humilhados, subjugados, vendo seus familiares e amigos serem mortos, presos e torturados, suas casas e vilas demolidas, sob os olhos e ações cúmplices da chamada “comunidade internacional”. A resistência é parte de seu nascimento até a morte. E, quando perdem a vida, dez outros se levantam, pois – parafraseando Karl Marx em “O manifesto comunista” – “nada têm a perder, a não ser seus grilhões”.

Em 2022 “Israel” assassinou mais de 220 palestinos, entre os quais 53 crianças somente na Cisjordânia. A resistência árdua é forjada em lágrimas, sangue e dor, mas muita dignidade, determinação, firmeza e persistência (sumud, em árabe).

É certo, como ensinam os pais e avós que viveram a Nakba de 1948, que pela Palestina muitos ocupantes passaram ao longo de sua história milenar, mas nenhum permaneceu indefinidamente. Terra estratégica, no coração do Oriente Médio e Norte da África ricos em petróleo, para trânsito de mercadorias rumo à Europa, Ásia e África, sempre foi objeto de cobiça dos imperialismos. Mas nenhum deles dura para sempre. O imperialismo estadunidense e seu enclave militar “Israel” – a quem destina bilhões de dólares anualmente para suas tecnologias da morte, colonização e apartheid – não podem derrotar um povo que transmite resistência de geração a geração, e a exala em cada simples movimento.

A “Toca dos Leões” é parte desse processo, nas palavras do jornalista palestino Ramzy Baroud, um fenômeno popular que se espraia dia a dia. “Aqueles que entendem a história da resistência palestina sabem que a Toca dos Leões é o começo de algo muito maior e que uma rebelião armada palestina em toda a Palestina é agora iminente”, declarou, segundo o Palestine Chronicle.

O sangue derramado todos os dias em sua terra fermenta uma Intifada que espreita há anos, e que tem potencial de fazer emergir uma nova onda de revoltas na região, de um povo árabe oprimido e explorado que têm também a causa palestina como sua. O cenário está em aberto, enquanto o sionismo mergulha cada vez mais fundo em sua crise.