Internacional

Ativistas equatorianos falam de sua experiência com o levante popular que varreu o país

Cesar Neto

6 de julho de 2022
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Cesar Neto, de Santos (SP)

Por 18 dias um levante popular varreu o Equador. As ruas e as estradas do país foram bloqueadas, e nas cidades a população foi às ruas contra o governo de Guilhermo Lasso. As manifestações são resultado da imensa crise social que assola o país, duramente golpeado pela pandemia e agora enfrentando uma inflação galopante e um enorme desemprego. Para explicar como foi o processo, o Opinião conversou com Romel Sacta, advogado trabalhista que atua na cidade de Cuenca, e Xavier Solis, advogado dos direitos humanos que atua na Amazônia equatoriana. Ambos são militantes da Articulação Revolucionária dos Trabalhadores (ART), grupo simpatizante da Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT), e relatam suas diferentes experiências com os intensos protestos que ocorreram no país.

Explique como foi o processo em Cuenca. Também nos fale sobre a Assembleia Popular criada na cidade.

Romel Sacta – A greve começou em 13 de junho de 2022 e foi convocada e liderada pelas organizações indígenas Conaie, Feine e Fenocin. Em Cuenca, algumas organizações e pessoas que participaram do protesto decidiram convocar a Assembleia Coordenadora de Organizações de Azuay, como um espaço amplo e democrático. Essa Assembleia foi formada por estudantes universitários, sindicatos e comitês de empresas, grupos e ativistas identificados com o anarquismo, com o feminismo e com o marxismo.

Esse espaço assemelha-se a uma Assembleia de Coordenação que se formou em outubro de 2019, fruto da explosão social naquela época. Participamos como Escuela Popular Agustín Cueva Dávila, nome que lembra um sociólogo marxista equatoriano, formada por estudantes, profissionais, camponeses e trabalhadores autônomos ou precários, que se reconhecem como uma classe trabalhadora e explorada e não têm vínculos com o setor sindical e com o movimento antiextrativista.

A Assembleia Coordenadora funcionava com reuniões dos delegados das organizações, a cada dois ou três dias, cujo objetivo era sustentar a greve em Azuay. E criamos um grupo no Telegram. O desafio foi entrar em contato com os diferentes setores sociais que, alguns espontaneamente, fecharam as estradas e organizaram protestos.

As centrais sindicais os apoiaram ou ficaram à margem da Assembleia?

Romel – As grandes centrais sindicais apoiaram apenas com palavras. Elas preferiram dar impulso a uma marcha convocada para 22 de junho, nove dias após o início da greve. Cabe esclarecer que a greve, inicialmente, foi convocada pelos indígenas, mas após a prisão do presidente da Conaie [Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador], Leónidas Iza, desencadearam-se vários protestos, tornando-a uma greve popular indígena. No entanto, quem apoiou a greve desde o primeiro dia foram os sindicatos de base que, autonomamente, apesar do que dizia a cúpula das centrais, aderiram aos protestos.

Conseguiram bloquear os acessos da cidade?

Romel – As estradas para a cidade foram fechadas desde o primeiro dia nas áreas onde o movimento indígena era forte. Posteriormente, vários setores sociais se juntaram com mais bloqueios, e a cidade ficou isolada. O que nós, como Assembleia Coordenadora, fizemos, depois que a cidade já estava incomunicável, foi reunir os setores que aderiram à greve e ajudar os ativistas. O governo Lasso tentou abrir as estradas à força, mas não teve sucesso. A Coordenação não organizou a greve, mas foi um espaço que buscou organizar os diferentes setores que já estavam em greve.

O serviço de coleta de lixo foi suspenso devido às manifestações. Mas os ativistas que paralisaram as estradas estabeleceram, por decisão própria, corredores comunitários para produtos como gasolina, gás, oxigênio para hospitais e alimentos. A princípio, nada foi permitido passar, exceto os serviços de emergência. Mas, dada a escassez, foram criados corredores comunitários para aliviar a situação de escassez, permitindo que a greve continuasse por mais dias.

O prefeito da cidade de Cuenca foi a um dos pontos de interdição para solicitar a liberação do trânsito, mas sem sucesso.

Xavier, você mora em uma área da Amazônia equatoriana, como a mineração e a indústria do petróleo afetam a região?

Xavier – Moro há 11 anos na Amazônia equatoriana, em Orellana, principal província petrolífera do Equador, próximo a um dos lugares mais biodiversos da Amazônia, chamado Yasuní, que é um parque nacional habitado pelos últimos povos isolados do Equador, chamados Tagaeri-Taromenane.

Além disso, na mesma selva, existem povos em contato inicial ou recente. No caso dos Waorani, que já fizeram contato há quase 50 anos, eles tiveram uma adaptação que ainda não está completa, é uma mistura de vida dependente da floresta e da sociedade em geral. Eles não têm um sentido estrito de propriedade, nem de dinheiro, mas cada vez que a sociedade em geral os absorve, ele aprendem à força a dureza da sociedade capitalista.

Outros povos, como os Shuar e Kichwa, adaptaram-se mais ou menos à sociedade em geral, sem deixar de ter seus cultivos autossustentáveis que plantam na selva. Todos eles têm uma relação conflituosa com as petroleiras que se instala em seus territórios contaminando seus rios, floresta, alimentos e causando doenças como o câncer. Em 50 anos de produção de petróleo, eles continuam entre os povos mais pobres do Equador, não têm serviços básicos como água potável ou eletricidade.

Geralmente, os povos indígenas gostam de viver em harmonia com a natureza e com as outras pessoas. Mas os níveis de discriminação e exploração a que são submetidos têm levado a uma maior organização e utilização de métodos de luta como greves, bloqueios de estradas, apreensão de poços de petróleo. Eles vêm aprendendo isso na prática, na necessidade de serem ouvidos.

Os indígenas que enfrentaram a repressão da polícia ou do exército? O petróleo deixou de ser produzido devido a interrupções na circulação nas estradas?

Xavier – Durante os 18 dias da greve nacional, cerca de mil poços de petróleo interromperam a produção, em alguns casos porque as comunidades assumiram o controle dos poços de petróleo e pressionaram para fechar. Em outros casos, em razão dos bloqueios nas estradas, a logística que abastece os poços de petróleo foi interrompida, alguns poços foram paralisados por falta de produtos químicos, de pessoal e de combustível. Os efeitos da paralisação das estradas começaram a ser sentidos após dez dias, quando as reservas começaram a escassear e a logística para manter a produção de petróleo faltou.

Houve vários confrontos entre as comunidades e a polícia e o exército. Em quase todos os casos, as comunidades não cederam à repressão, que não conseguiu desobstruir as estradas. As comunidades conhecem seus territórios e estão organizadas. Por isso conseguiram paralisar a logística do exército. Além disso, as comunidades desenvolveram diversas formas de resistência, que vão desde o confronto direto com pedras, paus, coquetéis molotov, escudos artesanais, e em outros momentos recuam para se reagrupar e voltam horas depois para tomar os locais onde o exército e a polícia estavam localizados.

Qual a percepção das comunidades com as negociações?

Xavier – As comunidades indicaram que sua lista de dez petições foi cumprida, mas também notei que as comunidades indígenas queriam mostrar ao Estado que não estão dispostas a continuar sendo discriminadas ou humilhadas. Embora nem tudo o que foi proposto tenha sido alcançado, as comunidades viram seus desejos realizados de alguma forma.

Romel, quais serão os próximos passos da Assembleia em Cuenca após o término da greve?

Romel  A Assembleia é um amplo espaço que surgiu na ebulição do protesto. O desafio agora é manter o contato e a união das organizações e pessoas que participam da mobilização. Acreditamos que esse espaço será mantido por alguns meses, sem tanta força assim, até que as mobilizações recomecem. Temos muito claro que o governo Lasso não vai parar com seus planos ou com sua repressão. O “acordo de paz” assinado [no último dia 30 de junho para tentar encerrar a greve] é apenas uma pausa para que o governo e os movimentos sociais, liderados pelo movimento indígena, recuperem forças e se organizem melhor.