Você sofre: como retratar a violência?
As recentes chacinas de julho e agosto são mais um terrível episódio de genocídio brasileiro contra a população pobre desse país. Diante dos fatos sobre os quais se é impossível silenciar, nasce o desafio: como retratar a violência? Deixando de lado aquela parcela da mídia que tem a violência por vocação e capital – aqueles jornais que chamamos de pinga-sangue como Datena e companhia -, jornalistas, fotógrafos, câmeras, ativistas e etc., todos se deparam com o dilema ético da veiculação ou não das imagens de violência. E imagens, aqui, me refiro tanto às textuais, às gráficas quanto as audiovisuais.
Deve-se ou não veicular tais imagens? É possível falar em uma ética estética universal a respeito do tema?
O problema é que para se falar em ética universal é preciso falar em universalidade da violência. O que nos leva a perguntar se a violência é essencialmente sempre a mesma em qualquer contexto e em qualquer lugar. Ou se ela se manifesta diferentemente em situações diferentes e, o mais importante, se a percepção da violência é diferente a depender do sujeito praticante da violência e do sujeito violentado.
O cinismo conservador
No debate, há aqueles que advogam que toda e qualquer forma de violência deve ser repudiada. É o caso dos pacifistas e antibelicistas. Essa é uma posição justa, afinal, quem nunca imaginou um mundo sem a violência? Uma prova disso seria um sentimento universal de repúdio às imagens de violência explícita, objeto de desconforto em qualquer ser humano mais ou menos normal. Ou seja, a ideia de que toda forma de violência seria moralmente condenável. Essa é uma posição essencialmente moralista. Arrisco dizer, ainda, cristã e novo-testamentária: segundo Evangelho de Lucas, deve-se sempre oferecer a outra face e recusar o caminho da violência.
A armadilha dessa posição está justamente no fato que ela simplesmente nega a existência da política. Para os pacifistas, ao frear a discussão acerca da violência a um nível ontológico, de uma suposta essência idealista da violência, nunca chega-se ao nível da discussão sobre os sujeitos da violência e suas causas. E sem sujeitos, a coisa se torna apolítica, como se isso fosse possível. Assim, os corpos, a violência e a guerra são nas imagens sempre corpos genéricos, violência genérica e guerra genérica – não há história e não há sujeito histórico.
Contudo, a posição muda drasticamente quando se reconhece a trama política envolvida na prática da violência. Para quem acredita que a justiça está de um lado e a injustiça de outro, o importante é justamente saber quem mata e quem morre e, só a partir daí, julgar-se moralmente as imagens da violência. É o caso do cristianismo que prefere o Velho Testamento. Se Deus é justo, é moralmente justificada a violência e o castigo divino. Ou seja, onde existe a ideia do bem contra o mau, nem toda violência é repudiável. Os fins justificariam os meios e aqui o debate começa a ficar complexo.
A violência justa e a violência injusta
Em um nível menos abstrato, baixando-se à terra, justificam-se assim as imagens de uma suposta guerra patriótica ou qualquer outro conflito considerado justo. De um lado, justificam-se as imagens do inimigo morto como prova incontestável da vitória da justiça. Por outro lado, justificam-se também as imagens das próprias vítimas como demonstração da barbaridade do algoz, da falta de humanidade do inimigo. E, assim, praticamente toda e qualquer imagem de violência passa a ser potencialmente justificada para exibição. E em qualquer lado do conflito.
Recentemente na guerra da Ucrânia a imagem de Marianna Vyshemirsky circulou o mundo. Grávida e evacuando uma maternidade bombardeada em Mariupol, Marianna foi ao mesmo tempo símbolo da barbaridade de Putin aos olhos do lado pró-Ucrânia. A mesma imagem, contudo, circulou entre os apoiadores da Rússia como prova de uma suposta encenação de um ataque que nunca aconteceu. Igualmente, a imagem de Olena Kurilo sofreu essa dupla exposição. De um lado, símbolo da dor na guerra, do outro, acusada pelos russos de se tratar de uma sobrevivente de uma explosão a gás em 2018, não de um evento de guerra. E assim, as imagens de violência circulam livre e exponencialmente, sem tempo para julgamento de sua justeza ou dos dilemas éticos nela implicada. Afinal, o que vale são as posições envolvidas e suas narrativas ideológicas, não a violência em si.
A violência como espetáculo provinciano
É inegável que a crescente midiatização da vida e a facilidade de se produzirem imagens fazem com que nosso cotidiano seja inundado por elas e, entre elas, pelas imagens de violência. São questões de minutos entre um atentado a uma escola e o recebimento das imagens das câmeras de segurança em algum grupo de aplicativo.
No debate sobre a veiculação de tais imagens, há aqueles que argumentam que vivemos a espetacularização da violência. Susan Sontag, contudo, em seu livro Diante da dor dos outros (2002), é categórica ao dizer que o argumento da realidade como espetáculo é de um “provincianismo assombroso”. Para ela, esse argumento só pode vir de uma minoria privilegiada e, como pode-se pressupor, espectadora e distante dos fatos. Trata-se, portanto, da universalização de um estreito ponto de vista, de quem não conhece na pele a concretude dos fatos e os acompanha à distância. Isso em nada exclui a existência de uma grande parcela que é em si mesma sujeito da violência, como agente praticante ou como vítima.
Mistificação da solidariedade
Há quem argumente que a veiculação dessas imagens é importante para que, através do choque, provoque-se algum grau de empatia e, através dela, crie-se algum laço de solidariedade com as vítimas. Esse, aliás – sejamos honestos -, é um fortíssimo argumento entre nós quando optamos por expor a violência. Acreditamos seriamente nessa solidariedade entre vítimas do capitalismo e, de alguma maneira, isso justifica a exposição de tais imagens. Nunca me esqueço de um slide que vi, certa vez, que dizia “O capitalismo mata”, acompanhado por uma dessas imagens de acidente de trabalho. Era de embrulhar o estômago. E quem o fez tinha plena consciência dessa sensação e acreditava veementemente na constituição dessa solidariedade trágica por terapia de choque.
Mas a compaixão e a solidariedade logo se esvaem se não se transformam em ação concreta. A relação que emerge da midiatização entre o sujeito violentado e o espectador privilegiado não é, de maneira alguma, uma solidariedade de fato (embora possa vir a ser na medida em que é menos privilegiado o espectador). Trata-se, pelo contrário, de uma completa mistificação das relações de poder e, assim, de uma mistificação da própria solidariedade que, em última instância, nunca vem a se materializar.
A discussão da imagem violenta como gatilho de solidariedade, então, nunca afasta por completo o fantasma da dúvida sobre as intenções de quem consome tais imagens e de quem as produz. Há sempre o risco de haver certo prazer no voyerismo da dor. Aqui, é assustador os paralelismos possíveis entre uma câmera fotográfica que aponta, mira, dispara e captura – to shoot, em inglês – e uma arma usada em um cenário de violência, igualmente disparando e capturando seus alvos. De tal maneira que uma suposta objetividade da fotografia factual não afasta o risco de objetificação, nem o fato de que discursos gráficos são igualmente ideológicos.
Nos frustramos ao descobrir que uma determinada imagem de violência foi encenada. Esperamos sempre o relato fiel, totalmente espontâneo, como se os profissionais de mídia estivessem invisíveis e os sujeitos – objetos e objetificados – nunca notassem a presença da câmera. Isso diz mais sobre tal voyerismo de quem vê as imagens do que sobre princípios e ética jornalística ou sobre alguma solidariedade.
Efeitos narcotizantes da longa exposição
Se a exposição continuada às imagens de violência levasse a uma solidariedade universal contra a violência, a tendência global seria a da diminuição de tais imagens, na medida em que cresceria o repúdio à violência em si. Não nos parece ser o que se sucede na realidade.
Como mencionado, a proliferação midiática e de seus dispositivos é, também, a proliferação das imagens de violência. Do Daesh e Boko Haram aos acidentes de trânsito e de trabalho, nada escapa aos imperativos do compartilhamento. Parte da cisão entre o autointitulado Estado Islâmico e a al-Qaeda foi provocada, justamente, pelas diferenças entre o Ayman al-Zawahiri e Abu al-Zarqawi sobre a midiatização das cenas de violência, como as decapitações e a ação de homens-bomba transmitidas por streaming. Vivemos justamente o contrário, não a diminuição, mas a ascensão de tais imagens.
O que nos faz pensar que a contínua e longa exposições podem provocar uma espécie de efeito rebote, levando o espectador a um estado de anestesia diante da violência. Ou, como nomeou o teórico da Comunicação, Paul Lazarsfeld, uma disfunção narcotizante, onde o excesso de informação provocaria apenas a sensação de informação, mas não informaria de fato. Sem trocadilhos conceituais, é o caso das imagens no verso dos maços de cigarro. Será que alguém já deixou de fumar por conta dessas imagens? Ou elas simplesmente começaram a passar despercebidas depois de um tempo?
A simples exposição às imagens não nos parece, portanto, suficiente para fazer precipitar determinado tipo de afeto nos espectadores, por mais que sejam boas as intenções. De maneira oposta, pode levar à insensibilização das pessoas com a naturalização dos fato, exigindo cargas cada vez maiores de violência para que se provoque algum grau de choque.
O sujeito violado
Se existe história, existe política e existem sujeito nas imagens de violência, estamos diante de uma história da violência. E quem são os sujeitos dessa história? Entender como a sociedade lidou historicamente com o fato pode dar boas pistas. E não é preciso grande esforço para entender o recorte, especialmente em um país com 400 anos de escravidão. Basta assistir qualquer uma dessas séries de true crime e serial killers que, não estranhamente, têm como vítimas mulheres e prostitutas. Ou ainda, o excelente documentário de Daniela Arbex – O Holocausto Brasileiro (2016) – sobre como eram tratados os considerados “loucos” no Brasil até pouco tempo atrás.
Todas as pistas já estavam dadas na figura do espectador privilegiado que critica a espetacularização da violência: a sociedade tolera e legitima a violência contra algumas pessoas, alguns tipos de corpos. Especificamente, a violência contra o corpo distante, o corpo do outro. E que é não um outro sujeito, mas um outro objeto. E a distância aqui pode ser física – como nossa naturalização da violência em locais como África e Oriente Médio (“distantes”) – mas também pode ser uma distância social. A violência sobre o outro, distante e socialmente diferente de nós, nos afeta menos e é por isso mais aceitável.
É exemplar artigo publicado em fevereiro de 2022 pelo jornal britânico The Telegraph, em que o jornalista Daniel Hannan dizia que a guerra na Ucrânia assustava porque os ucranianos “se parecem tanto com a gente”. A gente quem? Ou a fala de Charlie D’Agata para a CBS, dizendo ao vivo que a guerra era inesperada por “se tratar de países Europeus”. Ou ainda, Peter Dobbie para a Al Jazeera, para quem refugiados ucranianos não são pessoas da África ou Oriente Médio fugindo da pobreza, mas pessoas que você “poderia ter como vizinhos”. Mais categórico impossível. A violência tolerada é a violência contra o outro, o outro distante. Essa sim pode ser midiatizada, veiculada e, ainda, ser objeto de algum grau de fruição estética sem crises éticas.
Assim como os circos antigamente vendiam ingressos para shows de “aberrações” – os freaks – o corpo estranho (e violentado) continua como objeto apresentável e publicável. E se estamos diante de alguma forma de prazer voyer na observação desses corpos diferentes – violentados ou não – estamos diante daquilo que ativistas do movimento negro tem chamado de “pornografia da dor preta”, termo popularizado por Gabriela Moura para descrever o excesso de midiatização combinado com algum grau de fruição nas imagens de violência contra a população negra.
O interesse por imagens de violência é tanto quanto o interesse por imagens de corpos nus, diz Susan Sontag.
Porque Versos Sangrentos (1999) do grupo de rap Facção Central foi censurado como “apologia a violência” e Datena e Sikêra Jr. são apenas jornalismo questionável? A resposta talvez esteja justamente aí. Alguns sujeitos e corpos podem ser violentados e expostos, outros não.
Nossa imprensa diante disso
O que fazer diante do impasse ético? Ao mesmo tempo em que é inegável o projeto racista de controle social praticado pelo Estado e seu braço armado, a Polícia Militar, devemos nós reproduzir as imagens dessa violência para fins de denúncia? Essa pretensa solidariedade na tragédia não seria uma solidariedade mistificada, assombrada pela suspeita de ser só mais um consumo estético da violência contra o outro? Não há resposta fácil, muito menos unânime. A subjetividade existe em quem captura as imagens e em quem as lê e as consome. Igualmente as relações políticas entre quem tem essa opção nas mãos e precisa tomar uma decisão. Quais seriam, então, as outras maneiras de tratar da violência sem, necessariamente, objetificar os sujeitos?
É um debate aberto e nossa imprensa não pode se furtar a isso.