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Uma pizza assando para livrar os militares: nenhuma anistia a golpista, aos de ontem e aos de hoje

Operação orquestrada tenta salvar a pele do alto comando das Forças Armadas, enquanto impõe o esquecimento e a impunidade aos golpistas de 64

Diego Cruz

16 de março de 2024
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O ex-presidente Jair Bolsonaro e general da reserva Marco Antônio Freire Gomes (Foto: Isac Nóbrega/PR)

A tentativa de golpe de Estado de Bolsonaro, ou melhor, as tentativas, voltaram à pauta nesta sexta-feira, 15, com o ministro Alexandre de Moraes abrindo o sigilo de 27 depoimentos à Polícia Federal nas investigações dos atentados golpistas.

A bem da verdade, em termos de fatos novos, pouco foi revelado além do que já se sabia: havia um plano, com decretos já prontos instituindo Estado de Defesa no STF (Supremo Tribunal Federal), Estado de Sítio e GLO (Garantia da Lei e da Ordem), que, na prática, anulariam as eleições que deram a derrota a Bolsonaro. Concretamente, seria um golpe de Estado que instalaria um regime de exceção no país.

As novidades ficaram por conta dos depoimentos do então comandante do Exército, Marco Antônio Freire Gomes, e o da Aeronáutica, Carlos Almeida Baptista Junior que, ao contrário das figuras centrais da trama, como Braga Neto e o próprio Bolsonaro, não usaram o direito de ficar em silêncio. Numa espécie de tabelinha ensaiada, o comandante da Aeronáutica relatou que Freire Gomes ameaçou Bolsonaro de prisão caso levasse à frente sua tentativa golpista. O próprio Freire Gomes foi mais contido e disse ter se limitado a advertir Bolsonaro das consequências jurídicas do plano.

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Se por um lado esses depoimentos servem para incriminar ainda mais Bolsonaro e alguns nomes de seu entorno, como o general Heleno e o então almirante da Marinha, Almir Garnier Santos, este que teria disponibilizado suas tropas para o golpe, por outro, trata-se de uma evidente tentativa de livrar a cara do conjunto do comando das Forças Armadas na trama golpista. Nesta “narrativa”, Bolsonaro queria dar um golpe, mas Freire Gomes e Baptista Junior, de forma “heroica”, teriam se insurgido contra o plano, garantindo a posse de Lula e evitando a ruptura no regime.

É uma versão absurda que vem sendo reproduzida de forma acrítica pela maioria da imprensa. Se os dois generais eram tão defensores assim da Constituição e da democracia, por que assinaram a nota apoiando os acampamentos golpistas na frente dos quarteis exigindo intervenção militar? Nota que, inclusive, reforçava o papel das Forças Armadas como “poder moderador” no âmbito do famigerado Artigo 142 da Constituição? 

Mais do que isso, se Antonio Freire rechaçou a ideia de golpe, por que convocou o outro general, Theophilo de Oliveira, seu subordinado e comandante de Operações Terrestres (Coter), para se reunir com Bolsonaro, tendo Theophilo se disposto a colocar seus homens, os tais “kids pretos”, na intentona golpista? Aliás, pululam evidências que essas forças especiais agiram ativamente no 8 de janeiro.

A realidade é que, ao contrário das versões que vem sendo amplamente divulgadas, não foi só a Marinha que prometeu empenhar seus homens numa tentativa de golpe, mas o próprio Exército, ainda que indiretamente. Freire Gomes ameaçou prender Bolsonaro ao mesmo tempo que colocava seu general e comandante de forças especiais a serviço do golpe? Difícil engolir. 

Outra questão que vem sendo também bastante discutida: por que os comandantes do Exército e Aeronáutica, diante da exposição do plano golpista de Bolsonaro, já bastante avançado e detalhado naquele momento, não decretaram sua prisão de imediato? A versão, defendida até por anti bolsonaristas, é a de que este tipo de atitude escalaria uma crise institucional, forçando um racha nas Forças Armadas, e que teria sido uma mera questão de tática deixar o tema morrer por si só.

A realidade é que não prenderam Bolsonaro porque, se a maioria não estava plenamente fechada com o plano, também não eram contrários ao golpe, simples assim. Agiram lado a lado com Bolsonaro na contestação das urnas, no questionamento do resultado das eleições e nos acampamentos golpistas, inclusive garantindo a sua logística. No limite, quem não ajudou Bolsonaro diretamente, deixou tudo como está para ver como é que fica. 

Mas agora querem reescrever a história, deixar Bolsonaro na fogueira e salvar a imagem da instituição das Forças Armadas, mantendo, inclusive, o que defendem ser o seu papel: um poder moderador, acima de todos, e que, quando bem entender, possa intervir livremente, ou ameaçar e intimidar como fizeram nesse último período.

Um grande acordão

O ministro da Defesa, José Múcio, participa da cerimônia de apresentação dos oficiais-generais das Forças Armadas Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

O que vem sendo preparado é uma grande pizza temperada com azeitona verde-oliva. Uma pizza preparada a muitas mãos. O governo Lula mantém Múcio à frente do Ministério da Defesa, engaveta a retomada da Comissão Nacional da Verdade, recusa-se até mesmo a receber os familiares das vítimas da ditadura e, por fim, proíbe qualquer ato em seu governo de memória dos 60 anos do golpe militar de 1964. 

O STF e Alexandre de Moraes, por sua vez, “ingenuinamente”, divulgam o conteúdo dos depoimentos que corroboram com a versão das Forças Armadas. Detalhe: primeiro para os veículos de imprensa, antes mesmo de abrir à defesa. O STF, assim, mantém a imagem de grande protetor da “democracia”, enquanto blinda os golpistas do comando das Forças Armadas. 

Às vésperas do aniversário do golpe de 64, o  esforço do governo Lula em impor o esquecimento e a impunidade aos assassinos e torturadores, se une à política de conciliação com o atual comando das Forças Armadas. Junto ao STF, o Congresso Nacional e apoiado por setores majoritários da grande imprensa. Uma política que, se por um lado tenta proteger os generais de cinco estrelas e a imagem das Forças Armadas, tampouco garante que o próprio Bolsonaro seja de fato responsabilizado e punido.

Uma política de conciliação que não enfrenta a ultradireita e o bolsonarismo, abrindo espaço para que ela se fortaleça lá na frente, ou que se repagine como vem acontecendo com Tarcísio em São Paulo. E que perpetua a impunidade aos ditadores e torturadores de 64, o que foi fundamental, por exemplo, para a recente ascensão da ultradireita e do golpismo.

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