Internacional

“Um levante do operariado norte-americano tem um reflexo muito grande sobre o conjunto da classe trabalhadora mundial”

20 de setembro de 2023
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Os operários das três maiores montadoras dos Estados Unidos – GM, Ford e Stellantis – estão em greve há seis dias. Pela primeira vez na história, o United Auto Workers – UAW (Sindicato dos Trabalhadores Automotivos em tradução literal) realiza uma paralisação simultânea nas três fábricas.

Em entrevista ao canal de televisão CNN, o presidente do UAW, Shawn Fain, disse que as reivindicações são legítimas “frente aos fortes lucros das montadoras nos últimos anos”. As empresas se recusam a atender a maioria das demandas.

A greve, que é considerada histórica, é uma das maiores paralisações de trabalhadores em décadas no país. Nas redes sociais do sindicato foram postados vídeos de trabalhadores saindo das fábricas sob aplausos de membros do sindicato que acenam com cartazes.

Ao todo, a greve envolve cerca de 13.200 trabalhadores, segundo o The Wall Street Journal. Os locais atualmente paralisados são a fábrica da GM no Estado do Missouri (4.100 funcionários), a fábrica da Stellantis em Ohio (5.800 funcionários) e a fábrica da Ford em Michigan (3.300 funcionários).

A greve nos Estados Unidos chama a atenção de todo o mundo. É uma histórica greve operária no coração do imperialismo. Para explicar sobre o impacto econômico e político dessa paralisação, o Opinião Socialista conversou com Luiz Carlos Prates, o Mancha, que é metalúrgico da GM no Brasil, membro da Secretaria Executiva Nacional da CSP-Conlutas e militante do PSTU.

OPINIÃO SOCIALISTA – A greve teve início na sexta-feira, dia 15, após não ter avançado a negociação com as empresas. Assim, o contrato coletivo de trabalho anterior perdeu a validade. Como é a negociação trabalhista nos Estados Unidos?

Mancha – As negociações coletivas nos Estados Unidos acontecem de 4 em 4 anos. É quando se renova o contrato coletivo de trabalho. Bem diferente do que acontece aqui no Brasil, onde temos um acordo coletivo de trabalho, que é assinado entre os sindicatos e os empresários, e o contrato individual de trabalho. Lá, todas contratações são coletivas. Onde existe sindicato, as contratações são quase feitas diretamente com os sindicatos. Ao longo do tempo, o que a direção do sindicato vinha fazendo era buscar fechar um contrato com uma das maiores montadoras para servir de referência nas demais negociações, já que os contratos são nacionais. Os salários, as condições de trabalhos e as cláusulas sociais valem para todo o país, onde existem fábricas sindicalizadas. Agora, é a primeira vez que o sindicato utiliza uma tática diferente na negociação do contrato coletivo com as montadoras. Forçando uma negociação simultânea com as três maiores marcas que, juntas, respondem pela produção de mais da metade dos cerca de 15 milhões de veículos vendidos no país anualmente.

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Desde a crise de 2008, os contratos coletivos foram rebaixados. Como se deu esse processo?

Em 2008, no auge da crise econômica mundial, que levou a falência de bancos, o setor do automobilístico também foi atingido. A GM chegou à falência, o que levou o governo dos Estados Unidos a intervir na empresa, comprando ações, assim como fizeram o governo do Canadá e o próprio sindicato. A partir daí, implementaram uma reestruturação na empresa, que contou com o apoio da burocracia sindical, que impôs uma nova grade salarial, com redução dos salários, cortes em direitos sociais como o pagamento de pensões e cuidados de saúde aos aposentados. Esse acordo foi imposto às demais fábricas. Assim a GM saiu da crise, à custa dos ataques aos trabalhadores, com a ajuda do sindicato, que dizia que era melhor receber menos e garantir os empregos. Mas as demissões vieram, inclusive com fechamento de fábricas automobilistas ao redor do mundo.

A greve atual é um enfrentamento com essa reestruturação feita em 2008?

Nos últimos anos, a posição do sindicato foi garantir a produção das empresas, com a desculpa de garantir os empregos. Os reajustes salariais foram pequenos, já tendo uma melhora em 2019, devido uma greve que teve na GM. Entre 2017/2018, veio a público casos de corrupção no sindicato, com dirigentes envolvidos em esquemas com as empresas, que levou a um processo de intervenção na entidade sindical, com prisões de alguns dirigentes. Isso levou a que no último congresso, os trabalhadores aprovassem eleições diretas para a presidência e diretoria do sindicato, rompendo com a tradição de eleição no congresso da entidade. Na eleição, saiu vencedor o atual presidente, Shawn Fain, que fazia oposição à antiga direção. Ele ganhou as eleições prometendo uma nova era no sindicato, de lutas para recuperar as perdas anteriores, que levaram uma redução na qualidade de vida dos operários com a imposição da redução salarial, do trabalho temporário e intermitente.

Quais são as principais pautas de reivindicações?

A pauta apresentada exige o reajuste salarial de 46%, sendo um aumento imediato de 20% e mais quatro aumentos anuais de 5% cada, durante os quatro anos de vigência do contrato. Esse valor de reajuste, segundo o sindicato, seria equivalente ao reajuste dos salários dos dirigentes das empresas. As montadoras faturaram 250 bilhões de dólares nos últimos 10 anos. Além do reajuste salarial, reivindica-se um mecanismo que protejam os salários (escala móvel de salários) diante a alta da inflação no país. Também, exige-se a eliminação das duas grades salariais, mantendo apenas uma grade para todos os trabalhadores, pois hoje os trabalhadores antigos têm um salário de 30 dólares por hora, enquanto os mais novos recebem 16 dólares por hora trabalhada. O sindicato cobra o retorno dos planos tradicionais de pagamento de pensões e cuidados de saúde aos aposentados. Os trabalhadores contratados antes de 2007 ainda contam com esses benefícios. Os contratados desde então – a maioria dos trabalhadores que ganham por hora – não tem esse direito. Incluem também na pauta reivindicatória o fim dos contratos temporários; a redução da jornada de trabalho para 32 horas semanas, com uma semana de trabalho de quatro dias; uma transição justa para a produção de carros elétricos, com a garantia dos empregos e a permanência das fábricas. Todas essas reivindicações vão no sentido oposto do que praticam as empresas. A intenção é recuperar o que foi perdido a partir de 2008. E avançar em outras conquistas, como a redução da jornada.

Com essa greve histórica dos metalúrgicos, podemos afirmar que existe reorganização na classe trabalhadora norte-americana?

Podemos dizer que sim. Há um processo de ascenso das lutas dos trabalhadores nos Estados Unidos. Tem um crescimento no número de greves, a exemplo das realizadas pelos trabalhadores da saúde e da produção cinematográfica de Hollywood. Há um aumento da sindicalização da juventude e, em particular, nos setores mais precarizados, como estamos vendo a luta pela criação do sindicato dos trabalhadores da Amazon. Essa greve unificada das três principais marcas automotivas potencializa esse ascenso de luta. Isso pode influenciar outras áreas dos Estados Unidos onde não existe sindicatos, a chamada Área Verde. Por isso, além de ser uma greve histórica, ela tem um potencial grandioso a favor da classe trabalhadora norte-americana e mundial.

A greve começou forte nas três grandes montadoras. Como está sendo organizada?

Tem um certo aquecimento na economia, aumento na venda de automóveis, que eleva o aumento dos lucros e permite que os trabalhadores também reivindiquem melhores salários, condições dignas de trabalho e ampliação dos direitos. Tanto é assim que a greve foi aprovada por 97% dos trabalhadores. O sindicato também demonstrou uma organização maior que nas lutas dos anos anteriores. Foi adotada uma tática de ir parando as montadoras que fazem peças importantes para as outras montadoras. E assim ir parando a produção e chegando a adesão dos 150 mil operários representados pelo sindicato. Na visão dos dirigentes sindicais, essa tática garante um maior fôlego à greve. Os trabalhadores das fábricas que ainda não estão em greve, caso forem demitidos, o Estado garante o seguro-desemprego. Hoje, os operários estão trabalhando sem contrato coletivo de trabalho, pois a vigência encerrou na última quinta-feira, dia 14. O sindicato tem um fundo de greve de 825 milhões de dólares, vai garantir o pagamento de 500 dólares por semana a cada trabalhador que aderiu à paralisação.

Qual o impacto político e econômico da greve?

Pelo fator histórico, força e dimensão a greve tem importantes desdobramentos político e econômico. Ano que vem tem eleições presidenciais nos Estados Unidos, o impacto da greve já obrigou o presidente Biden a dizer que as reivindicações são justas, que as empresas lucraram muito nos últimos anos e que é preciso dividir com os trabalhadores. Importante lembrar que grande parte da base operária norte-americana votou em Trump, justamente pelo processo de degradação de suas condições de vida, pois o processo de reestruturação se deu no governo do democrata Barack Obama, que levou a um descontentamento dos operários com o Partido Democrata. Isso explique a relocalizacão política de Biden, também imposta pela radicalização por parte dos trabalhadores. Quanto ao impacto econômico, eles são grandiosos. Se o movimento se tornar uma greve geral nas montadoras americanas, isso pode causar uma perda de até 500 milhões de dólares nos lucros de cada empresa por semana, segundo levantamento do Deutsche Bank.

Qual o impacto da greve para a classe trabalhadora mundial?

Para os trabalhadores do mundo essa greve tem uma importância grande. Todo o processo da chamada globalização da economia foi sustentado em uma indústria internacionalizada, com superexploração, salários rebaixados e condições precárias de trabalho. Obrigando as empresas a impor esse tipo de situação também em seus países sedes. O que vigou nas últimas décadas no setor automobilístico foi uma reestruturação produtiva em todas as empresas, com flexibilização da jornada de trabalho, redução de salários e cortes nos direitos trabalhistas. Um setor que outrora tinha muitas conquistas, passou a ser um setor bastante atacado. A greve, a mobilização, implica em uma chance de virada nessa situação de derrotas da classe operária. Derrotas que tiveram a ajuda da burocracia sindical, que negociou acordos rebaixados e cediam às pressões das montadoras, que chantageavam com ameaças de levar as fábricas para outros lugares. Um levante do operariado norte-americano tem um reflexo muito grande sobre o conjunto da classe trabalhadora mundial. Tanto é assim, que as montadoras apresentaram uma proposta, comparada com as dos anos anteriores, bem superior, mas ainda bem distante das reivindicações dos trabalhadores, que estão dispostos a seguir a luta.

Então, podemos dizer que a greve é enfretamento ao processo de reestruturação produtiva?

Sim. A greve é um enfrentamento com o processo de reestruturação e com o sistema capitalista, que em sua fase atual, mesmo com avanço das tecnologias, impõem uma superexploração. Nessa fase atual do capitalismo, os sindicatos têm duas saídas: se colocam ao lado das empresas e aprofundam o processo de reestruturação, o que chamamos de sindicalismo parceiro, ou se colocam no caminho da ruptura com esse processo e apontam uma saída anticapitalista, socialista e revolucionária. E essa segunda opção que temos que apresentar à classe trabalhadora mundial.

Pode servir de exemplo?

Já é um exemplo de luta para dentro dos Estados Unidos e para fora. É uma greve histórica pelo método de luta, entrando de forma unitária às três maiores montadoras. É a primeira vez nos 88 anos de história do sindicato dos trabalhadores de montadoras em que ocorre uma greve simultânea. É histórica porque questiona um dos pilares centrais da reestruturação produtiva que é a divisão entre os trabalhadores antigos e novos, um processo que avançou a partir de 2008, mas que já vem de algumas décadas com o advento do toyotismo, que leva a uma competição entre os países e entre próprios trabalhadores, impondo uma redução dos direitos e salários, como forma de atrair investimentos. A greve vai no sentido oposto da reestruturação, já que busca garantir melhores salários, impedir o avanço da precarização e ampliar direitos. Por isso, é uma greve que serve de exemplo ao mundo todo. Daí a necessidade da construção de uma direção que não vacile, que vá até o fim no enfretamento e questione o sistema capitalista, que é injusto e opressor.

Ocorreu o 5° Encontro da Rede Sindical Internacional de Solidariedade e Lutas entre os dias 10 e 12 de setembro, em São José dos Campos (SP), a greve das montadoras norte-americanas foi debatida nesse evento?

O Encontro da Rede Sindical Internacional de Solidariedade e Lutas reuniu 42 representantes, de 21 organizações e 17 países da Europa, das Américas, da África, Ásia e do Oriente Médio, e debateu a lutas que estão ocorrendo no mundo. A greve das montadoras dos Estados Unidos foi discutida no encontro. Ela ainda estava sendo debatida, não tinha sido deflagrada. Discutimos a impacto da greve para classe trabalhadora mundial. Tiramos uma moção de apoio e de solidariedade, fazendo um chamando que a classe trabalhadora mundial apoie a greve. Porque uma vitória da greve nos Estados Unidos contribui para o fortalecimento das lutas em todo mundo. Aqui no Brasil, a CSP-Conlutas emitiu uma nota em apoio à greve e também assinamos uma nota em comum com as demais centrais sindicais em apoio a greve, que foi enviada sindicato das montadoras dos Estados Unidos. Em nome da CSP-Conlutas, gravei um vídeo, na porta da GM em São José dos Campos, em apoio e solidariedade à greve. Esse vídeo está circulado por lá e já conta com quase 80 mil visualizações no Twitter.

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