Tragédia no Rio Grande do Sul: o capítulo mais recente do “Capitalismo do Desastre”
Em 2005, diante das terríveis e trágicas consequências e políticas adotadas após a devastação causada pelo Furação Katrina, nos Estados Unidos, analistas norte-americanos cunharam o termo “Capitalismo do Desastre” para se referir a como capitalismo produz catástrofes e, depois, se aproveita delas para fazer a rapina e lucrar ainda mais com o sofrimento do povo. Agora, a História se repete no sul do nosso país
O Rio Grande do Sul passa por sua maior tragédia. Cidades do interior do estado simplesmente viraram entulho e muitas estão isoladas. Com a cheia do Guaíba, parte da capital Porto Alegre está debaixo d’água e projeções indicam que a inundação poderá se estender até o dia 20.
Faltam água potável e energia elétrica na maioria dos bairros e a ameaça de desabastecimento paira sobre a população. Mortos, desaparecidos, desespero, dor, sofrimento e revolta compõem um cenário de guerra. Mas, também se multiplicam as cenas de solidariedade. Vizinhos, familiares, trabalhadores, colegas de trabalho e amigos tentam se apoiar da melhor forma possível, resgatando vítimas e organizando abrigos.
Enquanto o povo organiza ações de solidariedade, a ultradireita vomita fake news, promove mentiras e espalha desinformação, agravando a situação. Como se já não bastasse o fato de bancarem o negacionismo climático no Brasil, difundindo a ignorância para justificar a flexibilização das leis ambientais e favorecer grandes capitalistas e proprietários de terra.
A tragédia climática é uma criação do capitalismo
O aquecimento global é uma realidade. 2023 foi o ano mais quente já registrado na História. As temperaturas dos oceanos também foram as maiores. São eles os grandes reguladores climáticos da Terra. Tudo isso fez com que o El Niño de 2023-24 fosse um dos mais intensos já registrados desde o início dos registros modernos, segundo a Organização Meteorológica Mundial (OMM). A concentração atual de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera é a maior, de acordo com os registros, dos últimos 800 mil anos, somando 424 partes por milhão (ppm). Em 1850, o nível de CO2 era de 280 ppm.
A catástrofe climática é resultado da indústria capitalista dos países imperialistas e seu consumo colossal de combustíveis fósseis, o sangue que corre nas artérias da acumulação do capital, responsável por mais de 70% das emissões globais de carbono.
Mas, aqui no Brasil, o modelo de agricultura capitalista, o chamado agronegócio, é o principal responsável pelas emissões. Sozinho, o setor emitiu 75% dos gases de efeito estufa no país, de acordo com o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG). Essa é uma expressão evidente da reprimarização econômica do país, com o crescimento do setor agro-mineral extrativista, sempre sustentado por gordos incentivos estatais e medidas de flexibilização ambiental, como veremos mais adiante.
Rio Grande do Sul: uma dentre as muitas tragédias ambientais que assolam o mundo
A catástrofe no Rio Grande de Sul, infelizmente, não é um caso isolado. A elas se somam outras que ocorreram ao longo de 2023-2024, como as ondas de calor e incêndios florestais nos Estados Unidos (EUA), Canadá e o trágico incêndio no Chile, em fevereiro; as enchentes torrenciais na cidade costeira de Derna, na Líbia, que matou mais de 10 mil pessoas; e, mais recentemente, no final de abril, as inundações do Quênia que mataram 200 pessoas.
A maioria dos cientistas sabe que estamos caminhando rapidamente para uma situação climática incontrolável que ameaça a civilização, especialmente os mais pobres e vulneráveis. Isso torna os eventos climáticos mais intensos e mais frequentes.
O Rio Grande do Sul é uma das mais regiões mais vulneráveis às mudanças do clima por estar em uma latitude que é de transição de massas de ar quente e frio, facilitando a formação de chuvas torrenciais. As condições hidrográficas e o relevo também não favorecem o escoamento de grandes volumes de chuva, resultando na inundação de vales e das várzeas.
A chave virou. A situação climática está se deteriorando rapidamente. Outros eventos extremos como o que se abateu no estado vão se repetir com maior frequência, castigando o povo pobre e agravando a miséria.
Responsabilidade é de todos os governos
A tragédia que se abateu sobre o estado foi mais do que anunciada. Foi proclamada por alertas e boletins climáticos emitidos por vários institutos meteorológicos que, inclusive, já alertavam para os riscos do estado novamente sofrer severas chuvas, como em setembro do ano passado.
Todos alertavam sobre os riscos de grandes enchentes e catástrofes provocados pelo El Niño. Mas todos os governos (estadual, municipais e federal) ignoraram solenemente todos os avisos. Além disso, aplicaram políticas em prol da destruição ambiental, exigidas pelo agronegócio, e promoveram um absurdo sucateamento dos sistemas de alerta e prevenção, que os levaram ao colapso.
O governo Eduardo Leite (PSDB), aliado de primeira ordem do agronegócio, implementou um farto cardápio de políticas contra a preservação do meio-ambiente, com uma voracidade de fazer inveja ao ex-ministro bolsonarista, Ricardo Salles.
Em 2020, suprimiu e flexibilizou mais de 500 artigos e incisos do Código Estadual de Meio Ambiente, criado no ano 2000, afrouxando regras de proteção ambiental de biomas como o Pampa e a Mata Atlântica. Depois, permitiu o autolicenciamento de grandes empreendimentos, por meio da emissão de Licença Ambiental por Compromisso (LAC). A medida autorizou o autolicenciamento de usinas de concreto e de asfalto, a criação de bovinos semiconfinados, o desenvolvimento de silvicultura (com pínus e eucalipto) e a criação de centrais de beneficiamento de dejetos de animais, dentre outras.
Na sequência, flexibilizou ainda mais a legislação ambiental, para permitir a construção de barragens e açudes em Áreas de Preservação Permanente (APP), e, dessa forma, permitir o armazenamento de água para a agricultura e a pecuária.
A boiada passou pelo estado e foi arrasadora. Arrasado também ficou todo o sistema de prevenção e combate a desastres naturais. Para enfrentar os eventos climáticos, o governo destinou R$ 115 milhões, menos de 0,2% do orçamento total aprovado para 2024. Para a Defesa Civil, foram acrescentados míseros R$ 50 mil reais. Todo aparato de prevenção e combate a desastres naturais esteve desmontado durante toda a duração do El Niño, que sempre provoca grandes chuvas na região enquanto está ativo.
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Nenhum centavo para obras e manutenção e milhões para a destruição ambiental
Essa mesma cartilha foi adotada pelo prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), e explica a falha do sistema de contenção de enchentes do Guaíba, formado por casas de bombas, diques e o Muro Mauá.
A cidade tem 18 casas de bombas, que têm capacidade de bombear 159 mil litros de águas pluviais por segundo, segundo a prefeitura de Porto Alegre. Mas, o sistema colapsou e apenas quatro casas de bombas estavam operando na cidade, até o último 7 de maio. Os diques de contenção também falharam e muitos cederam com a força das águas.
A verdade é que o o sistema estava totalmente sem manutenção, mesmo que a prefeitura já soubesse dos riscos decorrentes de novas e torrenciais chuvas. O fato é que a Prefeitura não investiu um real sequer em prevenção a enchentes em 2023. Isto mesmo: investiu R$ 0.
Um desleixo criminoso que ocorreu mesmo quando o departamento que cuida da área tinha R$ 428,9 milhões em caixa; sobravam evidências de uma tragédia mais do que anunciada e já eram conhecidos mais do que bem os efeitos potenciais do El Niño. E quando o sistema colapsou e a cidade alagou, a prefeitura não tinha um “plano B”. Não havia um plano de contingência de retirada de moradores em caso de inundação.
Mas, ao mesmo tempo, não faltou dinheiro para empresários. O prefeito chegou pagar R$ 1,7 milhão para uma loja do “Véio da Havan”, na Zona Norte, que era compensada por danos ambientais que ela própria criou com a construção do prédio. Face à situação absurda, o Tribunal de Contas do Estado (TCE) mandou suspender o pagamento.
Privatizações e austeridade fiscal do governo Lula também contribuíram para a tragédia
Tudo piorou ainda mais com as privatizações das empresas estatais. A piora dos serviços já era visível mesmo antes da catástrofe. Com a enchente, ficou comprovado que as privatizações aprofundaram o colapso.
A empresa privada CEEE Equatorial, por exemplo, chegou a desligar a energia elétrica em uma casa de bombas, sem avisar a população e nem mesmo o prefeito, o que obrigou a evacuação de moradores dos bairros Menino Deus e Cidade Baixa, porque a água estava subindo.
Reestatizar as empresas privatizadas do estado será absolutamente necessário para qualquer plano de reconstrução e de adaptação às mudanças climáticas. Do contrário, a população seguirá nas mãos de capitalistas inescrupulosos que colocam o lucro acima das vidas.
O governo Lula também tem sua responsabilidade na tragédia, ao aplicar a austeridade fiscal e investir nas privatizações. O orçamento federal de 2023 para a Gestão de Riscos e Desastres foi o menor em 14 anos. De 2013 a 2022, os sucessivos governos destinaram R$ 19,9 bilhões para o setor. Só 31% deste total, contudo, foram investidos em iniciativas de prevenção; enquanto 69% foram usados em medidas de socorro e reconstrução de locais destruídos.
O restante do dinheiro foi para os banqueiros, garantido pelo Arcabouço Fiscal. Vale lembrar que, no ano passado, Lula destinou 43% de todo o orçamento federal para o pagamento da ilegítima dívida pública. Além disso, o governo financia a expansão do agro e seu rastro de destruição. Por exemplo, os R$ 364 bilhões, através do Plano Safra, em 2023 (o maior orçamento da história) vai servir, dentre outras coisas, para financiar a destruição dos biomas do país.
O caso do Furacão Katrina e a dupla catástrofe produzida pelo capitalismo
A catástrofe climática se combina com outra: a catástrofe social produzida por décadas de neoliberalismo, austeridade fiscal e privatizações. Esse coquetel mortífero já foi chamado de “Capitalismo do Desastre” pela jornalista canadense Naomi Klein, depois que o Furacão Katrina devastou a cidade de Nova Orleans (em Luisiana, no Sul dos EUA), em 2005, escancarando o racismo e a desigualdade social no coração do imperialismo.
Antes da tragédia provocada pelo furacão, a cidade havia passado por outra: uma terapia de choque neoliberal. Todo o sistema de diques para conter as inundações da cidade estava em estado precário, sem manutenção. Todo serviço de alerta e de socorro a um possível desastre também estava em frangalhos, sem dinheiro, por causa de cortes e restrições orçamentárias. Enquanto isso, o país gastava US$ 5,6 bilhões (R$ 29 bi) ao mês na guerra do Iraque e vendia US$ 12,4 bilhões (R$ 64 bi) em armas.
Depois da tragédia, Milton Friedman, considerado o “papa do neoliberalismo”, escreveu no “Wall Street Jornal”: “A tragédia também será uma oportunidade”. Não deu outra. Nos dias que se seguiram, o governo deu vários contratos às empresas privadas para o socorro às vítimas.
A maioria delas atuava na Guerra do Iraque, na Zona Verde militarizada de Bagdá. Um exemplo foi a Blackwater, uma empresa que enviou milhares de mercenários à guerra e foi contratada para conter os “distúrbios” da população, revoltada com a paralisia do governo diante da tragédia. No total foram concedidos US$ 3,5 bilhões (R$ 18 bi) em contratos com empresas privadas.
Na época, Naomi Klein também explicou que a Fundação Heritage (reduto do pensamento neoliberal estadunidense) apresentou uma proposta com 32 medidas de “alivio contra o furacão”.
Os itens recomendavam “a suspensão automática, nas áreas do desastre, de leis salariais Davis-Bacon”, que estavam em vigor e estabeleciam um piso para os trabalhadores da construção civil que tinham algum contrato federal de trabalho; “a transformação de região afetada em zona de livre empresa, isenta de impostos”; e “a conversão de território atingido em zona de competitividade (incentivos fiscais amplos e renúncia de regulações)”. Todas essas medidas foram prontamente atendidas pelo então presidente Bush no prazo de uma semana.
Lucrando com a terra arrasada, o racismo e o sofrimento do povo
No mencionado artigo de Friedman, o velho ideólogo neoliberal também destacou que “a maior parte das escolas de Nova Orleans está em ruínas”, mas observou que a tragédia “é também uma oportunidade para reformar radicalmente o sistema educacional”. A dita “reforma” significou a aceleração de planos de privatização do ensino.
Nas semanas seguintes à tragédia, legisladores estaduais avançaram na privatização do ensino, criando “escolas licenciadas”; isto é, instituições fundadas pelo poder público, mas dirigidas por entidades privadas, segundo suas próprias regras. O modelo praticamente substituiu o ensino público.
Além disso, a destruição de bairros inteiros despertou a cobiça do lobby imobiliário, que aproveitou a tragédia para expulsar a população pobre e negra de muitas regiões e construir condomínios de luxo. É o capitalismo produzindo desastres e se aproveitando deles para fazer a rapina.
Como resultado, a proporção de afro-americanos (majoritariamente pobre) em Nova Orleans caiu de 67% (2005) para 59% (2013). Muitos se mudaram para as periferias, expulsos pelo afluxo de uma população branca, jovem e endinheirada, que levou os preços às alturas. Em poucos anos, bairros historicamente negros e populares se tornaram brancos e endinheirados.
Reconstrução deve atender trabalhadores e não os capitalistas
Que isso sirva de alerta para o povo do Rio Grande do Sul. Uma catástrofe dessas proporções, devastadora para todo estado, pode servir como um laboratório sinistro para que os capitalistas desenvolvam práticas e protocolos sobre como agirão face às mudanças climáticas.
Suas experiências servirão para testar quais são as melhores oportunidades para a burguesia lucrar em cima da desgraça do povo através de Parcerias Público-Privadas (PPPs), da corrupção, da especulação imobiliária e das expropriações.
A própria burguesia gaúcha já menciona o “exemplo” de Nova Orleans para reconstrução do estado. Em uma reunião com o governador Eduardo Leite, no Palácio Piratini, no último dia 7, “foi citado o exemplo da reconstrução de New Orleans, nos Estados Unidos, depois da passagem do furacão Katrina, em 2005. Caso a ideia avance, seria constituída uma parceria público-privada para executar o projeto, além de usar os recursos federais prometidos”, noticiou “Portal GZH”.
Planos de reconstrução são absolutamente necessários e precisam abranger um plano global para a adaptação às mudanças climáticas, fortalecendo a Defesa Civil, construindo sistemas eficazes de proteção contra enchentes, reconstruindo cidades arrasadas, fortalecendo e criando mais leis de proteção ao meio ambiente e enfrentado o poder destruidor do agronegócio.
Além disso, é preciso assegurar os direitos trabalhistas e ampliar os direitos sociais da população pobre e vulnerável. Por isso, os trabalhadores e trabalhadoras dos bairros e cidades atingidos terão que organizar a discussão e criar seu próprio plano de reconstrução, com apoio dos técnicos da classe trabalhadora, cientistas e intelectuais que estão ao lado do povo.
Nesse processo, é preciso exigir que toda verba seja controlada pelos comitês de atingidos e trabalhadores. As verbas não podem ficar nas mãos dos governos, do Legislativo ou dos empresários que vão usá-la como balcão de negócios para o “toma lá da cá”.
Ao mesmo tempo, é preciso, inclusive em base às inúmeras iniciativas de solidariedade que estão sendo criadas e em aliança com entidades sindicais, sociais e populares, avançar na organização para enfrentar os governos e seus “planos” capitalistas, que, inevitavelmente, só irão ampliar a desgraça do povo.