Tragédia em Pernambuco revela segregação urbana
Durante o outono e o inverno, o continente africano manda para a costa do Nordeste brasileiro um grande sopro molhado. Lançando-se furiosamente sobre o Atlântico, ventos alísios em forma de ondas se deslocam de leste para oeste carregando uma imensa quantidade de água que é arremessada sobre a costa de Pernambuco, Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte. A ciência chama esse fenômeno atmosférico de Distúrbios Ondulatórios de Leste (DOL), que está mais intenso devido à atuação de outro fenômeno chamado La Niña e também em razão das mudanças climáticas provocadas pelo capitalismo. Como contribuem significativamente para as chuvas na costa do Nordeste, estas são esperadas ansiosamente pelos agricultores da Zona da Mata, cujos cultivos são realizados durante o outono-inverno. Mas também podem causar eventos extremos de chuva, com alagamentos e deslizamentos de encostas.
Graças ao desenvolvimento dos satélites, há muitas décadas a ciência conhece e monitora esse fenômeno. E, certamente, os agricultores da Zona da Mata o conhecem ainda há mais tempo. Por isso, não dá para colocar na conta da natureza a tragédia que se abateu no Grande Recife e em outras cidades pernambucanas, que registrou, nos últimos dias, o maior número de mortes causadas por chuvas da história de Pernambuco. Até o momento, foram contabilizados 128 mortos, além de mais de 9 mil desabrigados.
Cada vez mais comum
Esses eventos se tornaram cada vez mais recorrentes. Além dos desastres de Pernambuco, tragédias semelhantes ocorreram no início do ano, em Minas Gerais, na Bahia e no Rio de Janeiro. Para além do excesso de chuvas, o principal problema que tem vitimado muitos brasileiros, a maioria pobre e negra, é a desigualdade social que empurra essa população para as chamadas “áreas de risco”. E isso é problema social relacionado ao insaciável apetite da especulação imobiliária que promove a segregação social e espacial nas grandes cidades. Sob o capitalismo, a terra é mais uma mercadoria. Os mais valorizados são aqueles terrenos bem situados, com fácil acesso às vias de comunicação, transporte, infraestrutura etc.. A população pobre é condenada a morar em regiões carente s em relação a todo tipo de infraestrutura, e muitas vezes vai parar nas encostas dos morros e nas várzeas dos rios, locais que não interessam à especulação. Essa lógica é que determina o modo de ocupação de uma cidade.
Segregação
Apenas em Pernambuco, o Serviço Geológico do Brasil já mapeou 58.310 moradias com 236.307 pessoas vivendo em 1.081 áreas de risco para deslizamentos e inundações. No Brasil o montante é de 3,9 milhões de pessoas vivendo em risco. Ao mesmo tempo, o déficit habitacional no Grande Recife chegou a 113.275 unidades em 2019, segundo a Fundação João Pinheiro.
A crise social, o desemprego e a fome empurraram ainda mais famílias pobres para os barrancos e encostas. Não é por acaso que 2022 é o que mais registrou mortes causadas por excesso de chuvas dos últimos 10 anos, segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM). Mais de 25% dos 1.756 óbitos dessa série histórica se deram apenas nos últimos cinco meses.
A culpa dos governos
A solução para evitar essas tragédias começa pela implementação de uma política de reformulação urbana profunda que ponha fim à especulação imobiliária, permita investimento em infraestrutura e habitações dignas à população pobre. Mas isso exige o enfrentamento contra o capital imobiliário, que banca as campanhas eleitorais dos principais partidos políticos.
Os governos sequer investem na prevenção de desastres. Segundo a CNM, entre 2010 e 2022, os últimos governos repassaram R$ 15,3 bilhões para o enfrentamento e prevenção, o que representa apenas 42% do que foi prometido.
Bolsonaro, que sobrevoou áreas mais atingidas pelas chuvas e disse que “infelizmente, essas catástrofes acontecem” , foi quem mais diminuiu a verba federal da prevenção de desastres. Segundo o portal Congresso em Foco, o Orçamento de 2022 prevê R$ 447,9 milhões para prevenção e resposta aos desastres. Mas o valor é 35,38% menor do que no ano anterior.
No caso de Recife, desde 2013, a Prefeitura executou apenas 17% do orçamento previsto para obras de urbanização em áreas de risco. A cidade, dirigida pelo governo do PSB de João Campos, tem 67% da sua área em regiões de morro, mas nunca houve nelas investimentos na garantia de infraestrutura.
Vulneráveis do clima
Aquecimento global: nem todos estão no mesmo barco
A tragédia das chuvas também serve de alerta para as mudanças climáticas. Nas últimas cinco décadas, no mundo inteiro os extremos climáticos estão cada vez mais intensos e frequentes, como chuvas intensas, secas, ondas de calor e de frio, furacões e tempestades. Um relatório produzido pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) revela que as chuvas já são 0,3% mais frequentes e 6,5 vezes mais intensas em todo o mundo. Caso a temperatura do planeta aumente em 2,7 C graus, isso resultaria quase o triplo da incidência atual de chuvas.
Mas é claro que nem todos vão sentir as mesmas consequências desse processo. Enquanto existir, o capitalismo continuará produzindo um enorme contingente de miseráveis, empurrando-os para morrer nas áreas de risco. Enquanto isso, os ricos capitalistas continuarão desfrutando da segurança de seus confortáveis e luxuosos condomínios. Os donos do dinheiro estão adaptados às mudanças climáticas.