Internacional

Portugal: Nos 50 anos da Revolução de Abril, a democracia dos ricos mostra os seus limites

Em Luta (seção portuguesa da LIT-QI)

14 de março de 2024
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Publicado originalmente no Portal do Em Luta
O resultado das eleições deste domingo deixa o país numa encruzilhada. A curta vitória da AD (Aliança Democrática), herdeira de Passos-Coelho, sobre o PS (Partido Socialista) após a queda da maioria absoluta de António Costa coloca os cenários de um novo governo sob uma nebulosa. Uma maioria parlamentar só pode surgir com a entrada do Chega no governo, ou pelo menos no acordo de governação, ou então com o PS a viabilizar o governo da AD, inflando ainda mais o Chega.

Combinada com o crescimento do Chega está a continuação da degradação da esquerda parlamentar — que ficou confinada, em termos de resultados eleitorais, a uma curta expressão nas duas grandes áreas metropolitanas do país, com a perda de representação do PCP em Beja.

É vital, num momento em que parte da classe trabalhadora e dos seus setores ativistas refletem sobre a insegurança associada ao crescimento explosivo do Chega, sobre a crise do regime democrático no país e sobre a perspectiva de uma renovada onda de ataques, debatermos a situação atual.

A crise não-superada de 2008, a Geringonça e o esgotamento da democracia dos ricos

A crise económica de 2008, a necessidade da burguesia imperialista de destruir as conquistas da classe trabalhadora para impor um novo patamar de exploração e a resposta dos atores políticos envolvidos nesse processo são parte fundamental da explicação da crise de regime que vivemos.

Portugal vive um processo de decadência desde os anos 80/90 com a integração do país na União Europeia (1986) e as grandes privatizações dos setores estratégicos da economia nos anos 90. Este processo de dependência e semicolonização deu um salto de qualidade com a intervenção da Troika em Portugal, pois concluiu-se a privatização de sectores estratégicos da economia, que passaram para o capital estrangeiro (CTT, TAP, Aeroportos, PT/MEO/Altice, etc.), acabou o último grande banco de capital português – o Banco Espírito Santo – e tornou-se regra a intervenção direta da UE sobre os desígnios da economia portuguesa.

Dentro da UE, Portugal é, sobretudo, um fornecedor de mão-de-obra barata e precária, daí o peso importante do investimento estrangeiro/multinacionais na economia portuguesa. Por isso, a crise de 2008 e a intervenção da troika significaram um rebaixamento muito grande dos direitos e condições da classe trabalhadora, que nunca foram recuperados pela Geringonça — ou pelo governo de maioria do PS que a sucedeu. Hoje, a economia portuguesa está assente em turismo e serviços, o que acentua ainda mais a dependência externa do país e o carácter periférico da sua economia.

A localização subordinada dentro da UE faz com que todas as decisões governamentais em Portugal sejam determinadas pelas regras europeias, a que Portugal se subordina. Daí a contenção austeritária durante a Geringonça e os Governos das contas certas do PS. A tão anunciada queda da dívida portuguesa abaixo dos 100% do PIB é fruto do governo das contas certas do PS, que asfixia o financiamento dos serviços públicos para se mostrar um bom cumpridor dos desmandos da UE.

Após as fortes contestações sociais contra as medidas da troika, o país viveu uma viragem política à esquerda, que levou a que o BE elegesse 19 deputados. Contudo, a resposta da esquerda parlamentar foi viabilizar o governo do PS com a Geringonça — resposta esta que impediu, naquele momento, uma crise existencial do PS motivada pela falta de alternativa política à direita tradicional. Porém, a Geringonça não inverteu o rumo de destruição do país, tampouco recuperou o país do sacrifício que o governo de Passos Coelho/PSD impôs.

Nesse contexto, a esquerda portuguesa (BE e PCP), jogando-se em defesa do PS, ao arrastar o descontentamento das lutas para o voto, e depois para a paralisia da base governamental, fez o jogo dos donos do país, tratando a democracia dos ricos como um fim em si mesmo, lutando apenas dentro do sistema, concentrando as suas forças para defendê-lo e não para construir uma alternativa para a classe trabalhadora.

No contexto dessa crise, a extrema-direita surgiu como último reduto de setores importantes das classes dominantes, desesperadas por um novo patamar de exploração e lucro. Por todo o mundo choveu dinheiro e cobertura mediática para esta extrema direita conservadora, patriota, identitária, aberta e socialmente regressiva. Não negando a profunda crise, e a sua incapacidade em superá-la, a classe dominante joga em dois tabuleiros, iludindo-nos com a defesa de uma democracia que não é nossa e oferecendo ao mesmo tempo um regresso aos tempos da ditadura, um regresso a um suposto passado glorioso, onde tudo estava no seu lugar (para eles).

A falência da democracia dos ricos

Dentro dos limites da democracia dos ricos, na melhor das hipóteses, o que está colocado é lutarmos para perder por pouco. Esta não é a nossa democracia. Defendemos os nossos direitos dentro dela, mas não a sacralizamos: pelo contrário, queremos superá-la para o bem da nossa sobrevivência enquanto espécie e da sobrevivência do nosso planeta. Não é sem ironia que, às portas dos 50 anos de Abril, temos perto de 50 deputados de extrema direita no poder.

Mas não é só por isso que dizemos que esta não é a nossa democracia. É  que esta democracia e estas instituições não são fruto da vitória da Revolução, mas sim do fim do processo revolucionário. São resultado do acordo possível que a classe dominante portuguesa conseguiu cozinhar com PS, PCP e MFA, à época líderes maioritários da classe operária portuguesa, para derrotar as ocupações, as expropriações, as greves espontâneas, o poder e a democracia operária e popular nas ruas, e evitar também o internacionalismo anticolonial e antiracista, que ameaçava o ideário racista de um país colonizador. Assim que possível, a democracia dos ricos tratou de eliminar os resquícios dessa revolução, tomando para si – isto é, para a classe dominante – as instituições do estado e fazendo-as funcionar a seu favor.

Hoje vivemos uma democracia na qual somos autorizados de forma simbólica a validar, dentro das escolhas altamente financiadas pelo poder, quem será o capataz dos trabalhadores e da juventude. Não é nossa — e, por essa razão, é ao dia de hoje impossível para boa parte dos trabalhadores ter casa própria para si e para os seus, grande parte de nós estamos obrigados a prolongar as nossas jornadas laborais com deslocações cada vez mais longas, os serviços públicos estão degradados e as nossas condições de vida estão em franco declínio.

Este balanço é fundamental, porque, durante estes 50 anos, Abril foi sendo esvaziado pelo pacto de concertação social entre PS e PCP e a classe dominante representada directamente pela direita democrática e conservadora. Ao mesmo tempo que o 25 de Abril se tornou num dia de democracia, cravos e liberdade, deixou-se para trás as disputas reais com a burguesia portuguesa. Ignorou-se também, em nome de uma mitologia democrática, o sacrifício heróico dos povos africanos nos 13 anos da luta de libertação, e o seu papel na eclosão de Abril. Mantiveram-se, portanto, no ideário nacionalista português, os sentimentos xenófobos e racistas de que hoje o Chega se aproveita.

O regresso dos que nunca foram

É um fato que o projeto do Chega não é apenas nacional, mas também está inserido numa rede internacional de extrema-direita, compartilhando estratégias e ideologias com figuras como Steve Bannon, Trump e Bolsonaro, e cavalgando assim uma onda internacional que é expressão de uma forte crise da ordem mundial. Contudo, o processo nacional que decorre hoje em Portugal tem as suas especificidades. Destacamos duas muito importantes.

A primeira é que a revolução portuguesa não sanou contas com o legado colonial e escravagista português. O lugar subalterno da revolução anticolonial no desfecho oficial da Revolução Portuguesa explica o porquê de, no campo concreto das relações sociais e laborais, jamais o racismo ter sido questionado em Portugal.

Todo o arco do poder e governações autárquicas brindaram as populações africanas e imigrantes que acudiram ao Portugal democrático no pós-25 de Abril em busca de melhores vidas com uma profunda segregação social e territorial, construindo uma divisão também racial do trabalho. Nesta, as populações negras são porta-estandartes da precariedade e sobrexploração, e as escolas, instituições e polícia viradas para eternizar essa relação. Neste país cronicamente racista, assente num profundo orgulho no processo que permitiu a escravatura transatlântica, a eleição de 49 deputados consequentes com a cola que une a identidade portuguesa é expressão também disso. Dizer o contrário é ignorar, entre muitas outras coisas,  o total descaso em relação aos complexos de ex-colono da população retornada e a raiva e trauma dos ex-combatentes ultramarinos. Soma-se a isso o esquecimento do massacre do povo timorense às mãos do regime pró-EUA da Indonésia de Suarto até que o silêncio cúmplice se tornasse ensurdecedor nos anos 90. Nestes 49 anos completos, da direita à esquerda, sempre se celebrou um Portugal atlântico viajante e não-racista, mas nunca se explicou como se superou o racismo e chauvinismo de um país com 5 séculos de império colonial. É obra!

A segunda razão para o crescimento do Chega é parte do contexto internacional, mas que em Portugal se concretizou na falta de saída radical para a crise social e política. A base eleitoral do Chega, longe de ser meramente ideológica, é composta também por aqueles descontentes que clamam por mudanças radicais. Com seu discurso populista, o Chega acaba por ocupar o espaço do descontentamento gerado pela crise social que assola o país. A grande questão que temos de nos colocar é: por que o Chega ocupa o espaço dos descontentes? É, em nossa opinião, a falta de resposta radical e independente aos problemas reais da crise social e política que vive o país — num contexto em que a esquerda parlamentar jogou suas forças para governar junto do PS.

Por fim, importa dizer que, por se alimentar do descontentamento dos setores médios da sociedade e fortalecer o discurso de ódio, o Chega pode ser, sim, um fermento para o crescimento do fascismo — mas é também fundamental rejeitar as generalizações simplistas que dão desde já um sinal de igual entre fascismo e extrema-direita. Dito isto, não há dúvidas de que é uma tarefa essencial do próximo período desmascará-la e combatê-la de todas as formas – ideologicamente, nas ruas, e com a construção de uma verdadeira alternativa.

Combater a extrema direita com uma alternativa da classe trabalhadora independente do PS!

Afirmamos que enquanto a saída apresentada for salvar a democracia dos ricos, vamos a caminho da barbárie. Não será possível combater a extrema-direita de mãos dadas com o PS e jogando as forças para dentro do parlamento burguês. A esquerda parlamentar, BE e PCP, deve resistir à AD e ao Chega no parlamento. Contudo, se pretendem uma alternativa política ao Chega, não podem novamente jogar água no moinho do PS.É preciso organizar a mobilização das ruas, bairros e locais de trabalho e construir uma alternativa  para que a classe trabalhadora seja a referência que arraste atrás de si os setores dos pequenos proprietários e classes médias descontentes com a situação atual de crise.

É preciso um programa que dê uma batalha de vida ou morte pela unidade da classe trabalhadora, contra a destruição moral e ideológica que representam o racismo, a xenofobia, a misoginia e a LGBTifobia. É urgente a construção de uma alternativa da classe trabalhadora e do povo pobre, que apresente um programa de independência de classe, que se coloque contra a exploração e a opressão, por uma sociedade verdadeiramente sustentável, ambiental e socialmente, e que aponte para a necessidade da saída revolucionária e socialista.