Negros

População negra e o novo Censo do IBGE: Mudanças qualitativas na luta e consciência racial

Claudio Donizete, operário do ABC e da Secretaria de Negros e Negras do PSTU

29 de dezembro de 2023
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21 de Março é uma referência ao “Massacre de Shaperville”, ocorrido na África do Sul, em 1960

Enquanto o governo Lula se distancia a cada dia da representatividade que diz exercer em seu terceiro mandato, o Censo de 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) vem revelando dados cada vez mais importantes para entender as mudanças sociais, e também culturais e políticas sobre a representatividade e autodeclaração de negros e negras em nosso país.

Mudanças qualitativas sobre a identidade racial nos últimos 30 anos

Desde o Censo de 1990 até o último, em 2022, houve um crescimento de mais de 100% das pessoas que se reconhecem diretamente pretas, segundo categoria do IBGE. Eram 5% e agora é 10,2% da população, atingindo 20,7 milhões de pessoas autodeclarados negras.

Destacamos a população negra autodeclarada para entendermos a extensão e metodologia da pesquisa, que usa atualmente a categoria “parda” de forma subjetiva, controversa e inconsequente com o avanço da consciência e luta racial nas ultimas décadas, que tiveram avanços importantes mas parciais. Expressão disso é a política de cotas e toda a luta contra o racismo ao redor do mundo, cujo um dos maiores expoentes foi a mobilização desatada ao redor do assassinato de George Floyd e, no Brasil, o enfrentamento contra o genocídio da juventude negra nas periferias pelo Estado e a Polícia Militar.

A juventude negra é a maior expoente da identidade racial

Reflexo disso se dá justamente na juventude negra entre 15 e 29 anos, a maior faixa racial do Censo 2022, onde 59,5% se autodeclaram pretos ou pardos contra 39,4% de autodeclarados brancos.

Na população do nosso país, a somatória de negros (pretos e pardos) é de 112, 8 milhões de pessoas, ou seja, 54,2% do total dos habitantes. Sendo que, em 3.245 municípios (58,3% do total), pardo é o grupo étnico-racial predominante, com destaque para as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, além do norte dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo.

O mito da democracia racial, a luta de classes e o contra o racismo

Os especialistas apontam pelo menos dois fatores importantes para o aumento da autodeclaração entre pretos e pardos: as políticas afirmativas e de cotas. E a autodeclaração racial como aumento da consciência racial nos país.

A tentativa de legitimação do “Mito da Democracia Racial” não se sustenta. Em um país como o Brasil, que preserva toda uma maldita herança escravocrata em sua burguesia e na sua prática racista cotidiana pelo Estado, as políticas públicas ajudam a entender os dados, mas não os qualificam e aprofundam social e politicamente seus significados ao longo das décadas de pesquisas do Censo.

Achamos esses dados importantes, mas agregamos que eles somente não explicam o avanço qualitativo nesses últimos 30 anos. É impossível não considerar toda luta contra o racismo, a opressão e a exploração desenvolvida nessas ultimas três décadas como fatores objetivos no avanço da consciência de raça e classe no Brasil e no Mundo.

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O conceito “pardo” veio pra confundir e não explicar

As controvérsias do termo “pardo” são seculares, como bem explica o professor de sociologia, Luiz Augusto Campos, do IESP-UERJ (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Ele descreve que a: “categoria ‘parda’ foi substituída, no censo de 1890, pelo termo ‘mestiço’, considerado à época ‘mais objetivo’. E no mais eugenista dos censos, o de 1920, a questão sobre raça desaparece da pesquisa sob a alegação de que a autodeclaração não fornecia uma base sólida para atribuir a “raça objetiva” de alguém.

E segue: “Só em 1940, já sob a égide do Estado Novo e de seu elogio à mestiçagem, que a questão retorna, mas agora nomeada como ‘cor’. Novamente, a categoria ‘pardo’ é suprimida, pela expectativa de que a população não reconheceria o termo de modo orgânico na linguagem cotidiana. No entanto, mais de 20% dos entrevistados recusou as opções disponibilizadas (‘branco’, ‘preto’ e ‘amarelo’), o que denotava certa preferência por categorias que indicavam tipos híbridos. É só em 1950 que a categoria ‘pardo’ retorna ao censo, permanecendo em quase todas as suas edições posteriores.”

Ou seja, o conceito ou categoria introduzida no Censo do IBGE de “pardo” não ajuda em nada na qualificação da população negra no Brasil. Essa classificação entre pardos e pretos é uma construção social, política e cultural da burguesia e do Estado brasileiro na tentativa de apagamento do peso de negros e negras em nossa história. É uma tentativa de desconstruir a nossa identidade racial e social e econômica.

Teorias racistas e a coloração da pele não diminui os problemas raciais dos não-brancos

Essa dubiedade nas classificações do Censo representa exatamente esse problema racial pós-abolição oficial da escravidão em 1888. Para apaziguar e buscar “clarear ou embranquecer” nossa classe, os africanos escravizados e seus descendentes, a política de mestiçagem foi proferida largamente pelo Estado e alguns intelectuais à época, tendo como maiores expoentes Gilberto Freire, em sua obra “Casa Grande e Senzala” e Euclides da Cunha. Defendiam a mestiçagem entre negros e brancos europeus para “apaziguar” as relações sociais e melhorar o desenvolvimento do povo brasileiro com a elevação da cultura europeia, justificando essa ideologia racista com o embranquecimento através da miscigenação em geral.

A Redenção de Cam (1895), Modesto Broco (Museu Nacional de Belas-Artes, Rio de Janeiro). A pintura expressa que os negros no Brasil desapareceriam em três gerações

E os critérios do IBGE colaboram até os dias de hoje com a tentativa de ignorar solenemente que somos um país majoritariamente constituído por negros e negras, traficados à força do continente africano pela burguesia brasileira e sua colonização europeia. Inclusive apoiada e financiada pelo Estado brasileiro através de instituições como o Banco do Brasil (leia aqui).

E que. depois de mais 388 anos de escravização, lutaram por liberdade, através de rebeliões quilombolas generalizadas e foram oficialmente tirados da senzala e jogados à própria sorte nos morros e periferias do país, onde até hoje são marginalizados e sem direto a uma vida digna.

Censo quilombola demonstra a urgência da Reparação Histórica

Pela primeira vez em um levantamento censitário brasileiro, a população quilombola foi identificada enquanto grupo étnico, no mais importante retrato demográfico, geográfico e socioeconômico do país.

O Censo de 2022 foi o primeiro a quantificar e qualificar a demografia quilombola no Brasil. O Nordeste concentra quase 70% dos quilombolas, tendo a Bahia, Maranhão e Pará com a representação de 61,15% do total de pessoas quilombolas.

Os dados indicam que 1,3 milhão de pessoas se identificam como quilombolas (pessoas que têm laços históricos e ancestrais de resistência com a comunidade e com a terra em que vivem). Das 5.570 cidades do país, 1.696 têm moradores quilombolas (30,5%). E 87,41% dessa população vivem fora de territórios oficialmente delimitados para quilombolas.

Promessas do governo Lula não se confirmam

No discurso, Lula prometeu combater as desigualdades, mas esses temas ficaram em segundo plano no seu primeiro ano de governo, em detrimento da garantia do apoio, particularmente do Centrão e da direita, às suas pautas econômicas e dos interesses do agronegócio e demais bancadas que representam interesses da burguesia e do imperialismo.

No caso do reconhecimento dos territórios quilombolas, essa secundarização é evidente, como relata lideranças quilombolas ao redor do país. “Um pedaço de terra, para boa parte do Brasil, é para gerar riqueza, para pôr no mercado. Para nós, é sobrevivência e cultura. A titulação não é um pedido de esmola para o Estado — é nosso direito e uma reparação histórica por todos os anos de escravidão”, relatou à BBC Brasil João Pio, líder do Quilombo dos Arturos, na cidade de Contagem, interior de Minas Gerais, que aguarda há 18 anos pela titulação definitiva de seu território.

O dirigente cobrou agilidade do presidente: “Estamos sofrendo especulação imobiliária e queremos nosso direito de preservar a sobrevivência e tradições — algumas delas que só existem aqui. Mas o processo é burocrático, o que é correto, mas poderia ser mais rápido. Dissemos isso ao Lula”, afirmou.

As perspectivas da luta contra o racismo diante dos dados do Censo

Os dados do Censo 2022 confirmam o avanço da luta contra o racismo e sobre a consciência das pessoas sobre as perspectivas individuais e coletivas na transformação social, política e cultural necessária para superação das desigualdades sociais e raciais no Brasil.

Reforçam ainda mais o debate e a necessidade da Reparação Histórica da escravidão no Brasil. Destacam quantativamente a população de maioria não-branca e quilombola, ressaltam a importância de políticas raciais, mas também de reconhecimento e titulação das terras quilombolas e indígenas urgentemente.

O Estado e os governos de plantão, incluindo o governo Lula, não avançam sobre esse tema há décadas, com o empecilho burocrático e determinado pela falta de prioridade política, ante a especulação imobiliária e do agronegócio sobre os territórios quilombolas e indígenas, inclusive com a violência e morte recorrente as comunidades em todo país.

É necessário avançar em um programa de raça e classe na defesa dos avanços e perspectivas concretas da superação do racismo no Brasil, a começar pelo fim do genocídio da juventude negra pelo estado e a PM. Por Reparação Histórica da escravidão, com imediato reconhecimento e titulação definitiva dos territórios quilombolas e indígenas, além de garantia dos subsídios necessários ao desenvolvimento dessas comunidades, da agricultura familiar e uma política de moradia popular a população negra em nosso país.