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Direito, ideologia e conservadorismo: Reflexões de um advogado militante a partir de Marx, Engels, Pachukanis e Stutchka

Adriano Espíndola, de Uberaba (MG)

25 de abril de 2024
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Neste ano de 2024 completo trinta e dois anos no meio jurídico. Esse tempo, que contabilizo desde a minha formação jurídica inicial, na UNIUBE (Universidade de Uberaba), na qual ingressei no já longínquo 1992, me permite afirmar que o conservadorismo e tendência à direita prevalece neste meio. Algumas possíveis razões para tanto, isto é, a predominância da tendência conservadora, podem estar relacionadas à própria natureza do direito e à sua função na sociedade burguesa. O direito, como conjunto de normas e regras estabelecidas numa sociedade, previstas para manutenção da ordem social e do status quo vigente, tem o potencial de atrair indivíduos adeptos do pensamento conservador, que acreditam na preservação das estruturas existentes, pessoas mais resistentes às mudanças radicais.

Marx e Engels, em “A Ideologia Alemã” (1845-1846), argumentam que o Direito é uma superestrutura que reflete os interesses da classe dominante. Afirmam que o Direito não é neutro, mas sim um instrumento de dominação de classe, utilizado para legitimar e manter as relações de produção capitalistas: “O direito nada mais é que a vontade da sua classe erigida em lei, uma vontade cujo conteúdo é determinado pelas condições materiais de existência da sua classe” (MARX; ENGELS, 2007, p. 98). Nesse sentido, o conservadorismo no direito pode ser entendido como uma forma de manter e reproduzir a ordem social burguesa.

Além disso, o direito está intimamente ligado ao Estado e às suas instituições. Muitos profissionais do direito, como juízes, promotores e advogados, trabalham diretamente com essas instituições ou aspiram a cargos públicos, por meio de indicações políticas ou concursos. Essa proximidade com estruturas de poder pode reforçar uma mentalidade que se alinha com a manutenção do status quo e valores conservadores. Mas não é só isso, a estrutura econômica do Brasil, baseada em uma forte presença do Estado e em relações de clientelismo, também influencia a mentalidade de juízes, advogados, promotores e serventuários. Não são poucos os que aspiram nomeações políticas e relações com o poder estabelecido, para avançarem em suas carreiras, o que pode fortalecer uma postura conservadora, alinhada com os interesses das classes dominantes, no meio jurídico.

Evgeni Pachukanis, em “Teoria Geral do Direito e Marxismo”, desenvolveu uma teoria marxista do Direito, argumentando que a forma jurídica está intrinsecamente ligada à forma mercadoria. Segundo Pachukanis, “o direito representa a forma, envolvida em brumas místicas, de uma relação social específica” (PACHUKANIS, 2017, p. 103), o que significa que o direito seria uma expressão das relações sociais de produção capitalistas, baseadas na troca de mercadorias e na ideia de sujeitos de direito formalmente iguais e livres. Essa concepção do Direito, como forma burguesa, pode ajudar a explicar seu caráter conservador, bem como a sua função na manutenção das relações de produção existentes.

Outro fator a ser considerado é a origem social dos profissionais do Direito e sua formação. O acesso ao ensino jurídico, historicamente em nosso país, é mais restrito a indivíduos de classes sociais mais privilegiadas, que tendem a ter uma visão de mundo mais conservadora, defendendo, conscientemente ou não, seus próprios interesses de classe. Embora alguns possam considerar que tenha havido avanços na democratização do acesso ao Ensino Superior, esse caráter de classe ainda influencia a composição e a mentalidade predominante na comunidade jurídica. O Brasil, todos sabemos, é marcado por profundas desigualdades sociais e concentração de renda. Por consequência, o acesso à educação jurídica de qualidade e às posições de prestígio no meio jurídico, via de regra, é historicamente restrito aos membros oriundos classes mais privilegiadas, contribuindo para a reprodução de uma mentalidade conservadora, uma vez que os profissionais do direito tendem a fazer parte (ou deles se tornar) dos estratos sociais que se beneficiam da manutenção do status quo na sociedade capitalista, da exploração da mais valia dos que vivem do trabalho, a classe trabalhadora.

Piotr Stutchka, em sua magistral obra “Direito e Luta de Classes”, que tive a oportunidade de conhecer ainda nos meus primeiros anos de profissão, defende que o direito é um sistema de relações sociais que corresponde aos interesses da classe dominante e é por essa classe defendido. Ele enfatiza o caráter classista do direito e sua função na luta de classes, afirmando o que “o direito é um sistema (uma ordem) de relações sociais correspondente aos interesses da classe dominante e tutelado pela força organizada dessa classe” (STUTCHKA, 1988, p. 16). Além disso, esse jurista, tão importante na minha formação, afirma que o direito não é uma ciência, mas sim uma ideologia, uma forma de consciência social que reflete as relações materiais de produção: “O direito é uma ideologia, isto é, um sistema de ideias e representações que servem para expressar, justificar e defender os interesses de uma determinada classe social” (STUTCHKA, 1988, p. 25). Numa sociedade dividida em classes com interesses antagônicos, o Direito serve como um instrumento de dominação e opressão, legitimando e perpetuando a ordem social existente, ou seja, o status quo.

Não se pode, além de tudo já exposto até aqui, não levar em conta que o direito brasileiro tem suas raízes, sua origem, no sistema jurídico de Portugal, que veio para o Brasil durante o período colonial. Esse sistema era baseado em valores e princípios conservadores, refletindo a estrutura social hierárquica e os interesses das elites da época. Em 11 de agosto de 1827, foi inaugurada a primeira faculdade de Direito no Brasil, por Dom Pedro I, mediante um decreto que criava dois cursos de Ciências Jurídicas e Sociais, um deles em Olinda (que depois foi para Recife) e o outro na cidade de São Paulo. Antes disso, a formação dos advogados brasileiros dependia de estudos em universidades europeias, principalmente em Portugal. Quem aspirava às carreiras jurídicas ou aos altos cargos administrativos no Brasil Colônia precisava viajar para a Europa para obter formação. Mesmo depois a independência, parte importante dessas influências permaneceram no direito brasileiro.

Além do mais, culturalmente, somos um país com uma forte tradição de autoritarismo e patrimonialismo, o que é refletido na forma como o direito é percebido e praticado. O direito, como já dito, é visto como um instrumento de manutenção da ordem, como um instrumento de proteção dos interesses das classes dominantes e não um mecanismo de transformação social e promoção verdadeira de justiça.

No entanto, é importante destacar que existem movimentos e iniciativas no campo do direito que buscam romper com essa mentalidade conservadora. O surgimento de perspectivas críticas como o Direito Alternativo, o Direito Achado na Rua, o Pensamento Crítico e o Coletivo Jurídico na CSP-Conlutas (do qual faço parte), entre outras iniciativas, que representam uma tentativa de repensar o papel do Direito, bem como de promover uma abordagem mais comprometida com a transformação social. Estas correntes desafiam os fundamentos ideológicos do direito, expondo as desigualdades e injustiças sociais, ao mesmo tempo que utilizam o Direito como instrumento de emancipação e de luta por direitos dos explorados e oprimidos. Ressaltam a necessidade de uma formação jurídica crítica e engajada nas questões sociais, que resultem em profissionais que atuem como parte das lutas por mudanças sociais, políticas e econômicas.

Essas correntes, ou melhor, seus membros, exatamente pelo perfil de classe do direito e, por consequência, do chamado Poder Judiciário, travam lutas quase que inglórias, enfrentando resistência e boicote no meio jurídico (tanto de julgadores, como juízes e desembargadores, de promotores de justiça, de advogados, professores, universidades e até mesmo de serventuários da justiça e entidades de classe), pois uma mentalidade conservadora, quando falamos de Brasil, se encontra profundamente enraizada nas instituições e na prática jurídicas, sendo necessário um esforço contínuo e coletivo para minimamente transformá-la. É essencial que mais Profissionais do Direito se engajem em uma reflexão crítica sobre seu papel na sociedade e busquem formas de utilizar seus conhecimentos e habilidades para promover um enfrentamento à situação ora em comento, bem como ao sistema da qual ela é parte fundamental, o sistema capitalista. Isso pode envolver a participação em movimentos sociais, a atuação em causas progressistas, a produção de conhecimento crítico e a formação de redes de apoio e colaboração entre profissionais comprometidos com mudanças sociais.

Somente por meio de esforço coletivo, em aliança com os movimentos de trabalhadores (sindical e popular) e de enfretamento as opressões, que seja persistente, se fará possível desafiar com sucesso e, quiçá, superá-la, a mentalidade conservadora predominante no meio jurídico, permitindo a consolidação de correntes que defendam um Direito mais inclusivo, democrático e comprometido com a emancipação humana e superação da sociedade de classes. Tema complexo, mas tenho certeza que a reflexão crítica e o engajamento dos Profissionais do Direito podem fazer a diferença na construção de uma sociedade mais justa e igualitária, onde o ser humano não seja o lobo do próprio ser humano, que não haja uma classe explorada e oprimida por outra.

As contribuições de Marx, Engels, Pachukanis e Stutchka, que aqui mencionei, o seu estudo aprofundado, pode fornecer uma base teórica sólida para tanto, que leve à compreensão das raízes do conservadorismo no Direito, na Academia, na OAB e no Poder Judiciário e da sua relação com as estruturas socioeconômicas capitalistas. As suas análises são convites ao questionamento da natureza classista do Direito, bem como para procurarmos formas de transformá-lo num instrumento de emancipação social e de verdadeira justiça.

Referências

MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
PACHUKANIS, E. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2
STUTCHKA, P. I. Direito e luta de classes: teoria geral do direito. Tradução de Sílvio Donizete Chagas. São Paulo: Acadêmica, 1988