Nacional

Bolsonaro, as Forças Armadas e a tentativa de golpe

Mariucha Fontana

21 de fevereiro de 2024
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Os fatos revelados pela operação da Polícia Federal (PF) estão longe de toda verdade, mas mostram o papel chave e específico das Forças Armadas na extrema direita brasileira.

Além de revelarem a participação de parte da alta cúpula das Forças Armadas na trama golpista, mostram que, os que não aceitaram dar o golpe, sabiam do andamento do mesmo e não disseram nada a ninguém. De maneira que, muitos articulistas da própria imprensa burguesa não botam a mão no fogo sobre o que aconteceu exatamente. Ao ponto de muitos se questionarem se os demais foram realmente contrários, ou se apenas não aceitaram na “hora H” participar. Um articulista do jornal “Folha de S. Paulo” questiona: se toda conspiração foi feita com conhecimento dos superiores, por que os golpistas não foram presos? Por que golpistas foram ou estavam para ser promovidos ou nomeados para postos importantes? Os comandantes queriam abafar o caso ou temiam eles mesmos serem derrubados, presos ou mortos?

Os fatos antes conhecidos e os agora revelados

Em janeiro do ano passado, logo após o dia da intentona golpista do dia 8, foi encontrada uma “Minuta do Golpe” na casa de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Bolsonaro.

Em maio, Mauro Cid foi preso, sendo libertado em setembro após acertar uma delação premiada com o STF. Ele implicou Bolsonaro nos planos de golpe de Estado, no escândalo das jóias sauditas e na fraude em cartões de vacinação da Covid-19.

Bolsonaro teria tido acesso à “Minuta do Golpe” e fez alterações nela. O documento determinava a prisão de várias autoridades, incluindo o ministro Alexandre de Moraes, e convocava novas eleições.

Tentativa de golpe foi articulada

A reunião de Bolsonaro com seus ministros, onde se discute a proposta de golpe, foi realizada no 5 de julho de 2022. Dias depois, Bolsonaro realiza uma reunião com 70 embaixadores e questiona a urna eletrônica e as eleições.

Parte da burguesia reage. O departamento de Estado dos Estados Unidos, que desde 2021 já vinha enviando emissários pra segurar as FFAA, no dia seguinte à reunião com os embaixadores endossou o sistema de votação em comunicado.

Na semana seguinte, o Secretario de Defesa dos EUA veio ao Brasil, realizou encontro regional de Ministros da Defesa, e deixou mensagem nítida aos militares de que não haveria apoio a golpe. Mensagem reforçada pela General dos EUA responsável pelo Comando Sul (que cobre a América Latina). Também veio representante da CIA. Como disse à BBC o ex-Embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Michael McKinley, “o Secretário de Defesa, o chefe da CIA, o assessor de Segurança Nacional, todos visitaram o Brasil em ano eleitoral. Isso é normal? Não. Não é!

A nossa avaliação era de que seria muito improvável um golpe vitorioso, por não haver apoio na maioria da burguesia e no governo dos EUA nesse momento, diferente de 1964. Mas, dizíamos que era possível uma tentativa de golpe, por uma combinação de fatores: Bolsonaro tinha uma base mobilizada; tinha apoio de uma fração da burguesia, especialmente do agronegócio; tinha incidência grande nas Forças Armadas e nas polícias; e referência em Trump.

A rigor, esta investigação revela que houve uma tentativa de golpe e que a participação da cúpula das Forças Armadas, por ação e por omissão, foi maior do que era de se esperar, perante a movimentação do imperialismo e da burguesia.

Cronologia

Lembremos os seguintes eventos:

Terminadas as eleições, final de outubro/início de novembro de 2022 – foram bloqueadas 814 estradas no país

02/11 – Atos na frente dos quartéis clamando por golpe militar. Parte dos manifestantes permaneceram acampados: 43 mil, segundo o Exército
11/11- Os comandantes das Forças Armadas Almir Garnier (Marinha), Marco Antônio Freire Gomes (Exército) e Carlos Baptista Junior (Aeronáutica) assinaram uma nota conjunta “Às Instituições e ao Povo Brasileiro” em defesa dos protestos
15/11 – Manifestação em Brasília em frente ao Quartel Geral do Exército, que teve o custo R$ 100 mil financiado pelo agro, segundo áudio de Mauro Cid ao General Freire Gomes
28/11 – Coronel Correa Neto convocou reunião com Oficiais das Forças Especiais (Kids Pretos), que no dia 12/12 foram centrais no quebra-quebra em frente à sede da PF, nos 8 veículos incendiados e nas lojas saqueadas
8J – Kids Pretos fazem os movimentos mais decisivos na invasão dos 3 poderes

Os novos fatos

– A “Minuta do Golpe” foi apresentada aos comandantes do Exército, da Marinha e ao ministro da Defesa no começo de dezembro;
– Segundo Mauro Cid, o general Estevam Theófilo, responsável pelo Comando de Operações Terrestre aprovou a minuta. A Marinha também. Freire Gomes do Exército e o general Batista da Aeronáutica não aprovaram;
– O general Heleno comandava uma força paralela do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que monitorava adversários e a localização do ministro Moraes, que, segundo a PF, seria preso em dezembro;
– Os generais que não toparam o golpe, no entanto, sabiam da conspiração e não falaram nada com ninguém. Pelo contrário, seguiram com suas nomeações, promoções e em silêncio sobre os golpistas.

Bolsonarismo: a especificidade da extrema direita brasileira

As raízes socioeconômicas e políticas da extrema direita dizem respeito à crise do capitalismo, fazendo parte de um fenômeno mundial. Aqui, a profunda decadência do país, administradas por PSDB e PT durante anos, nos trouxeram até Bolsonaro.

O PT governou e continua governando nos marcos do capitalismo e do ajuste neoliberal exigido pelo sistema. Esse processo penaliza a classe trabalhadora, a fragmenta, a empobrece, bem como aos setores médios, em benefício dos monopólios.

Esse processo deu base ao bolsonarismo e ao governo semi-bonapartista de Bolsonaro, cujo projeto era mudar o regime. Algo que se combinou com uma especificidade brasileira:- as Forças Armadas, de tradição golpista e que saíram intactas da ditadura, foram um componente fundamental do governo Bolsonaro.

Parte dos dirigentes da tentativa golpista foram generais que, contudo não conseguiram arrastrar a maioria do Alto Comando. Ao que tudo indica, não por legalismo ou “apreço à democracia”, mas porque Biden dessa vez não queria (até porque fortaleceria Trump), e no momento nem a maioria da burguesia brasileira.

Pela primeira vez, desde a ditadura, tivemos um governo abertamente de extrema direita. A volta dos militares para a política mostra a profundidade da crise. Atesta a falência e esgotamento da Nova República. Um país que vem vivendo um processo profundo de decadência em meio à crise mundial do sistema capitalista.

Por sua vez, o pacto e a Lei da Anistia, nos anos 1980, impediram um acerto de contas com a ditadura, preservando as forças armadas intactas,e, agora estão cobrando o seu preço.

Sem anistia para golpistas!

Governo Lula-Alckmin não enfrenta a direita, concilia com ela

Lula e Alckmin se reúnem com empresários Foto Divulgação

O governo de Lula-Alckmin, de alianças ampla com a burguesia, não combate a extrema direita. Seja do ponto de vista do projeto socioeconômico, seja no que se refere a enfrentar e tentar resolver uma tarefa política democrática inconclusa e muito importante, não dando anistia, não conciliando com golpista e acabando com seus privilégios. Na verdade, faz o oposto.

Lula apostou na pacificação com as Forças Armadas da ditadura, e aposta que a democracia dos ricos e a atual institucionalidade burguesa vai garantir liberdades democráticas. E que os bilionários capitalistas serão sempre muito agradecidos ao seu governo social-liberal.

Mas a aliança com os bilionários capitalistas e com a Faria Lima (símbolo do poder do capital), com o PSDB e demais partidos burgueses, assim como com parte da base bolsonarista, nos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal, que o seu Arcabouço Fiscal expressa, reproduz ,ainda que de forma diferente, as mesmas condições sociais que deram base ao bolsonarismo.

A política de governar em aliança com a burguesia é, de fato, uma aliança contra a classe trabalhadora e contra as classes médias, em favor das grandes empresas, bancos, fundos de investimentos.

Essa política tem um efeito duplo: o efeito objetivo de promover a precarização do trabalho, a fragmentação da classe trabalhadora, a concentração de capital que esmaga o pequeno proprietário. E o efeito subjetivo tremendo da decepção, desorganização e desmobilização da classe trabalhadora.

No tocante às Forças Armadas, é uma característica terrível deste modelo de governo conciliar com a cúpula militar. Precisamos lembrar de Allende no Chile, que colocou Pinochet como ministro do Exército.

Lula deixa nas mãos do STF a punição parcial dos golpistas e estende a mão à pacificação com a cúpula das Forças Armadas, mantendo todos seus privilégios intocados. Começou por colocar Múcio como ministro da Defesa. Depois, por escolher o bolsonarista general Arruda para o Exército, que só saiu pós-8J. O mesmo Arruda que não queria abrir mão de Mauro Cid para o posto de responsável pelos Batalhão de Operações Especiais. O general Estevam Theófilo, do Comando de Operações Terrestres, que concordou com a “Minuta do Golpe” e seria chave no mesmo, se manteve durante todo primeiro ano do governo Lula no seu posto, só indo para a reserva em novembro.

Os privilégios da cúpula militar também seguem intocados. Basta dizer que, mesmo se condenados pela justiça civil, a punição está condicionada às decisões da Justiça Militar. Se perdem a patente e são afastados da força, mantém a aposentadoria para os herdeiros. Até serem julgados, seguem as promoções e os salários. O tenente coronel Mauro Cid, por exemplo, se não for julgado até abril deve ser promovido a coronel e seu salário deve ir de R$ 26 mil para R$ 32 mil.

Lula ainda mantém o artigo 142, exigido pelos militares e interpretado por eles como sendo as Forças Armadas um poder moderador no país. O governo não se empenha para que a Comissão da Verdade e dos Mortos e Desaparecidos resgate a nossa memória. Joga para debaixo do tapete tarefas democráticas importantes, demonstrando que aliança com a burguesia é também a não resolução sequer de questões políticas democráticas.

Prisão e punição para Bolsonaro, militares golpistas e seus financiadores

A classe trabalhadora deve exigir investigação e punição até o final de Bolsonaro, dos militares golpistas e dos empresários, assessores e políticos envolvidos. Mas, deve confiar nas suas próprias forças, na sua mobilização, na independência política de classe, no caminho da sua autodefesa.

Em 31 de março deste ano o golpe militar de 64 fará 60 anos. E até hoje não houve punição ou prisão de nenhum torturador, as empresas que colaboraram com a ditadura ficaram ilesas e as PMs oriundas do regime militar, intactas.

“Sem anistia para os golpistas” é uma bandeira que só podemos conquistar com independência de classe e com mobilização. O caminho da Frente Ampla não apenas não derrota os golpistas, como desarma completamente os trabalhadores frente a ela.