Streams de sangue: Será que Daniel Ek, o dono do Spotify, vai se juntar às fileiras de outros assassinos corporativos?
Escrito por Rory Hughes para a revista britânica Astral Noize; traduzido por Karol-Gabriel Tolstoy
Em 9 de novembro de 2021, o CEO da Spotify, Daniel Ek, orgulhosamente escreveu em seu Twitter que, através de sua outra empresa, Prima Materia, investiria 100 milhões de Euros na Helsing, uma startup de tecnologia de inteligências artificiais militares. Isso vem na sequência de uma promessa no ano anterior de investir 1 bilhão de Euros em projetos de longo alcance de empresas de tecnologia europeias, que ele considera que receberem pouco financiamento comparado com as dos EUA. No mesmo tweet, Ek diz que “a Prima Materia foi fundada para servir como parceira de equipes como a da Helsing: ambiciosos, éticos, e comprometidos com a missão de construir uma sociedade melhor“. Ao falar em uma conferência online da Slush Music, uma associação corporativa da área, Eki disse que “a Europa precisa de mais super-empresas para desenvolver e aprimorar o ecossistema, mas, ainda mais importante, para que tenhamos chance de enfrentar os problemas infinitamente complexos com os quais nossa sociedade está lidando no momento”.
O investimento gerou revolta tanto em usuários quanto em músicos, que se enfureceram com a ideia de estarem financiando guerra com música. A história está cheia de investimentos moralmente ambíguos por parte de executivos e magnatas que ofendem consumidores, e nesse caso, Daniel Ek foi bastante público em relação aos seus. Será que isso é a arrogância de um jovem empresário rico, ou será que ele realmente, e inocentemente, esperava uma resposta positiva do público – ou ainda, será que ele está apenas honrando o dogma de transparência da sua Suécia natal?
Como chegamos aqui?
Daniel Ek, nacido em Estocolomo, capital da Suécia, iniciou sua carreira de empresário bastante cedo, criando websites aos 13 anos, e aos 18 já estava ganhando até 50.000 dólares por mês e supervisionando um time de 25 pessoas. Ele largou a faculdade e ocupou cargos importantes em companhias de tecnologia como uTorrent e Stardoll antes de fundar o Spotify em 2006.
No início dos anos 2000, plataformas como Napster, Limewire, Kazaa e PirateBay transformaram completamente a maneira como consumimos música. Nos acostumamos com encontrar música rápida e gratuita, e isso aconteceu mais do que em nenhum lugar na Suécia, em que a política do governo de ampliar a banda larga para todos ainda os permite alcançar velocidades online que nenhum outro lugar do mundo consegue. A indústria da música estava sob ameaça, e a promessa de Ek era criar uma alternativa rápida e barata à pirataria musical, algo que beneficiaria usuários, músicos e a indústria.
Em fins de 2021, o Spotify tinha cerca de 365 milhões de usuários. Nossas formas centrais de consumo de música mudaram novamente, e apesar da promessa inicial de Ek de que todos seriam beneficiados, contraditoriamente a realidade mostrou que quem paga são os artistas, que ganham valores miseráveis pelo seu trabalho até quando se compara com outras plataformas de streaming. Por um tempo isso causou muito pouco dano na reputação de Ek, que em 2017 foi nomeado para a Power 100 List da Billboard como a pessoa mais importante da indústria da música.
As críticas a Ek estão crescendo, no entanto, notavelmente a partir de 2020, quando ele disse, em uma entrevista com o Music Ally, que os músicos “não podem gravar um álbum a cada 3 ou 4 anos e achar que isso basta“, revelando que, por trás de sua máscara de amante da música, na verdade ele acha que a música é nada mais que uma mercadoria.
O que sabemos sobre a Prima Materia e a Helsing?
A Prima Materia é um fundo de investimentos fundado por Daniel Ek e Shahil Khan, diretor de projetos especiais da Spotify. Em sua página está escrito: “Somos um fundo de investimentos europeu que constrói, nutre e compra empresas para o longo prazo. Através de nossas companhias, nós desenvolvemos inovações tecnológicas e científicas ambiciosas para resolver os maiores desafios do mundo e ajudar a sociedade a progredir em direção a um futuro melhor. Dizem que a Europa tem uma chance de desenvolver sistemas de inteligência artificial de uma maneira ética, transparente e responsável” – ambições morais que, dizem, compartilham com a Helsing.
Já a Helsing é uma empresa de tecnologia de inteligência artificial militar fundada em 2021, “focada em servir a países que cumpram os mais altos padrões democráticos“. Até agora eles trabalham com as forças armadas da Inglaterra, França e Alemanha. “Altos padrões democráticos”, claaaaaaaro – o Reino Unido, por exemplo, está no momento boquiaberto com constantes novidades sobre o quanto o nosso próprio Primeiro-Ministro desrespeitou e sabotou suas próprias restrições devido à pandemia de Covid, e estamos tão habituados com nossa própria democracia falida que o fazemos sem nem piscar.
Diz o manifesto da Helsing: “Acreditamos que o software – e em particular as inteligências artificiais – serão a chave para proteger as democracias liberais de ameaças. Nossa ambição é atingir a liderança global em tecnologias de processamento de informação em tempo real, transformando dados sensoriais desestruturados em vantagens de informação para governos democráticos. Nossa plataforma busca garantir as imagens mais claras possíveis em qualquer ambiente de operações. Estamos procurando pessoas que tenham o coração no lugar certo, que concordem com nossa convicção de que os valores liberais democráticos merecem ser protegidos, para nós mesmos e para as gerações futuras”.
Graças quase que inteiramente a Daniel Ek, o financiamento do Helsing Series A arrecadou 102.5 milhões de Euros até o momento, e agora eles afirmam ter um valor de mais de 400 milhões de Euros. Além disso, Ek agora será parte do conselho diretor da companhia.
O que os músicos acham desse investimento?
O site de música Resident Advisor noticiou que 80% das respostas no Twitter ao post de Ek foram negativas, incluindo 9%% dos retweets. O RA também conversou com vários músicos sobre o investimento, incluindo o produtor de electro fusion Darren Sangita, que tuitou “#BoicoteaoSPOTIFYjá!! Cancelem suas assinaturas hoje. Os artistas e amantes da música não podem apoiar a indústria de IAs militares! Registre sua raiva contra o envolvimento do #Spotify no patrocínio à indústria armamentista. Isso é tão nojento. A música NÃO é guerra! Isso é tudo errado em todos os níveis.”
Conversando com a RA, Sangita disse que“inteligência artificial nesse caso significa usar computadores para processar informação cem vezes mais rápido para transmitir uma taxa de mortes mais alta. […] Nós acreditamos que a música deve ser uma ferramenta poderosa para a paz, ou estaremos contradizendo completamente nossa filosofia musical.”
A RA também conversou com artista de vapowave da Austrália b l u e s c r e e n, que os disse: “A guerra é o inferno […] Não há nada de ético nisso, não importa como se apresente. Eu também saí porque ficou visível muito rapidamente que o CEO da Spotify, como todos os bilionários, só enriqueceu às custas da exploração de outras pessoas. Como artista eu não posso moralmente concordar com pagamentos inadequados de royalties para pessoas cujo trabalho é toda a razão para o sucesso de Daniel Ek.”
Outros músicos se preocupam com as possíveis implicações do investimento de Ek, mas temem as consequências do boicote. Aryan Ashoori, fundador do coletivo e selo londrino Outtalectuals, disse à RA que seria “suicídio profissional” tirar seus artistas da plataforma. “Eu não concordo com o que eles estão fazendo, mas não é uma decisão individual. […] Nós representamos cerca de 150 artistas diferentes, e eu não poderia tomar uma atitude dessa em nome de tanta gente.”
Sameer Gupta, percussionista e compositor do Brooklyn, cancelou sua assinatura do Spotify e está convocando outras pessoas a fazerem o mesmo oferecendo 95% de desconto em toda sua discografia no site BandCamp.
“Isso já é algo que estava se gestando, mas o desejo do CEO da Spotify de investir em tecnologia militar foi a proverbial gota d’água.”, ele disse à RA. No entanto, ele disse que “não posso tirar tudo da Spotify porque num espírito colaborativo, não é inteiramente minha escolha fazer isso com todas as músicas”, adicionando que “é importante que não deixemos o poder da música ser cooptado pela agenda das corporações. Nós, amantes e criadores de música, temos o poder de pressionar a indústria no sentido que queremos.”
É pouco surpreendente que essas notícias ofendam os músicos. O modelo de Ek funciona sistematicamente às custas dos trabalhadores, e com cada vez mais e mais notícias mostrando evidências de que ele é duas-caras e entende a música apenas como um mecanismo de lucro, que motivo os músicos teriam para confiar nele ou apoiá-lo?
Alguns artistas veem o boicote como um tiro no pé, e isso ilumina uma questão mais ampla e sombria: o Spotify está se tornando para músicos o que a Amazon já é para escritores a algum tempo, um modelo de mercado cujo sucesso relativo significa que outros caminhos se tornaram impossíveis.
O que podemos concluir?
Ek falou em entrevistas do conceito sueco de allemansrätten, a “liberdade para vagar”: o direito do público de andar, pedalar, esquiar e acampar em qualquer lugar exceto terrenos privados e algumas áreas protegidas. Ele fala sobre como seu país natal é construído sob o pilar da confiança entre as pessoas, e que essa confiança é o coração de todas as suas empresas, incluindo o modelo da Spotify. Será que há alguma chance que Ek realmente queira fazer bem através de seus investimentos, que essa riqueza não tenha destruído seu compasso moral, como fez com tantos outros? Pode-se cogitar isso, mas não há nenhuma prova.
Nesse momento, não está claro que tipo de impacto o sucesso da Helsing pode ter em assuntos mundiais. É uma empresa que diz estar no ramo de proteger pessoas, ou “democracias liberais”, como eles dizem, mas o quanto um usuário ou artista médio da Spotify pode confiar nisso, ou começar a dissecar as implicações de suas parcerias com as forças armadas da Europa? Afinal, nós já vimos o que muitas “democracias liberais” já fizeram em nome da “paz”.
No momento, a Spotify controla cerca de um terço do rendimento total do mercado de streaming de música. O streaming é cerca de 85% da indústria musical. Quando uma única empresa domina qualquer ramo, geralmente a indústria inteira acaba sendo controlada por algumas poucas e seletas mentes – às vezes uma única. O investimento que estamos debatendo agora é um que sai da esfera da indústria da música e entra na indústria da guerra.
Com as mentalidades monopolistas e modelos de comércio a um clique de hoje em dia, a realidade é que você pode estar financiando qualquer tipo de negócio, dos mais prósperos e magnânimos aos mais nojentos e criminosos, sem ter a menor ideia disso. Dessa vez, nós sabemos para onde está indo o dinheiro e é um lugar horrível, mas as consequências do investimento de Ek ainda estão na balança. A questão real é: de quantas decisões como essas mais nós nos permitiremos ser parte?