Nacional

Sem reconhecer apartheid, governo brasileiro aprofunda cumplicidade com Israel

Soraya Misleh, de São Paulo

1 de junho de 2023
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Governo do Brasil e Israel assinam parceria para inovação tecnológica nos portos

Depois de negociar a aprovação de matérias no Congresso às custas de direitos dos povos indígenas e preservação do meio ambiente, o governo brasileiro novamente aperta as mãos sujas de sangue de Israel, em detrimento de outro povo originário – o palestino. Sem reconhecer o apartheid, o País segue sua trajetória de cumplicidade histórica com a contínua Nakba (catástrofe desde a formação do Estado sionista em 15 de maio de 1948 mediante limpeza étnica planejada).

O ministro de Portos e Aeroportos, Márcio França, participou da Missão Internacional Porto & Mar Brasil-Israel 2023 em Tel Aviv no final de maio, quando assinou, como divulgado no site oficial do governo brasileiro, “carta de intenções para a troca de tecnologias e inovações entre os dois países, voltadas aos setores portuário e aeroportuário”.

Conforme a nota, um “dos principais objetivos é conhecer as inovações tecnológicas desenvolvidas por 12 startups israelenses para a cadeia portuária e logística. Fortalecer as oportunidades de colaboração em projetos e desenvolver negócios de maneira conjunta também fazem parte do acordo”.

A comitiva brasileira, organizada pelo Grupo Tribuna e formada por empresários, contou ainda com a presença de Eduardo Nery, diretor-geral da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), que também subscreveu o compromisso com o apartheid. A cumplicidade alcança a Prefeitura de Santos, com seu secretário de Governo, Fábio Ferraz, também dando seu aval no ensejo. Pelo acordo, a cidade passará a contar com uma “Embaixada de Inovação de Israel”.

Às custas de vidas palestinas

A nota do governo brasileiro apresenta que o “terminal de Ashdod, que fica a cerca de 40 quilômetros de Tel Aviv, é considerado o mais moderno complexo portuário de Israel”.

Ao saudar o acordo, ignora que as inovações tecnológicas em questão, como já amplamente denunciado pelas organizações palestinas e solidárias que integram a campanha BDS (boicote, desinvestimento e sanções), são resultado de “testes em campo”: leia-se, nos verdadeiros laboratórios humanos que Israel converte os palestinos na contínua Nakba. No bojo dessas tais inovações, estão as relativas a cibersegurança, amplamente utilizadas no monitoramento, vigilância e controle de vidas palestinas sob apartheid.

Como afirmou um palestino de Jerusalém, “a Cidade Velha, as ruas e becos costumavam ser nossos espaços sociais coletivos, nossas salas de estar. Agora, não são apenas nossas salas de estar vigiadas, mas eles podem até ver por baixo de nossas roupas. Nossa privacidade e liberdade são sistematicamente violados”. Relatos como esse constam de relatório elaborado em 2019 pela organização palestina de direitos humanos Al Haq, em parceria com o Conselho Social e Econômico das Nações Unidas, intitulado “A indústria de vigilância e os direitos humanos: o mercado de Israel de ocupação da Palestina”.

Desde antes de seu estabelecimento em 1948, por meio da limpeza étnica de centenas de milhares de palestinos, Israel mobilizou seu aparato militar e de vigilância para desapropriá-los, fragmentá-los e enfraquecê-los ainda mais. O Corpo de Inteligência das Forças de Ocupação de Israel, Unidade 8200, foi fundado em 1952. Desde então, tem a tarefa de coletar informações e decifrar códigos. A espionagem e vigilância em massa dos palestinos é a força motriz por trás de grande parte do rápido desenvolvimento de novas tecnologias em Israel”, descreve Apoorva PG, coordenadora de campanhas na Ásia e Pacífico do BDS, em artigo publicado em fevereiro deste ano no Transnational Institute.

Ainda conforme a ativista, a “Unidade 8200 pode grampear qualquer conversa telefônica” na Palestina ocupada. Há câmeras de reconhecimento facial instaladas – “uma para cada 100 palestinos” – na Cidade Velha de Jerusalém, assim como nos checkpoints. Ela traz alguns exemplos: “Informações privadas são usadas para chantagear os palestinos para que se tornem informantes. Câmeras Hawk Eye [usadas por exemplo pela Federação Internacional de Futebol – Fifa como VAR] projetadas para ler placas permitem que as forças policiais israelenses obtenham informações e localização de veículos em tempo real.

Há também uma espécie de “Facebook para palestinos” a serviço das forças de ocupação – o aplicativo ‘Blue Wolf’ [Lobo Azul] -, que captura imagens de palestinos em toda a Cisjordânia ocupada e as compara com o banco de dados administrado pelos militares e inteligência israelenses. “Soldados israelenses são recompensados ​​por capturar um grande número de fotos de palestinos sob ocupação”, pontua a ativista em seu artigo.

Ela vaticina: “Para as empresas israelenses envolvidas no desenvolvimento de tecnologias de vigilância e spyware, os territórios ocupados são apenas um laboratório onde seus produtos podem ser testados antes de serem comercializados e exportados para o mundo todo […].” Um negócio bastante lucrativo, que sustenta o apartheid e a colonização. Suas exportações bateram recorde em 2021: US$ 11 bilhões, um crescimento de 61% em relação ao ano anterior.

Apagamento

Cartão de visita para esses negócios, o porto saudado como modelo pelo Brasil fica na cidade de Ashdod, batizada com o mesmo nome após 1948, a qual foi construída sobre Isdud, uma das mais de 530 aldeias e cidades palestinas inteiramente despovoadas na limpeza étnica em outubro daquele ano – ao que massacres foram cometidos pelas gangues paramilitares sionistas. Seus mais de 45 mil habitantes estão entre os 800 mil expulsos na Nakba.

O historiador palestino Nur Masalha, em seu livro “Palestina: quatro mil anos de história”, demonstra o apagamento histórico que segue vivo em discursos e ações políticas, e desmonta argumentos deslumbrados, repercutidos pela mídia, sobre as proezas de Israel que beiram a mítica de que teria feito “florescer o deserto”.

Sobre Isdud, por exemplo, revela que há evidências arqueológicas do alto grau de desenvolvimento também nas cidades e aldeias portuárias filisteias na Palestina antiga, já em tempos medievais. O “moderno complexo portuário”, edificado sobre os cadáveres dessas localidades, nada mais é do que herança da usurpação não só da terra, mas histórica dos palestinos.

Dívida histórica

Muitos palestinos e palestinas ficaram felizes e aliviados em ver novamente, a partir da eleição de Lula, notas da diplomacia brasileira condenando Israel por mais uma incursão à Esplanada das Mesquitas, pela contínua expansão de assentamentos e bombardeios em Gaza, como no mês de maio último – apesar de seus limites. Totalmente compreensível para quem segue se sentindo abandonado pela chamada “comunidade internacional” e viu quatro anos de asquerosa e abominável propaganda explícita de Israel durante o governo do Bolsonaro, enquanto o sangue de seu povo era (e continua a ser) derramado.

Mas, arrancado da cadeira o genocida representante do sionismo na Presidência, inclusive com o voto majoritário e correto de palestinos, o caminho não é depositar confiança no governo e esperar. É fortalecer a mobilização.

O Brasil tem uma dívida histórica a saudar com o povo palestino. Não apenas presidiu, através do diplomata Osvaldo Aranha, a Assembleia Geral das Nações Unidas que recomendou a partilha da Palestina em 29 de novembro de 1947, mas votou favorável a essa divisão, que significou nada menos que sinal verde à limpeza étnica sionista planejada levada a cabo logo na sequência e que segue até hoje.

Lula infelizmente não representou ponto de virada nessa trajetória. Durante seus governos anteriores, o País se tornou o quinto maior importador de tecnologia militar israelense do mundo. Se não havia qualquer expectativa de ruptura com essa vergonhosa classificação durante o governo do genocida Bolsonaro, muito ao contrário, a caneta de Márcio França e companhia revela que mudança está longe de acontecer. Desde a transição de governo, movimentos sociais e organizações da comunidade palestina colocaram e seguem colocando à mesa suas reivindicações centrais, justamente o oposto de novos apertos de mãos com Israel.

Para além de ser sempre mediada – na ótica míope de dois lados em disputa que precisam negociar –, a retórica em “favor” dos palestinos não basta. É urgente ouvir os palestinos e reconhecer o apartheid sionista.