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RS: Não passaremos o pano para ninguém! 

Tragédia é resultado de 30 anos de desinvestimento, privatizações e passagem da boiada das leis ambientais

Vania Gobetti, de Porto Alegre (RS)

10 de maio de 2024
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Porto Alegre no dia 6 de maio Foto Gustavo Mansur/ Palácio Piratini

O martírio, na grande Porto Alegre, está longe de acabar. A previsão dos meteorologistas é que as chuvas e ventos, na região metropolitana e nos afluentes, irão manter o nível do Guaíba estacionado acima dos 5 metros talvez por semanas. Em pleno século XXI, com a ciência e a técnica altamente desenvolvidas, além dos milhares de desabrigados e desalojados que não poderão voltar para suas casas, 80% das pessoas que ainda estão em casa permanecem sem fornecimento de água. A maioria das casas de bomba de água estão inundadas. Não funcionam a contenção das águas, a drenagem e nem o abastecimento de água potável.

Hoje, os moradores da região metropolitana continuam sem água para beber. Isto sem falar no vai-e-vem da luz que impede que as pessoas mantenham alimentos estocados. Hoje, toda a grande Porto Alegre vive aquilo que os moradores da Lomba do Pinheiro ou da região das Ilhas vivem por décadas. É a expansão da barbárie.

Mas a realidade no interior não é menos desoladora. Ao todo, 1,7 milhão de pessoas do estado estão afetadas pela atual enchente. Moradores de Muçum e Lajeado, por exemplo, perderam móveis e eletrodomésticos pela quarta vez nos últimos 2 anos. Não podem mais planejar suas vidas, comprar móveis ou até veículos porque sabem que vão perder de novo.

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Imagens de satélite da ESA, na região de Porto Alegre e imediações obtidas pelo software Geoeasy. Na foto a região de Nova Santa Rita, Esteio e Canoas há 16 dias e atualmente. Foto: ESA/Fotos Públicas

Evidentemente, se não houvesse a precarização da Defesa Civil do estado e das cidades, e dos sistemas de alarme, poderia se ter salvado as 107 vidas perdidas até o momento. Mas a precarização vai muito além disto. Pois, não basta avisar as pessoas. É inadmissível submeter a população a perder o pouco que têm, em tempos cada vez mais curtos.

E isto tem tudo a ver com opções conscientes daqueles que governam no nosso país e estado, como mínimo, nos últimos 30 anos. A pesquisa de opinião do Instituto Quaest, divulgada no dia 9 de maio, revela que a maioria da população identifica as responsabilidades – 68% do governo estadual, 64% dos governos municipais e 59% do Governo Federal. Apenas 30% dos entrevistados avaliam que o que vivemos no estado do Rio Grande do Sul “é inevitável”, ou seja, a grande maioria da população tem noção de que o desastre poderia ter sido evitado ou, ao menos, minimizado, se houvesse investimento, por parte dos governos, em prevenção.

Nós concordamos com o que se expressou na pesquisa. Não podemos passar o pano para nenhum dos governos. Nem ao privatista prefeito Sebastião Melo, notório inimigo da natureza, que patrocina ações políticas destrutivas da ocupação urbana da cidade e sabota o Departamento Municipal de Águas e Esgotos (Dmae), que deveria ter gerido a crise hídrica provocada pela invasão do Guaíba..

Nem ao privatista governador Eduardo Leite (PSDB), que está há 5 anos à frente do estado e privatizou CEEE e Corsan, e destruiu a legislação ambiental do estado, avalizando agora em março mudanças nas leis aprovadas pela também neoliberal e negacionista Assembleia Legislativa, que tiram do Estado o poder de vigiar áreas sob proteção ambiental. Aliás, vem circulando pelas redes sociais um vídeo da propaganda eleitoral de Leite ao governo do estado afirmando que, para explorar a região portuária para o turismo e negócios, defendia abertamente a derrubada dos muros de contenção de águas do Cais Mauá. Se Leite tivesse conseguido concretizar seu projeto, e não houvesse mais a estrutura de concreto de 3 metros de altura e 2,6 km de extensão — que apesar de ter tido falhas pontuais, impediu um desastre ainda maior nesta semana…

A responsabilidade do PT que conduziu o país por 15 anos nestas últimas décadas, porém, também é imensa. A infraestrutura necessária para a prevenção de desastres está sucateada devido às sucessivas leis de Responsabilidade Fiscal (e do mais recente Arcabouço Fiscal), fazendo com que o orçamento federal para o setor tenha sido o menor em 14 anos, sendo que 43% do orçamento geral foi destinado para o pagamento da dívida pública, principalmente para os banqueiros.

Apesar de que, no discurso, Lula defenda a pauta ambiental contra o “negacionismo”, na prática continua investindo nos setores que são os principais responsáveis pelo aquecimento que fez do ano de 2023 o mais quente da história. Além dos sucessivos incentivos aos desmatadores que são as megaempresas do agro e das montadoras de carros, não houve nenhuma medida no sentido da transição energética. Ao contrário – a bola da vez exploratória é a foz do Amazonas, tendo o governo e o presidente da Petrobras pressionando o Ibama para a liberação da licença ambiental. Lula afirmou, na última COP, que “A Petrobras não vai deixar de prospectar petróleo, temos que lembrar isso, porque o combustível fóssil ainda vai funcionar por muito tempo na economia mundial.

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Apesar de que setores da nossa ricocracia, como Leite, que fala agora num “Plano Marshall” ou da “economia de guerra”, é certo que será necessário implementar o investimento de dezenas de bilhões não apenas para a reconstrução das casas, estradas e pontes, mas para investimentos profundos na infra-estrutura preventiva. As medidas do governo de auxílio veiculadas até agora pela imprensa, são mínimas. Para as pessoas físicas, as medidas são mera antecipação de benefícios sociais que trabalhadores e vulneráveis já possuem, como bolsa família, seguro-desemprego, auxílio gás. Já os 50 bilhões em crédito para as empresas, todos nós sabemos que só chega para os grandes. Nunca chega aos pequenos e médios produtores rurais que não podem mais assumir mais dívidas.

Não bastará reconstruir. Será necessário fazer adequações levando em conta que novos eventos climáticos extremos voltarão a se manifestar. Como afirmam os técnicos, será necessário mudar de lugar cidades inteiras que hoje se localizam em áreas mais baixas, planas e úmidas, nas áreas de encostas, nas margens de rios e nas cidades que estão dentro de vales. E nada disso se fará se não houver uma mudança profunda na política econômica e na política fiscal de todos os governos. Nada disso se fará sem enfrentarmos os interesses da ricocracia do nosso país. 

De tudo isto precisamos tirar uma lição – não podemos deixar na mão destes governos nossos destinos. Somente com muita luta e auto-organização dos debaixo poderemos impedir novas tragédias.

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