Nacional

Rio violento: Do crime organizado à violência do Estado

Maria Costa

17 de junho de 2022
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Foto Erick Dau

“mas eu so quero é ser feliz
andar tranquilamente na favela onde eu nasci
e poder me orgulhar
e ter a consciência que o pobre tem seu lugar”

Aparentemente seria pedir muito pouco, né? Mas toda a vez que eu entrava, de manhã cedo, na favela do Arará para trabalhar e cantava baixinho esta música, não conseguia deixar de me emocionar. Viver tranquilamente na favela no Brasil, e particularmente no Rio de Janeiro, parece muito inalcançável, não por acaso Cidinho & Doca seguem a música dizendo “Fé em Deus”. Parece que só mesmo uma intervenção de uma força superior poderia resolver o problema, mas na nossa opinião, apesar de complexa, a situação tem uma resolução bem terrena.

A repressão ostensiva por parte das forças do Estado já demonstrou categoricamente que não só não resolve o problema da violência como, para além disso, vai gerando outros monstros (milícias, narco-milícias, empresas de matadores de aluguel…) cada vez mais complexos de debelar, mesmo nos marcos de uma sociedade desigual como o capitalismo. Por outro lado, dizer que a solução para a violência no Rio passa apenas por garantir melhores condições socioeconômicas para quem vive na periferia não só é insuficiente como acaba por colocar a responsabilidade da violência na população mais pobre, reforçando indiretamente um mito de que criminaliza a pobreza.

Se por um lado devemos explicar que o reforço policial não dá solução de fato ao problema e, em última, se volta contra a própria classe, por outro lado temos que dar resposta à sua necessidade de se defender dos ataques de criminosos, sejam eles assaltantes, traficantes, bicheiros, milicianos, e também de se libertar das guerras entre as mais variadas facções criminosas.

Não é possível apresentar uma resposta que atenda às necessidades do conjunto da população, em especial à classe trabalhadora, se não se partir de uma compreensão das origens das diferentes manifestações da violência no Rio de Janeiro.

Violência do tráfico, da milícia, do bicho, da PM, do Estado…

Nesse sentido e por razões didáticas vamos começar por separar os diferentes aspectos da violência no Rio: facções de narcotraficantes, jogo do bicho, milícia, Estado (violência policial), e o que poderíamos chamar de crimes comuns (roubos, assaltos à mão armada, roubos de mercadorias, carros…). Nenhum destes aspectos tem uma existência independente (existem inúmeras interconexões entre traficantes, contraventores, milícias, e as forças de repressão do Estado) e em última instância todos estão relacionados com a realidade objetiva, das origens históricas e econômicas da cidade e da sua localização política no país.

Este é o primeiro de uma série de artigos sobre a violência no Rio, e para desemaranhar esse novelo precisamos começar por alguma ponta, certo? Comecemos pela violência estatal.

 A violência do Estado

O governo do Estado do Rio terminou 2021 se vangloriando de ter alcançado o menor número de homicídios dolosos desde 1991, 3245 vítimas. Mas falta muita coisa para contar em torno deste número. Antes de mais nada, que este não corresponde ao total das 4750 vítimas de letalidade violenta (homicídio doloso, roubo seguido de morte, lesão corporal seguida de morte e mortes por intervenção do Estado). Destas mortes 1.356 foram causadas por intervenção policial, ou seja, um número absoluto inferior apenas a 2018 e 2019, antes da pandemia.[1]

Para termos uma noção da brutalidade desses números podemos compará-los com os números nacionais. Segundo o Fórum de Segurança Pública, em 2021 se registraram 41,1 mil mortes violentas, sendo 6133 causadas por forças policiais. Ou seja, o Estado do Rio responde por 11% das mortes violentas a nível nacional e 22% das mortes cometidas por policiais. Em várias regiões do estado do Rio a força que isoladamente mais mata é o Estado. Na região metropolitana do Rio de Janeiro, que inclui cidade do Rio Baixada e Niterói São Gonçalo, o peso da violência do estado é ainda mais brutal. O saldo das ações/operações[2] policiais deixaram 610 mortos, o que significa 56% de todos as vítimas de letalidade violenta na região.

Pois paz sem voz paz sem voz
Não é paz é medo

Se olharmos as estatísticas de 2000 até hoje é inegável que a letalidade violenta oficial caiu, não tanto quanto o governo alardeia, mas caiu. A questão é que a sensação de segurança não aumentou, em especial nas periferias. No ano 2000 registraram-se 6993 homicídios no estado do Rio, 21 anos depois este número caiu para 4750, mas o peso da letalidade policial aumentou 317%.

É categórico o aumento da violência policial a partir de 2018, com a eleição de Bolsonaro e Witzel. O auge do discurso do bandido bom é bandido morto, e de “mirar na cabecinha” fez explodir os números de letalidade policial. Um curso só freado parcialmente em 2020 com a ADPF 635, uma medida cautelar do Supremo Tribunal Federal que restringia as operações policiais em favelas durante a pandemia.

Cláudio Castro apesar de não ser tão espalhafatoso quanto Witzel, segue a mesma cartilha bolsonarista. Aliás, foi durante o seu governo que ocorreram as duas chacinas policiais mais letais da história do Rio, Jacarezinho com 28 mortos e Vila Cruzeiro com 25 mortos.

As polícias como grupos de extermínio institucionalizados

A chacina do Jacarezinho ficou marcada pela brutalidade e pelo número de mortos, mas não foi um raio em céu azul. Em 2021 foram registradas chacinas na região metropolitana do Rio, 75% delas foram decorrentes de ações/operações policiais, na zona norte da cidade (onde fica a favela do Jacarezinho) do Rio as forças policiais foram responsáveis por 85% das chacinas.[3]

Como podemos ver pelo gráfico acima, a letalidade policial e as chacinas policiais não começaram recentemente. A partir de 2002 houve um aumento constante da letalidade policial que na primeira década do milênio atingiu o seu pico em 2007. [4]

2007 é um marco importante por conta de um acontecimento particular: a chacina no Complexo do Alemão às vésperas dos Jogos Pan-Americanos de 2007, em que 19 jovens foram assassinados numa operação conjunta da polícia militar, civil com a Força Nacional. Os mortos foram, em sua maioria, jovens entre 15 e 24 anos. Trinta e dois tiros foram disparados pelas costas, e segundo laudos médicos, os tiros na parte superior do corpo foram feitos em ângulo de 45 graus – indicando que as vítimas estavam sentadas ou ajoelhadas. Ou seja, métodos típicos de grupos de extermínio. Sobre essa operação, Lula comentou de forma desdenhosa que “não se enfrenta bandido com rosas”.

De 1990 a 2007 todas as grandes chacinas no Rio são cometidas por grupos de extermínio (Acari 1990, Candelária 1993, Vigário Geral 1993, Maracanã 1998, Borel 2003, Via Show 2003, Baixada Fluminense 2005), ou seja, ainda que muito provavelmente tenham sido cometidas também por policiais foram ações ilegais. De 2007 em diante as práticas de extermínio foram legalizadas à sombra da aprovação da Lei Antidrogas e do uso recorrente da Garantia da Lei e da Ordem no Rio (o governo federal recorreu a esse mecanismo 10 vezes entre 2007 e 2017), e, por fim, a Intervenção Federal em 2018.

 

Outro dado importante é que “A presença de unidades especiais, particularmente o Batalhão de Operações Especiais (Bope) e a Coordenadoria de Operações e Recursos Especiais (Core) – respectivamente, ligadas à PM e a Civil – tornam as operações policiais mais propensas a resultarem em chacinas. Quando juntas, ou seja, com a presença simultânea de BOPE e CORE em uma dada operação, temos uma probabilidade seis vezes maior da ocorrência de chacinas (18,2% frente a 2,9% dos batalhões e delegacias de área)[5]

80 tiros e a história das Forças Armadas nas ruas do Rio de Janeiro[6]

De 1990 até hoje foram 37 ações com participação das Forças Armadas no Rio, antes da Intervenção Federal.

Há 20 anos a então governadora Benedita da Silva (PT) solicitou a presença de 11 mil militares do exército durante as eleições para debelar uma guerra entre facções que decorria no Rio. A guerra de facções teve uma trégua, não necessariamente por conta da intervenção militar, mas porque para as próprias facções é insustentável manter uma guerra permanente.

Pouco tempo depois, no Carnaval de 2003, menos de 3 meses depois de tomar posse, o governo Lula enviou 3 mil homens para as ruas do Rio de Janeiro, desta vez a pedido da governadora Rosinha Garotinho, para “garantir a segurança do carnaval”, especialmente dos turistas, claro. Há um episódio nessa ocupação que é flagrante, um professor é morto após passar numa blitz de paraquedistas.  À época, o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, do PT, minimizou o episódio. “Poderia ter ocorrido em qualquer barreira policial”. Os 80 tiros que mataram Evaldo Rosa e Luciano Macedo, também numa blitz do exército, 16 anos depois, têm uma longa história de impunidade por trás e essa história também foi escrita pelo PT e por Lula.

Em março de 2006, três anos depois, 1500 homens do exército fizeram operações em cerca 11 favelas durante duas semanas, em busca de 10 fuzis FAL roubados num quartel em São Cristóvão. Confrontos com a população, crianças baleadas, foram parte do saldo dessa operação. Em 2007 as Forças Armadas também tiveram participação na chacina do Pan.

Na prática, os governos do PT transformaram o Exército em uma força regular de apoio às ações “de segurança” do governo do estado, especialmente para a instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) Entre 2010 e 2017, os militares atuaram mais 11 vezes no estado. Até à sua queda Dilma sancionou, sem críticas, essas operações. Entre janeiro de 2010 e dezembro de 2018, o governo federal gastou R$ 2,6 bilhões em 49 operações do tipo GLO realizadas pelas Forças Armadas.

Os governos do PT pavimentaram o caminho para o genocídio de Bolsonaro e Castro

É preciso sermos categóricos, a política de Bolsonaro e de Cláudio Castro é de genocídio dos moradores da periferia, em especial dos negros. Entre 2018 (ano da intervenção Federal comandada pelo ministro da Defesa de Bolsonaro, Braga Netto) e 2021 morreram nas mãos do Estado 5949 pessoas.  Estudos do Observatório de Segurança demonstraram que em 2019 e 2020 mais de 80% desses mortos eram negros e jovens.

Mas essa política oficial de extermínio encontrou solo fértil no Rio por conta das políticas de “segurança” dos últimos 20 anos que na prática tornaram as favelas do Rio num território de Estado de Exceção. A aprovação da Lei Antidrogas e do uso recorrente da Garantia da Lei e da Ordem no Rio e da ocupação militar sancionadas constantemente pelos governos do PT consolidaram a ideologia da criminalização da pobreza e da autorização do Estado para matar na favela.

[1] dados do relatório da plataforma fogo cruzado

[2] series historicas de letalidade , ISP, https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/05/05/por-que-o-numero-de-pessoas-mortas-por-policiais-aumentou-no-rio-em-2021.ghtml

[3] está aqui incluido também ações policiais que não são operações policiais oficiais, como por exemplo a que vitimou a jovem Kethlen Romeu.

[4] Chacinas Policiais – relatório de pesquisa, Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da UFF (GENI/UFF)

[5] chacinas policiais GENI/UFF

[6] informações retiradas do artigo https://www.terra.com.br/noticias/brasil/exercito-no-rio-25-anos-de-fracassos,8d793182631b72eed6aa97598dfd18dcpak6ocae.html