Internacional

Revolução síria derruba ditadura após 13 anos de luta

Fábio Bosco, de São Paulo (SP)

9 de dezembro de 2024
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A revolução síria demonstra que as tiranias não são eternas e a classe trabalhadora deve lutar para derrubá-las | Foto: Pexels Photo/Ahmed Akacha

No dia 8 de dezembro, foi anunciada a fuga do ditador Bashar el-Assad e sua família para Moscou. A queda da ditadura foi comemorada em todo o país, e pelas comunidades de refugiados sírios em todo o mundo. Também muitos palestinos em Gaza e em Al-Quds (Jerusalém) celebraram a queda do ditador, assim como a população libanesa em Trablous (Trípoli), segunda maior cidade no Líbano. A revolução síria demonstrou que as tiranias não são eternas e a classe trabalhadora deve lutar para derrubá-las.

A ditadura Assad durou 54 anos em base à repressão, tortura e assassinato de qualquer dissidente. Esse regime odiado assassinou mais de meio milhão de sírios desde o início da revolução, há 13 anos.

Nos últimos anos, o país esteve mergulhado em uma depressão econômica na qual 90% da população vivia na pobreza, e sob constante e humilhante assédio de milícias ligadas ao regime e de milícias alinhadas ao regime iraniano.

Essa combinação de brutal repressão e de miséria minou as bases sociais do regime entre a população de religião cristã, alauíta e drusa, chamadas de “minorias”. A maioria da população síria são da religião sunita, e já estavam contra o regime desde o início da revolução em 2011.

A ofensiva dos grupos rebeldes liderados pelo HTS (Hayat Tahrir al-Sham) em Aleppo acendeu a faísca do levante popular e levou à derrubada da ditadura síria. Este triunfo é visto com simpatia pelo povo trabalhador em todo o mundo árabe que também vive sob tiranias.

Uma ofensiva militar em meio a um levante popular

Há estimativas que apontam que os rebeldes iniciaram a ofensiva com cerca de 20 mil combatentes a partir de Idlib, no norte do país. A maioria deles são jovens adultos cujas famílias foram expulsas pelos bombardeios criminosos de Assad nos últimos 13 anos. Esta maioria está vinculada com os interesses das famílias refugiadas em regressar às suas casas, e não às ideologias sectárias dos dirigentes.

Ao tomar cada cidade, os rebeldes abriram cadeias e presídios e libertaram milhares de presos políticos, se posicionaram contra qualquer retaliação contra as minorias (cristãos, alauítas, drusos e curdos), e procuram restabelecer o provimento de pão e energia elétrica, e criar algum tipo de administração. Desta forma ganharam muita popularidade e novas adesões, fortalecendo os vínculos com os interesses populares.

No sul do país, houve um desenvolvimento diferente. Na ausência de um grupo organizado e armado, a população reviveu as experiências de auto-organização, tomou delegacias de polícia e checkpoints e caminhou em direção à Damasco, liberando Deraa, Suweida e Quneitra até chegar em Daraya ao sul da capital.

A leste, uma milícia síria alinhada com o regime jordaniano tomou Tadmor (Palmira), frente à fuga das forças oficiais. Em todo o país os soldados trocaram seus uniformes por roupas civis.

Essa mescla de milícias e de levante popular com elementos de auto-organização impôs uma série de liberdade democráticas, a libertação dos presos políticos, o retorno de refugiados, as garantias para as comunidades minoritárias, que são conquistas importantes e dificultam, de imediato, o sucesso de um giro bonapartista por parte do HTS.

Mas toda conquista democrática está sempre ameaçada de retrocesso dentro do sistema capitalista, ainda mais considerando que o principal grupo rebelde é o HTS que, além de defender um modelo econômico capitalista de mercado, tem uma tradição autocrática.

O ditador Bashar el-Assad e sua família fugiram para Moscou, capital da Rússia | Foto: Pexels Photo

Potências regionais e internacionais com Assad

Após a queda de Assad, vários países deram declarações criticando o antigo regime que eles não queriam ver derrotado.

Desde o início da ofensiva sobre Aleppo, de Washington a Moscou, nenhum país imperialista queria a queda de Assad. Os Estados Unidos e seus aliados da Liga Árabe pressionaram o regime sírio a se distanciar do Irã. Eles consideraram a permanência de Assad uma garantia contra qualquer revolução popular que pudesse desestabilizar os interesses estadunidenses e os regimes na região.

O estado de Israel também preferia a permanência de Assad, um governo fraco que nunca deu um tiro contra Israel e que estava se distanciando do regime iraniano devido à pressão da Liga Árabe. Por isso Israel deslocou tropas para a fronteira com a Síria e, após a queda de Assad, bombardeou depósitos de munições e centros de inteligência sírio para evitar que o novo regime tivesse acesso a esse armamento.

Apenas três países deram algum apoio à ofensiva. O regime turco deu o sinal verde para o início da ofensiva, a qual ele esperava que tomasse apenas algumas áreas rurais de Aleppo. O Qatar sempre manteve algum apoio material. O regime ucraniano repassou o know-how para a fabricação de drones de baixo custo, de acordo com informações da imprensa ucraniana.

Conciliação entre o antigo regime e as forças rebeldes

O avanço dos rebeldes e os levantes populares definiram que o fim do regime Assad estava muito próximo.

Desta forma, em Doha no Qatar, representantes do regime russo, iraniano e turco se reuniram no dia 7 e definiram o “fim das hostilidades” e o “diálogo entre o governo e a oposição legítima”.

Na prática esta política foi implementada através da fuga do ditador Assad para exílio na Rússia, e na manutenção do primeiro-ministro assadista al-Jalali encarregado de orientar os soldados sobre o fim das “hostilidades”, e de manter o funcionamento do aparelho de estado.

O presidente da Coalizão Nacional Síria (CNS), Hadi al-Bahra, explicou que foi negociada uma transição pacífica com a formação de um governo de transição para redigir uma nova constituição e convocar eleições livres em 18 meses.

Além disso, al-Bahra falou em unidade nacional incluindo todos os segmentos e etnias. Sobre os curdos do SDF, al-Bahra afirmou que eles têm que romper com o PKK para integrar o “diálogo nacional”.

Transição sem justiça nem soberania é negar os objetivos da revolução

As propostas explicitadas por al-Bahra procuram limitar as conquistas da revolução.

A libertação dos presos políticos, e as liberdades democráticas que garantam o regresso dos refugiados em segurança, e as garantias de segurança para os setores religiosos minoritários (que precisam ser garantidas no litoral para onde se dirigem milícias rebeldes) são passos importantes mas insuficientes.

Por um lado, as propostas de al-Bahra mantém as instituições do antigo regime, em particular os 18 serviços secretos responsáveis por 54 anos de brutal repressão. Os dirigentes desses centros de prisão, tortura e extermínio fugiram frente ao avanço da revolução. Mas esses serviços secretos têm que ser desmantelados, seus líderes presos, e seus arquivos entregues para organizações de direitos humanos e as forças da revolução, para investigar todos os crimes da ditadura.

Por outro, estabelecem um governo de transição para elaborar uma nova constituição, sem qualquer participação popular. O primeiro ministro do governo de transição será Al-Bashir, um dos integrantes do governo do HTS em Idlib. Um governo de transição deveria ser formado exclusivamente por forças da revolução para, em um período curto de tempo, convocar eleições livres para uma Assembleia Constituinte, livre e soberana, a quem o poder deveria ser entregue.

Nada foi dito sobre a retirada imediata de todas as forças militares estrangeiras (900 assessores militares e empresas terceirizadas estadunidenses no nordeste do país, bases militares russas no litoral, tropas turcas na fronteira norte, e tropas israelenses nas colinas do golã).

Nada foi dito sobre os milionários, como Rami Makhlouf, que enriqueceram graças à repressão brutal contra o povo sírio. É necessário nacionalizar os bens desses milionários e colocá-los a serviço da reconstrução do país.

O direito de autodeterminação do povo curdo foi negado e transformado em exigência de ruptura política com o PKK (partido curdo atuando em Bakur – áreas de maioria curda na Turquia). Pior ainda, as forças do Jeish al-Wattani (Exército Nacional – alinhado com o regime turco) avançou para Manbij e sinaliza novo avanço em direção à Raqqa, sitiando a população curda em Rojava.

A questão palestina

A luta contra o genocídio em Gaza e na Cisjordânia está no centro das atenções mundiais. O HTS deu apoio político à ação da resistência palestina liderada pelo Hamas de 7 de outubro de 2023.

Os sírios realizaram várias manifestações em solidariedade aos palestinos na província rebelde de Idlib, governada pelo HTS. Em outras partes da Síria não houve nenhuma manifestação porque eram proibidas pela ditadura assadista.

O Hamas soltou uma nota oficial saudando o novo regime sírio. Entre 2011 e 2014, o Hamas apoiou a revolução síria, e por isso teve que mudar seu escritório central de Damasco para Doha.

O estado sionista avançou ainda mais sobre território sírio, além de bombardear depósitos de armas e sedes de serviços de inteligência para enfraquecer o novo governo.

Até o momento, al-Joulani ou al-Bahra não expressaram o apoio aos palestinos pelo fim do genocídio em Gaza e na Cisjordânia, e nem tomaram qualquer medida contra os bombardeios e invasões israelenses, repetindo o comportamento de Bashar el Assad.

É necessário que o novo governo de transição anuncie seu apoio incondicional à resistência palestina e tome todas as medidas possíveis para impedir o avanço sionista.

Precisamos de um partido revolucionário

Desde o início da revolução síria em 2011, o Partido Comunista Sírio (seja a ala liderada por Khaled Bakdash, ou a ala liderada por Youssef Faisal, ou ainda o Partido da Vontade Popular de Kadri Jamil) sempre se mantiveram ao lado da ditadura síria, garantindo postos ministeriais no governo, e caluniando as forças da revolução.

Na história da Síria houve importantes esforços para a formação de verdadeiros partidos marxistas revolucionários como o Partido Comunista do Trabalho (que tinha uma forte ala trotskysta liderada pelo revolucionário Munif Mulhem, que foi mantido preso em condições abjetas por 16 anos, de 1981 a 1997), assim como o revolucionário palestino Salameh Keilah (preso e torturado pela ditadura síria por oito anos) que formou a Coalisão de Esquerda Síria no início da revolução em 2011. No entanto, essas organizações não conseguiram sobreviver à repressão do regime ditatorial.

As diferentes alas do Partido Comunista Sírio não soltaram nenhuma posição oficial frente ao fim da ditadura, que sempre apoiaram.

Mas o secretário geral do Partido Comunista da Turquia (TKP) denunciou as revoluções árabes como parte de planos imperialistas, e defendeu a ditadura Assad por ter liderado a resistência contra esses planos bem como o perigo jihadista, junto com a Rússia e o Irã.

Esses setores de esquerda, em particular os de origem estalinista, defendem o regime Assad, da mesma forma que defendem outros regimes capitalistas ditatoriais como o regime chinês, russo, iraniano, cubano e venezuelano. Na prática, esses setores trocam a perspectiva socialista de luta de classes pela perspectiva de campos imperialistas progressivos, o que nada tem a ver com o marxismo nem com a defesa dos interesses da classe trabalhadora.

Uma posição revolucionária começa pelo reconhecimento da vitória das massas que está representada pela queda da ditadura. Mas ela só se completa com uma política de independência de classe e com a luta pelo poder operário e pelo socialismo.

A vitória da revolução síria só terá continuidade com a formação de um partido revolucionário, que rejeite a conciliação com o antigo regime, impulsione a formação de conselhos operários e populares em todos os bairros e cidades, exija a saída imediata de todas as forças militares estrangeiras, que se posicione pela nacionalização dos bens dos milionários, que defenda o direito de autodeterminação dos curdos, e a solidariedade incondicional com o povo palestino.

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