Rejeição ao Antropoceno não nega profundas transformações da Terra
Pode a humanidade ter se constituído uma força geológica capaz de inaugurar uma nova época da história da Terra? Essa é a discussão por trás do Antropoceno, uma nova época geológica, ou um evento geológico da história da Terra, definido pelo impacto da atividade humana nos sistemas naturais.
O conceito de Antropoceno foi levantado pela primeira vez em um artigo publicado pelo químico atmosférico Paul Crutzen e pelo biólogo marinho Eugene Stoermer no ano 2000. O termo “antropoceno” vem do grego anthropos, que quer dizer “humano”, e kainos que significa “novo”. Desde então, o Antropoceno ganhou força na comunidade científica, virou moda na academia, na mídia, mas também passou a ser discutido seriamente pelos geólogos.
Mas há pouco mais de uma semana, um comitê de geólogos votou contra declarar o Antropoceno como uma nova era geológica, sucessora do Holoceno. O Holoceno é considerada a época geológica atual, que iniciou-se há 11.700 com o fim da última Era do Gelo. A estabilidade climática do Holoceno, com a demarcação bem definida das estações, permitiu à humanidade criar a agricultura, obter excedentes de alimentos e construir as primeiras cidades. Foi no Holoceno que a humanidade prosperou.
Mas mudar essa classificação e inserir uma nova época geológica não é tão simples. Seria como colocar um novo elemento químico na tabela periódica. Nenhum químico pode acrescentar um elemento sem um processo longo e complexo que passa por um grande debate entre todos os químicos do mundo. Com a geologia acontece algo semelhante. Mesmo que tivesse sido aprovada, a proposta do Antropoceno ainda teria que ser aprovada por outros comitês até seguir para um congresso da União Internacional de Ciências Geológicas (IUGS), onde a palavra final seria dada.
Como se define uma Era geológica?
As unidades de tempo geológico são definidas a partir de evidências contidas nos estratos geológicos da Terra, testemunhas do que ocorreu há milhares de anos. Os estratos geológicos são como as camadas de um bolo que, sobrepostas, estabelecem uma ordem cronológica do que ocorreu no passado. Isso permite identificar, por exemplo, a antiga existência de florestas no que é hoje o continente da Antártida; a existência de oceanos no que hoje é a Cordilheira dos Andes; provar a ligação entre a América do Sul e África que existiu há mais de 200 milhões, e por aí vai.
Mas quais seriam as marcas do Antropoceno na estratigrafia? Em 2023, uma Comissão Internacional de Estratigrafia (CIE), escolheu o lago Crawford no Canadá como um o local que melhor representa o início do que poderia ser uma nova era geológica. Os sedimentos encontrados no fundo desse lago forneceriam vários registros das mudanças ambientais, o principal deles são os indícios de plutônio, muito acima dos níveis naturais, que foram produzidos pela detonação de armas nucleares.
Para vários membros do comitê que rejeitou a proposta, essa definição era muito limitada, recente e inadequada para ser um marco da remodelação do planeta Terra pelos humanos. “Isso restringe, confina, estreita toda a importância do Antropoceno“, disse Jan A. Piotrowski, membro do comitê e geólogo da Universidade de Aarhus, na Dinamarca. “O que estava acontecendo durante o início da agricultura? E a Revolução Industrial? E a colonização das Américas, da Austrália?“, disse ele ao The New York Times.
Ou seja, ao que tudo indica não se trata de uma completa rejeição. Tem mais a ver com a procura de maiores e sólidas evidências pelos guardiões do tempo geológico da Terra, do que a simples rejeição de que os humanos seriam capazes de criar uma nova época geológica. Por isso, a proposta do Antropoceno segue válida e vai continuar na pauta de muitas pesquisas científicas – em outros campos, para além da geologia – que vão procurar substancializá-la.
Ao rejeitar o Antropoceno, os geólogos também expressam os limites de sua ciência e procedimentos. A impressão é que o paradigma puramente geológico não responde à complexidade do problema. Sobram evidências levantadas por inúmeras pesquisas de perturbações no sistema terrestre, tal como aceleração acentuada nas taxas de erosão e sedimentação, perturbações químicas nos ciclos de carbono, nitrogênio, fósforo e outros elementos, alteração e níveis sem precedentes de invasões de espécies e extinção; e claro, de extrema importância, o início de mudanças significativas no clima global e no nível do mar. Tudo isso leva a crer que o Antropoceno é, no mínimo, um grande evento geológico ainda muito recente, da escala de algumas centenas de anos e não dos milhares como trabalha a geologia.
Quem é o Anthropos do Antropoceno?
Se o Antropoceno fosse proclamado como uma nova época geológica, certamente chamaria atenção mundial para a imensa destruição dos sistemas naturais da Terra pelas ações humanas. Seria um passo importante na conscientização a respeito da gravidade da situação climática. Reforçaria os apelos para a necessária transição energética e contra a abertura de novas frentes de exploração de petróleo pelo mundo, como no caso do Ártico e da Amazônia.
Mas só porque o Antropoceno não foi formalmente declarado não quer dizer que não estamos diante de uma grande mudança cujos efeitos de longo prazo afetarão às gerações futuras. O fato é que a estabilidade climática do Holoceno está acabando com o recrudescimento do aquecimento do clima. A temperatura média da Terra, em 2023, foi a maior já registrada em 125 mil anos. Estamos próximos de atingir perigosos pontos de não retorno, e assistimos eventos extremos cada vez mais frequentes e intensos.
Mas isso não nos exime de fazer uma crítica às limitações do próprio conceito de Antropoceno. Afinal quem é o Anthropos do Antropoceno? É toda a humanidade? O Homo sapiens seria intrinsecamente uma força destrutiva da natureza. Mas e populações indígenas e camponesas que preservam a biodiversidade para continuar existindo? E os trabalhadores pobres que são apartados das decisões econômicas e políticas da sociedade?
Se por um lado, o conceito ilumina o fato do impacto das ações humanas passarem a ser uma força geológica, por outro lado obscurece de quem é a responsabilidade por isso. Abstrai as relações de poder, não leva em consideração como a sociedade organiza a produção e como a desigualdade social é produzida. Tudo isso produziu e produz impactos na biosfera.
Esse é o problema do Antropoceno. O conceito repousa na ideia de uma humanidade abstrata, como se os humanos não estivessem divididos em classes sociais, como se não houvesse racismo e xenofobia, ricos e pobres, opressores e oprimidos.
Uma parte bem pequena da humanidade
É falso o argumento de que somos todos igualmente responsáveis pela catástrofe climática e da biosfera. Quem provoca a destruição da natureza é a classe dominante dos capitalistas, dos grandes proprietários de terras, os acionistas das corporações e o próprio Estado capitalista. Na verdade é só uma pequena parte da humanidade que é responsável pela destruição. Vejamos.
No início do século XXI, os 45% mais pobres da humanidade geraram apenas 7% das emissões de dióxido de carbono (CO2), enquanto os 7% mais ricos produziam 50% dessas emissões. Um único cidadão dos Estados Unidos emite sete vezes mais CO2 do que um cidadão da América do Sul, e quase nove vezes mais do que um cidadão da Índia, o país mais populoso do mundo.
Uma outra pesquisa divulgada em 2023 pela Oxfam mostra que, em 2019, o 1% mais rico foi responsável pela mesma emissão de carbono do que os 66% mais pobres no mundo, ou seja, 5 bilhões de pessoas. O estudo também mostra que essas emissões de carbono do 1% mais rico cancelam todo o benefício que é gerado por 1 milhão de turbinas eólicas instaladas no mundo. Acrescente-se a isso o fato que as mudanças climáticas afetam sobretudo a população mais pobre, não-branca e as mulheres.
Nas sombras do conceito de Antropoceno se oculta o ressurgimento de um tipo de neomalthusianismo, que abstrai todo o processo histórico sobre como o capitalismo global alterou profundamente os ciclos naturais. Nesse sentido, o conceito de Antropoceno é reducionista e unilateral. Parte da velha dicotomia burguesa entre sociedade e natureza e responsabiliza toda a humanidade pela destruição ambiental, sem fazer distinção de raça, classe ou gênero. Assim, encobre as forças do capital, as relações sociais e de domínio de classe que produziram os desequilíbrios ecológicos, o aquecimento global e o enorme consumo de recursos.
Mudanças indicam ao ‘Capitaloceno’
Do ponto de vista das ciências naturais o Antropoceno é um novo estado do sistema Terra, mas do ponto vista da História o grande causador dessa transformação é a acumulação capitalista e sua permanente autoexpansão. Por esse motivo, outros autores propõem um outro conceito alternativo, o de Capitaloceno, defendendo que a relação humana com a natureza é atravessada por relações políticas, econômicas e pelas desigualdades produzidas pelo capital.
Capitaloceno é mais do que um conceito útil que permite denunciar a lógica destrutiva do capital. Ele também coloca a história na centralidade para entendermos a relação entre sociedade e natureza. Um dos principais defensores do conceito, Jason Moore, explica que: “[…] o Capitaloceno significa o capitalismo como uma forma de organizar a natureza – como uma ecologia mundial capitalista […]. o capitalismo é uma ecologia-mundo que une a acumulação de capital, a busca do poder e a coprodução da natureza em sucessivas configurações históricas.”
Moore avalia que o Capitaloceno não começou apenas quando a indústria passou a utilizar combustíveis fósseis, e passou a emitir toneladas de carbono na atmosfera. Para ele o “regime ecológico capitalista” começou lá no século XVI, com a expansão geográfica proporcionada pelas grandes navegações e a criação do mercado mundial, o que permitiu aos impérios europeus se apropriarem de quantidades sem precedentes de energia e de trabalho, transformando para sempre as relações entre humanos e a natureza extra-humana e integrando várias partes do mundo nos circuitos de produção e consumo.
Pode-se argumentar que o capitalismo mercantilista não alterou substancialmente os ciclos biogeoquímicos a ponto de aumentar a temperatura da Terra. De fato, isso ocorreu apenas quando se adotou energia fóssil em um dado momento da revolução industrial. Mas a revolução industrial não teria ocorrido sem a formação do mercado mundial, com a expansão colonial que permitiu a conquista de novos recursos, o domínio e aniquilação de outras civilizações, a escravidão negra e indígena. Tudo isso foi realizado com violência, com o saque, com o roubo e o genocídio. Esse processo é chamado por Marx de acumulação primitiva do capitalismo.
As próprias formas como os humanos pensavam a natureza foram profundamente alteradas nessa época, tal como mostra Keith Thomas, no livro O Homem e o Mundo Natural, um clássico. Se na Idade Média a natureza era deificada, santificada como a essência de Deus na Terra, no período do capitalismo mercantilista a natureza, as plantas e animais foram interpretados como a criação de Deus para servir aos homens. Uma ideia antropocêntrica que tinha muito a ver com a expansão do capitalismo colonial mercantilista e justificava ideologicamente a conquista das novas terras e recursos.
Como o velho Marx já enfatizava, história e natureza não estão separados. Portanto, uma análise crítica da História é imprescindível quando se coloca o ser humano como um agente dessa transformação. Não é possível apenas se limitar aos métodos das ciências naturais.
O fim do Holoceno anuncia a catástrofe produzida pelo capitalismo, cujos efeitos continuarão alterando a trajetória do sistema terrestre por séculos. Mas para não ter fim do mundo, precisamo dar fim ao capitalismo e revolucionar o metabolismo entre sociedade e natureza.