Realidade em migalhas : Do liberalismo ao pós-modernismo
Lugar de fala, empoderamento individual, identitarismo, narrativas. São termos que conquistaram boa parte dos movimentos atualmente existentes. Eles são a prova cabal da penetração das ideologias pós-modernas no interior de uma ampla gama de organizações.
Mas o que é exatamente o pós-modernismo e como ele surgiu? Quais as suas bases?
Veremos que o pós-modernismo se baseia, como no caso do liberalismo, nas ilusões produzidas pelo próprio modo de produção capitalista. Mas não apenas isso. É uma concepção que tem bases históricas precisas. A decadência do capitalismo imperialista, por um lado, e o stalinismo, por outro. Comecemos por esse percurso histórico.
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Bases históricas do pós-modernismo
Em um primeiro momento, o pós-modernismo se confunde com o liberalismo. Ambos têm como ponto de partida e de chegada o indivíduo isolado. Um indivíduo solto no mundo, que não depende de ninguém. Um indivíduo que é sujeito absoluto de suas ações. Ambos esvaziam a noção de sociedade. O indivíduo não é produto da sociedade, a sociedade é que é produto das ações individuais. Mas essas diferenças são aparentes. O pós-modernismo é produto de uma sociedade capitalista em decadência. Uma sociedade que nada mais tem a oferecer.
O liberalismo surgiu em um período no qual o capitalismo, apesar de todas as mazelas, se desenvolvia. A produção de riquezas crescia a passos largos e, a custo de muitas lutas, algumas migalhas caíam no bolso dos trabalhadores. Se os liberais apagam a forma de sociedade e apenas enxergam ações individuais, é porque acreditam que a sociedade capitalista é perfeita e racional. O mercado aloca, sozinho, tudo no seu lugar, de forma ótima. Como eles dizem: “deixai fazer, deixai ir, deixai passar, o mundo vai por si mesmo”. Não há nada a ser alterado. Caminhamos para o progresso sem fim. O liberalismo é uma ideologia otimista em relação ao futuro.
O pós-modernismo, por sua vez, é produto de outro período histórico. O livre mercado conduziu o mundo à catastrófica crise de 1929. Procurou-se resolvê-la com intervenção estatal e keynesianismo. Nem assim a situação foi contornada. O mundo marchou para a barbárie do nazifascismo e a Segunda Guerra Mundial.
O liberalismo, contudo, não foi substituído pelo pós-modernismo, e nem será. Não há outra forma de gerir o capitalismo que não seja alternando liberalismo e keynesianismo, livre mercado e certas doses de intervenção estatal. A economia e a ciência social capitalista continuam a ser liberais ou keynesianas. O surgimento do pós-modernismo está situado em outro lugar.
Desilusões
O pós-modernismo foi uma ideologia oferecida a amplos setores desiludidos, não apenas com o liberalismo, mas também com o marxismo desfigurado pelo stalinismo. Na segunda metade do século XX, a União Soviética já não despertava mentes e corações. Ela era marcada por uma opressão brutal e pelo controle burocrático do poder e da riqueza. Os Partidos Comunistas não passavam de correias de transmissão dos interesses soviéticos nos países estrangeiros.
O ponto culminante foi a Primavera de Praga de 1968 na Tchecoslováquia, país que integrava a URSS. Foi um levante dos trabalhadores contra a burocracia ali instaurada, por liberdades democráticas, de associação, controle operário e autonomia dos sindicatos. Esse processo foi derrotado pelos tanques soviéticos.
Na esteira desses processos uma imensidão de manifestações varreu a Europa, com início em Paris na França: foi o maio de 1968. Esse movimento, no entanto, não culminou em conclusões revolucionárias. Dentre vários fatores, encontra-se a conclusão de que tanto o liberalismo quanto o marxismo confundido com o stalinismo são apenas formas diferentes de discursos igualmente opressivos. Surgia o pós-modernismo.
Desconstrução
Lutas sem rumo, sem objetivo e sem direção
Assim, marxismo e liberalismo foram colocados no mesmo lugar. Enquanto o liberalismo defendia um mundo capitalista objetivo, perfeito e racional, os pós-modernos renunciam a toda ambição de racionalidade e objetividade. Para eles, não existe compreensão objetiva da realidade. Todas as teorias gerais sobre o mundo e a sociedade são construções subjetivas, criações discursivas de certos indivíduos para dominar os demais. Daí que qualquer teoria com algum grau de universalidade nada mais seria do que a tentativa de encobrir interesses individuais.
As teorias universais, para os pós-modernos, não passariam de ficções a serviço de certos interesses individuais. O mundo seria por natureza parcial, limitado, fragmentado, sem estrutura. Um mundo em migalhas. Toda teoria não passa de um olhar subjetivo, uma imagem refletida feita por um indivíduo a partir do seu “lugar de fala”. Ora, se é assim, o que seriam as próprias teorias pós-modernas? Não seriam as teorias pós-modernas, também, meros discursos? Meras imagens refletidas feitas por um indivíduo a partir de seu lugar de fala? Os pós-modernos respondem afirmativamente a essas perguntas. Haveria, no entanto, uma diferença.
A missão das teorias pós-modernas não seria construir qualquer discurso universal, nem indicar qualquer direção futura ou finalidade. Tudo se resumiria a desconstruir os discursos universais de qualquer natureza que não passam de artimanhas para que um grupo de indivíduos domine o outro. A missão do pós-moderno é desconstruir e destruir os discursos que levam um indivíduo a dominar o outro, fazendo de cada indivíduo um centro de poder. A finalidade da desconstrução pós-moderna é, assim, a afirmação da identidade única de cada indivíduo e o seu empoderamento individual.
Armadilha do capital
As bases capitalistas do pós-modernismo
Apesar de o pós-modernismo ter como característica central a desconstrução de todos os discursos universais, por vezes de fato ilusória e enganosa, eles simplesmente aceitam a universalidade real no interior da qual vivem.
Esta universalidade do capitalismo não é uma criação teórica, é seu próprio funcionamento interno. Todos os diferentes produtos convertem-se em mercadorias medidas por uma mesma qualidade: o dinheiro. O trabalho sempre distinto e diferenciado feito pelos trabalhadores se expressa universalmente como capital: comprado e vendido na forma de ações. O trabalho excedente da classe trabalhadora se expressa como lucro do capitalista, medido em dinheiro e repartido em juros, renda, impostos. Todo esse movimento precisa se repetir infinitas vezes para fazer o capital crescer para, então, fazê-lo crescer outra vez. A substância do valor e da riqueza: o trabalho é transformado em uma forma universal dele separada, medida em dinheiro, para somente então ser repartida e disputada às custas daqueles que trabalham.
O marxismo tem, de fato, um programa universal. Esse programa universal, contudo, não é uma criação subjetiva da cabeça de Marx, Lênin ou Trotsky. É uma necessidade que o capitalismo impõe. Para destruir uma forma de organização da sociedade universal, é necessário encontrar um sujeito ou agente também universal em seu interior: a classe trabalhadora e, centralmente, a classe operária. São eles que produzem toda a riqueza que o movimento do capital converte em dinheiro e, depois, reparte entre os proprietários.
Ao negar a existência de toda e qualquer universalidade, os pós-modernos simplesmente aceitam o capital tal como ele é. Ao realçar o indivíduo e sua subjetividade, aderem à característica central do capitalismo que esconde as relações sociais, esconde o que é universal, fazendo a sociedade parecer uma mera soma de indivíduos, como vimos em outros artigos.
Mas esse movimento só foi possível porque o marxismo foi desfigurado pelo stalinismo, tanto nas ações como na teoria. No lugar de se centrar a universalidade objetiva do capital e do capitalismo, as teorias stalinistas criaram teorias abstratas que justificassem seus interesses privados. O proletariado deixou de ser considerado como sujeito ativo do processo, sendo substituído pela ação de seus supostos representantes: os burocratas. A análise interna do capital e do capitalismo fora substituída por frases prontas, supostamente capazes de explicar toda história e justificar toda ação do stalinismo. Assim, muitos pautas ligadas a questões reais, tal como a opressão machista, a LGBTIfobia o racismo, entre muitas outras foram negligenciadas, o que deu espaço para o crescimento das teorias pós-modernas.
É por isso que o pós-modernismo se converteu em uma das armas prediletas do capital e do capitalismo. Uma forma de negar o marxismo e, ao mesmo tempo, cooptar todos os tipos de movimento para continuarem a fazer uma guerra nas nuvens contra os discursos, enquanto todo o edifício permanece de pé.
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