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Quem teme uma Palestina “livre do rio ao mar”?

Francesco Ricci

26 de setembro de 2024
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Manifestação em defesa da Palestina na Av Paulista Foto Maisa Mendes

Aparentemente, toda a esquerda apoia a causa palestina. Contudo, quando tentamos definir o que significa apoiar a causa palestina, descobrimos que na maioria dos casos é o apoio que, paradoxalmente, acaba por adotar as mesmas falsas “soluções” propostas pelos amigos imperialistas de Israel.

Assim como é justo organizar manifestações e iniciativas de solidariedade com a resistência de forma unitária, é igualmente necessária nitidez de posições.

Tomemos como exemplo um das consignas mais gritadas nas ruas de todo o mundo nos últimos meses, a começar pelos jovens de origem árabe, uma consigna que preocupa as classes dominantes (que em alguns países a consideram “ilegal”): “Palestina livre, do rio ao mar.”

Agora, entre o rio (Jordânia) e o mar (Mediterrâneo) não há apenas o que são considerados “territórios ocupados”, isto é, Gaza e a Cisjordânia, mas também a maior parte do território roubado dos palestinos que os sionistas – mas também uma grande parte da esquerda – reconhece-o como o “Estado de Israel”, dotado de uma suposta legitimidade para existir e “defender-se” (da população que efetivamente oprime).

Procuremos então ver quais são as posições predominantes na esquerda e porque são incompatíveis com a justa exigência de uma Palestina “livre do rio ao mar”, porque contradizem as aspirações legítimas dos palestinos e das massas que se manifestam pela Palestina gritando este slogan.

A infame proposta dos “dois Estados”

Se existe uma proposta que une a grande maioria das direções dos partidos de esquerda, é a da “solução de dois Estados”, ou seja, a ideia de fazer coexistir, por assim dizer, Israel, na terra dos palestinos.

Esta é aparentemente uma proposta racional. Alguns perguntam, em alguns casos ingenuamente e noutros com total má-fé: porque não conseguir a coexistência pacífica entre judeus e árabes depois de tantos anos de guerra? É a ideia propagada em muitos filmes e romances românticos pacifistas.

O problema é que esta suposta solução é fumaça e espelhos. E precisamente, neste sentido, é utilizado pela maioria das potências imperialistas. Esta é uma hipótese ao mesmo tempo injusta, impraticável e fantasiosa.

Injusta porque pressupõe a aceitação do “roubo original” de terras com o qual o imperialismo (através do seu instrumento, a ONU) entregou uma parte majoritária da Palestina aos sionistas em 1947 (que depois a expandiram gradualmente). Aqueles que apoiam os “dois Estados” não consideram realmente “território ocupado” aquele em que “Israel” emergiu, ou as extensões subsequentes que adquiriu através da limpeza étnica nos anos seguintes, mas apenas os territórios ocupados com a guerra de 1967 e, particularmente, Gaza e a Cisjordânia.

Em outras palavras, o hipotético Estado palestino deveria abranger menos de um quinto da Palestina original, sem continuidade territorial (na verdade, Israel está no meio).

Impraticável porque exclui implicitamente o direito de regresso às suas terras para seis milhões de refugiados palestinos.

Finalmente, é uma hipótese fantasiosa porque elimina um fato: o projeto sionista é o do colonialismo de assentamento, que visa a expulsão (ou aniquilação) dos habitantes. Israel (como anunciaram os seus fundadores “de esquerda” trabalhistas há oitenta anos (1) nasceu com a intenção de alargar as suas próprias fronteiras por toda a Palestina histórica (se não além). Para confirmar isto, bastaria ver que os sionistas não estão apenas tentando expulsar dois milhões de palestinos de Gaza, mas que na Cisjordânia, que deveria ser a parte principal de um hipotético mini-Estado palestino, foram construídos assentamentos coloniais, multiplicando-se por anos.

A verdade é que a solução de “dois Estados” não existe na realidade, é apenas um instrumento do imperialismo, uma falsa promessa de um futuro impossível em troca da qual os palestinos deveriam abandonar a luta no presente.

Durante anos foi apresentado como um avanço, por menor que fosse. Mas 30 anos depois dos acordos de Oslo, que deveriam ser a antecâmara desta “solução”, é verdadeiramente impossível acreditar honestamente nela e, de fato, a maioria dos palestinos não acredita nela.

No entanto, as principais velhas direções, que durante décadas recusaram, com razão, reconhecer o Estado colonial e exigiam uma reaquisição completa da Palestina, aceitaram esta capitulação. É o caso da liderança de Abu Mazen, do Al Fatah (2), que na Cisjordânia, como Autoridade Nacional Palestina, desempenha o papel de polícia colaboracionista e está, portanto, completamente desacreditada entre os palestinos, que nos últimos anos têm dado vida a novas organizações combatentes.

E a própria direção do Hamas, que nasceu (durante a Primeira Intifada de 1987) e alcançou consenso precisamente porque aparecia como uma direção não disposta a comprometer-se, abriu-se progressivamente a esta falsa solução, desde 2005, ao ponto de aceitá-la formalmente na sua Declaração de Princípios de 2017. Após 7 de outubro, o Hamas recuperou prestígio porque é uma parte importante da resistência, mas o projeto subjacente da sua liderança (especialmente daqueles que vivem no estrangeiro) é uma versão dos “dois Estados”, embora numa embalagem mais radical.

Por que as direções reformistas apoiam os “dois Estados”?

Apesar do que foi explicado, esta é a posição, para além de qualquer distinção, também defendida por muitos na Itália: pela liderança da Rifondazione Comunista, pela lista de Santoro, por Potere al Popolo (Pap), pelos diferentes PCs da Itália e também por todas as organizações de origem estalinista (em coerência, por assim dizer, com o estalinismo que desde a sua fundação reconheceu Israel e até o armou).

A Rifondazione, além de “condenar todos os ataques contra civis, seja por parte do Hamas ou de Israel” (e, portanto, juntar-se ao coro contra o 7 de Outubro), reconhece um suposto direito de Israel à existência, desde que esteja dentro das fronteiras antes da Guerra dos Seis Dias (1967). Neste sentido, Paolo Ferrero (um dos “chefes” da Rifondazione) invoca “o respeito pelas resoluções da ONU, o que constitui um ato devido ao Estado de Israel, que já existe, mas foi reconhecido pelas Nações Unidas num território definido” e sustenta que “qualquer forma desejável de maior divisão estatal mais avançada entre Israel e a Palestina só pode ser definida de forma consensual e pacífica” (3).

Michele Santoro, que com a ajuda indispensável da Rifondazione apresentou “Paz, terra, dignidade” às eleições europeias, expressa a mesma posição no programa da lista, onde se pode ler uma petição para que “a Europa confirme a condenação do massacre de 7 de Outubro e o direito dos israelitas de viver em paz e segurança”, certamente no contexto de uma condenação dos “excessos” de Israel, que também reconhece o “direito de viver em paz” (leia-se: nas terras de onde os palestinos são expulso). A “novidade” aqui reside na admissão de que a hipótese dos “dois Estados”, tal como apresentada até agora, parece “dificilmente praticável”, razão pela qual é mencionada uma variante dela na forma de um “estado único” (binacional). ) com igualdade de direitos. Mas voltaremos em breve a esta nova atração (4).

As posições da liderança Potere al Popolo (Pap), que geralmente tende a apresentar-se como mais radical do que a Rifondazione, baseiam-se também no “reconhecimento de Israel” e na aceitação das fronteiras anteriores a 1967.

A Rete dei Comunisti [Rede Comunista] (que Pap anima, dirige o sindicato Usb e diversas estruturas estudantis), que, ao contrário de outras, recusa justamente “condenar” o 7 de Outubro, também apela ao respeito das resoluções da ONU: que significa reconhecer, mesmo sem explicitá-lo, o suposto “direito à existência” do posto avançado colonial.

Mas, por que é que toda a esquerda reformista italiana e internacional (Syriza, Die Linke, etc.) defende, de alguma forma, a existência de Israel, rejeitando implicitamente o significado da consigna (que talvez cantem quando estão nas ruas) de uma Palestina “livre do rio ao mar”?

Por algum suposto realismo? Como vimos, não há realismo nisso. Então? A resposta é simples: porque questionar a existência dessa grande base militar do imperialismo que é Israel significa questionar o capitalismo. E o horizonte dos reformistas não contempla revoluções. Por esta razão, não contempla a destruição do Estado colonial e, portanto, não pode apoiar verdadeiramente uma Palestina “livre do rio ao mar”.

Uma variante enganosa: o Estado binacional

Diante da perda de toda credibilidade da consigna dos “dois Estados”, ganha terreno uma proposta aparentemente diferente: a do Estado binacional.

É aquela “solução” nascida há anos nos Estados Unidos e batizada como “Solução Um Estado”: ​​não “dois Estados”, mas um único, binacional (articulado de várias maneiras, como uma federação de duas entidades autônomas, como um Estado único com dois parlamentos e distribuição de algumas funções governamentais, etc.).

Entre os defensores genuínos desta ideia está o historiador Ilan Pappé, autor de livros fundamentais sobre a Palestina. Ou o historiador italiano Enzo Traverso. Um dos primeiros a apoiá-la, anos atrás, foi o intelectual palestino Edward Said (5). Hoje, outros a retomam, muitas vezes de má-fé, para mascarar a sua posição real (o reconhecimento de Israel), que é impopular nas ruas entre aqueles que apoiam a Palestina.

Mas qual é o problema do Estado binacional?

Em primeiro lugar, considera o roubo de terras sancionado pela ONU em 1947. Em segundo lugar, ignora as razões subjacentes à existência do Estado colonial, a sua natureza expansionista, os interesses do imperialismo e outras ninharias… como a divisão de classes em todo o mundo, imagina que tudo se resolverá com um “pacto democrático”, uma constituinte que coloque oprimidos e opressores no mesmo nível. Em suma, é uma hipótese fantasiosa que lembra o “Estado popular livre”, de que Marx já zombava há 150 anos, baseada em fantasias análogas sobre uma impossível “igualdade entre classes” (em vez da sua abolição) (6 ).

Ato em Recife (PE) contra o massacre perpetrado pelo Estado de Israel Foto Romerito Pontes

A impossível “aliança dos dois proletários”

Com base na falta de compreensão da conexão em um programa de transição entre objetivos democráticos (incluindo a questão nacional) e objetivos socialistas, algumas organizações que se afirmam trotskistas (suspeitamos que por engano) e a maioria daquelas de origem mais ou menos bordigista, sustentam que o caminho seria o de uma “aliança” entre o proletariado palestiniano e israelita.

É um ponto que precisaria de mais espaço e voltaremos a ele. Limitemo-nos aqui a ver porque é que esta abordagem aparentemente “classista” e radical é errada em termos marxistas, bem como impraticável.

Obviamente, também existem proletários na entidade sionista, mas de um tipo particular, como particular é o Estado de Israel, que é um enclave, um Estado artificial. Estes proletários sui generis partilham, pelo menos em parte, um privilégio com a sua própria burguesia. Tudo em que se baseiam as suas vidas (casas, campos, escolas, etc.) foi tirado aos palestinos. Por esta razão, consideram a sua própria burguesia como uma aliada na defesa comum de um interesse comum, ou seja, a terra roubada aos palestinos e na (e da) qual vivem e que não têm intenção de devolver.

Isto explica porque, se existem numerosos judeus e associações judaicas no mundo que lutam contra o sionismo, não são encontradas (com raras exceções) entre os israelitas.

As manifestações dos últimos anos em Israel ou as greves das últimas semanas não são contra a ocupação sionista da Palestina ou contra o massacre em Gaza. São contra certas políticas governamentais e, agora, contra uma linha considerada ineficaz para libertar os reféns israelitas.

A própria diferença entre “direita” e “esquerda” no alinhamento político israelita não se refere de forma alguma à ocupação colonial. Alguns sectores acreditam que a guerra permanente não ajuda o crescimento econômico do Estado (colonial) de Israel, razão pela qual estão abertos à política de “dois Estados”, isto é, conceder aos palestinos um Estado substituto, uma reserva, contanto que eles desistam da maior parte de suas terras.

Neste sentido, são irrealistas e errôneas as posições de organizações como a Sinistra Classe Rivoluzione (secção da TMI), que sustenta que “(…) só a criação de uma frente única entre o povo palestino e a classe operária e os setores progressistas (sic) da sociedade israelense criarão a possibilidade de dividir o Estado israelense em linhas de classe, abrindo caminho para uma solução duradoura e democrática para a questão palestina” (7).

A perspectiva dos revolucionários

A posição historicamente sustentada pela Quarta Internacional (sozinha contra todas as outras correntes do movimento operário que capitulam de várias maneiras a Israel) sempre foi diferente e é aquela que o PdAC e a Lit-Quarta Internacional reivindicam até hoje.

Esta é uma posição diametralmente oposta à expressa por Alan Woods (líder do reagrupamento a que pertence a citada Scr). De acordo com Woods, “O Estado de Israel existe e o relógio não pode voltar atrás. Israel é uma nação e não podemos apelar à sua abolição” (8).

A Quarta Internacional, pelo contrário, sempre lutou precisamente pela “abolição” deste Estado artificial, o que significa a expulsão dos colonos e a reaquisição pelos palestinos de toda a Palestina histórica. Esta é a pré-condição para que uma minoria judaica não-sionista viva na Palestina, da mesma forma que uma minoria judaica vivia pacificamente com os árabes antes da construção do Estado colonial.

É por isso que lutamos por uma Palestina única, sem qualquer tipo de discriminação étnica ou religiosa. Este é o verdadeiro significado da consigna “do rio ao mar” hoje assumido pelos novos combatentes palestinos e gritada nas ruas de todo o mundo.

Para que este objetivo não permaneça uma simples consigna, é necessária, pensamos, uma união do proletariado palestino com o proletariado árabe do Oriente Médio, de uma nova “Primavera Árabe” que consiga derrubar os Estados reacionários cúmplices do sionismo e subordinados ao imperialismo, na perspectiva da construção dos Estados Socialistas Federados do Oriente Médio.

Trata-se de entrelaçar a reivindicação democrática nacional com a perspectiva socialista, na qual, nós, marxistas, chamamos de revolução permanente. Um objetivo que requer o apoio à causa palestina do proletariado dos países imperialistas.

Requer, acima de tudo, uma liderança internacional que unifique os processos de luta travados nas diferentes frentes nacionais e, portanto, a construção em cada país de um partido revolucionário que atue como parte desta Internacional.

Notas

(1) Foi o Partido Trabalhista Ben Gurion quem organizou a primeira limpeza étnica e foi o Partido Trabalhista Rabin quem ordenou durante a Primeira Intifada (1987) que se quebrassem as mãos dos adolescentes palestinos para que parassem de atirar pedras com as fundas que usavam. usado para enfrentar (falta de melhores armas) veículos blindados.

(2) A “proposta” de “dois estados” já foi adoptada em meados da década de 1980 pela componente maioritária da OLP, a Fatah (na altura liderada por Arafat). A Primeira Intifada (1987) também surgiu em oposição à tendência moderada da liderança da OLP. Contudo, a liderança da Al Fatah continuou no caminho da capitulação, formalizando o reconhecimento de Israel com os acordos de Oslo 1 e Oslo 2 (1993 e 1995). Foi a renúncia ao programa original da OLP, um programa não socialista que, no entanto, previa a libertação de toda a Palestina histórica, “do rio ao mar”, que deixou espaço ao Hamas.

(3) In: Levante a cabeça. Argumentos para a refundação comunista, junho de 2024.

(4) Ver programa eleitoral da lista Santoro-Rifondazione, em:

(5) Edward Said (1935-2003) foi um importante intelectual palestino que se mudou para os Estados Unidos na década de 1950. Membro do Conselho Nacional da OLP, próximo de Arafat e Al Fatah, pelo menos até aos acordos de Oslo, que definiu como uma traição. Depois de ter alimentado algumas ilusões sobre os “dois estados”, baseado nas suas concepções reformistas passou a apoiar a “solução” do estado binacional.

(6) MARX, K. Críticas ao programa de Gotha (1875).

(7) Ver «Chega de hipocrisia! Defenda Gaza!” Declaração TMI (11/10/23), em:

(8) Ver Alan Woods e Ted Grant, Marxism and the National Question, aqui na tradução italiana. Il marxismo e la questione nazionale

Artigo publicado em www.partitodialternativacomunista.org, 18/09/2024

Tradução italiano/espanhol: Natália Estrada