Quem ganha com a “moradia-mercadoria” e mais GCM? Uma análise das propostas da candidatura de Guilherme Boulos para habitação e segurança
Neste artigo, analisamos as principais propostas para os temas de habitação e segurança pública do candidato à prefeitura de São Paulo Guilherme Boulos do PSOL. Como buscaremos demonstrar, nessas duas frentes, a candidatura revela como princípio político-ideológico a aliança estratégica com setores de classe inimigos do povo trabalhador. Quais implicações práticas isso tem? É o que veremos a seguir.
Habitação
A questão da moradia é um tema particularmente importante ao pensarmos a candidatura de Guilherme Boulos, tendo em vista sua trajetória no Movimento dos Trabalhadores sem Teto – MTST.
Esse tema, diferentemente de outros que dependem de atribuição do Estado ou da União, é um assunto eminentemente municipal, porque compete aos municípios as políticas de desenvolvimento urbano para que a cidade cumpra sua função social, bem como as políticas habitacionais, em especial a regularização fundiária de interesse social.
Sobre isso é importante dizer que, quando foi aprovada a lei que instituiu o novo Minha Casa Minha Vida em 2023, ela trouxe consigo um “jabuti”, uma alteração na Lei de Regularização Fundiária (Lei 13.465/2017), autorizando seu financiamento privado. Isso significa que as ocupações e bairros consolidados, mas que se encontram em situação de irregularidade e precariedade (maioria da população), e que poderiam ser legalizadas (com segurança na posse e documento da casa) e urbanizadas com infraestrutura urbana (saneamento, luz, arruamento, etc.) através da regularização fundiária de interesse social (REURB-S), agora podem ter esse direito entregue para a iniciativa privada tirar daí o seu lucro.
Os proprietários de imóveis ocupados por bairros inteiros há décadas poderão ser indenizados. Esse valor, juntamente com o projeto de regularização e as obras de infraestrutura, além do serviço prestado pelas empresas privadas, serão cobrados das famílias. Como o custo dessa operação é alto, o mercado imobiliário e financeiro tem como garantia a própria casa da família. Se deixar de pagar as parcelas por 3 meses, será despejada e o imóvel vai a leilão, podendo ser comprado por qualquer pessoa, já com o valor correspondente à valorização proveniente da própria urbanização. E isso pode ser feito sem acionar a Justiça, porque o STF já deu decisão para garantir esse despejo sem direito de defesa, essa facilitação em caso de inadimplência.
A viabilidade dessa operação está no instrumento da “alienação fiduciária”, tão importante para o mercado financeiro. Agora ela não apenas está presente nas políticas de produção habitacional que ajudou a construir, como o MCMV, mas adentra a REURB-S, que se torna, então, um ativo financeiro. Portanto, essa mudança significa um avanço e uma complexificação dos interesses e mecanismos do capital no atual estágio de acumulação financeirizada que nos encontramos, e que tem na produção do espaço urbano um campo fundamental de extração e acumulação de riqueza.
Essa regularização fundiária “social de mercado” vem do programa Casa Verde e Amarela do Bolsonaro e foi mantida e “legalizada” através do novo MCMV. A proposta de emenda veio do presidente da Frente Parlamentar Mista em Apoio à Regularização Fundiária, Desenvolvimento Habitacional e Desenvolvimento Urbano Sustentável (FPDUS), o deputado federal Marangoni (União Brasil / SP), da qual Guilherme Boulos faz parte enquanto deputado. Sua aprovação, sem qualquer questionamento por PT ou PSOL, foi parte das negociações do Governo Lula com o “centrão”. Ao rifar esse direito, autorizando sua privatização, em nome da governabilidade para os de cima, o governo contribui com a piora nas condições de acesso à moradia digna para os de baixo, e isso é vivenciado na “ponta”, nas cidades.
Não conseguir acessar o mercado formal da mercadoria moradia, seja através da compra da casa ou do aluguel, é o que faz – e historicamente fez – a maior parte da classe trabalhadora ocupar áreas e isso é o que caracteriza a construção e a urbanização das grandes cidades no nosso país. Ao viabilizar a privatização da regularização, os governantes garantem os interesses do capital e aprofundam um ciclo vicioso que acarretará despejos por falta de pagamento, empurrando as pessoas novamente para mais longe, para ocupar ou se instalar em lugares irregulares e informais para poder sobreviver. Uma manipulação perversa e lucrativa da luta por sobrevivência da classe trabalhadora!
A dimensão e a escala que isso pode alcançar é gigantesca, e o projeto “piloto” desse novo negócio é São Paulo (como temos vivenciado na Ocupação Esperança em Osasco, organizada pelo Luta Popular). Boulos não apenas votou a favor dessa mudança como nada questionou, tampouco agora a denuncia, nem se posiciona sobre como reverter essa situação e garantir a REURB-S como direito e como solução para a maior parte da periferia já consolidada do município. Ele tem repetido que vai fazer a regularização com urbanização via Prefeitura para 250mil famílias, mas não diz em que condições isso vai ocorrer, assim como evita falar da privatização da Enel e da Sabesp, tema tão relevante para o acesso à infraestrutura urbana sobretudo para a população mais pobre. Além disso, a cidade de São Paulo também tem sido palco da barbárie do planejamento urbano. A recente revisão do Plano Diretor do Município e Lei de Parcelamento, uso e Ocupação do Solo, não apenas foi marcada pela total ausência de participação democrática, mas viabilizou violentamente o avanço dos interesses dos agentes e investidores do mercado imobiliário e financeiro, aumentando o potencial construtivo predatório e concentrador dos empreendimentos imobiliários e aprofundando a lógica mercadológica de pensar a cidade. Seguindo a tendência que já vivemos há décadas, os efeitos serão um aumento das desigualdades de acesso à moradia, serviços, infraestrutura urbana, transportes etc, e da segregação socioespacial, com aumento dos preços de imóveis e aluguéis, da violência e da piora na qualidade e custo de vida.
Diante do abismo em que nos encontramos, de uma cidade opressora, onde a vida se torna cada vez mais insuportável, Boulos tem denunciado o Plano Diretor de São Paulo, embora tenha se reunido diversas vezes com a Secovi-SP (entidade patronal que representa os interesses das empresas do setor imobiliário e da habitação no estado de São Paulo) e Abrainc (Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias) . A mudança do Plano Diretor não depende do Prefeito, mas da Câmara dos Vereadores, mas é certo que o Executivo tem um papel decisivo ao fomentar e propor políticas públicas de desenvolvimento urbano que resistam e proponham outros caminhos que se contraponham à essa lógica.
Aliás, a própria constituição prevê o papel do Município na fiscalização do cumprimento da função social da propriedade, permitindo a aplicação de parcelamento ou edificação compulsórios, IPTU progressivo no tempo e desapropriação de imóveis ociosos. Isso jamais foi efetivado por nenhuma gestão anterior e o movimento social que luta por moradia, ao ocupar, justamente denuncia essa situação e cobra medidas nesse sentido, para garantir casa para quem precisa.
Boulos não fala como aplicará esses instrumentos, tão defendidos nas lutas das ocupações urbanas. Isso é particularmente significativo quando, segundo o último senso do IBGE, vivemos em uma cidade com déficit de aproximadamente 400 mil moradias, ao passo que existem quase 600 mil imóveis sem pleno uso de suas funções sociais.
A locação social, que também tem sido objeto de reivindicação dos movimentos sociais de luta por moradia, aparece associada ao retrofit, um método de restauração de imóveis antigos, fortemente utilizado no centro de São Paulo, com incentivos ficais para os empreendedores dessa modalidade de requalificação e renovação urbana, através de aprovação em tempo recorde da Lei que o institui.
Sem dúvidas o centro precisa de intervenção do poder público, pois grande parte do contingente de imóveis vazios existentes na cidade se concentra nessa região. Esses imóveis precisam ser ocupados e mobilizados em favor das pessoas que não tem acesso à moradia digna ou de serviços públicos. Mas o que a lei do retrofit de São Paulo propõe é uma grande transformação da região com valorização mercadológica e expulsão de antigos moradores. Boulos não diz se pretende propor uma outra perspectiva para essa questão. Do mesmo modo, ao anunciar que novos empreendimentos via Minha Casa Minha Vida (50 mil unidades) ele também evita falar das condições em que isso vai se dar.
Por fim, também chamou a atenção, acerca da região central de São Paulo, a fala de Guilherme Boulos na entrevista ao Programa Roda Viva, que poderia ser a qualquer outro político desde a era Kassab. “Precisamos revitalizar o centro”, “Levar vida ao centro”, “As famílias não vão mais”… frases que foram historicamente mobilizadas para legitimar a expulsão da população trabalhadora pobre do centro da cidade através de processos de gentrificação, que ocultam que existe sim muita vida no centro, com pessoas que ali moram, circulam ou possuem pequenos comércios. Esse tema é pauta histórica dos movimentos de moradia do centro, a qual Guilherme Boulos conhece e muito bem!
Ainda, o termo “Choque de zeladoria” dito no mesmo programa, para além transpor o linguajar empresarial à gestão pública da cidade, ao se associar à ideia de “falta de vida” no centro, também reforça a repugnante estigmatização dos ocupantes, dos moradores de cortiço, da população em situação de rua, catadora e ambulante, legitimando um discurso de criminalização da pobreza.
“Segurança Pública”
Os principais atingidos pela violência urbana no Brasil são os mais pobres, principalmente pessoas jovens e negras. A desigualdade social e econômica é uma das principais causas da violência urbana e a pobreza é um dos seus principais fatores. Os homicídios concentram-se em bairros pobres. A segregação social (de classe) e racial no território intensifica as diferentes formas com que a violência do Estado se impõe.
O agravamento desse quadro nas últimas décadas não está ligado ao uso e comércio de drogas em si, mas, precisamente, à criminalização desse uso e do comércio e distribuição ilegais de drogas, viabilizado por grandes setores do capital que tem na proibição um dos negócios mais lucrativos do mundo.
A isso se associa a seletividade do sistema de justiça criminal, que vai desde a postura ostensiva das forças de repressão nos territórios periféricos, passando pela abordagem policial até a execução de pena em unidades prisionais desumanas. Em suma, as instituições que dizem garantir nossa segurança são parte do problema.
Nesses marcos, chama a atenção que o carro-chefe da campanha de Guilherme Boulos (PSOL) na segurança pública seja dobrar o número de guardas municipais. Essa proposta tem o potencial de multiplicar episódios como o do assassinato da a adolescente Camilly Lima, morta em agosto pela GCM no Capão Redondo. Verdade seja dita, não surpreende nada se lembrarmos da sinalização dada meses atrás com entrada de Alexandre Gasparian, ex-comandante da Rota, na equipe de elaboração do programa eleitoral psolista.
Fato é que não há política de esquerda séria sem partir da constatação básica de que o Estado brasileiro, em todas as suas instâncias, atua em regra por meio da violência de classe, raça e gênero contra a maioria da população.
Por um lado, trata-se do longo processo de extermínio e controle social da burguesia periférica contra os de baixo. Por outro, de uma das formas do capitalismo de lidar com a enorme reserva de força de trabalho do país, em grande parte racializada, cuja função é facilitar o rebaixamento das condições de vida de toda a classe trabalhadora.
Nesses marcos, os mecanismos de repressão, da polícia ao Judiciário, atuam para alimentar o medo nas populações trabalhadores, principalmente nas periferias. Isto corresponde à estratégia de desincentivar toda organização popular que questione a ordem social. A fim de cumprir este objetivo, o militarismo precisa ser um atributo que não se limita às polícias oficialmente militares. Esse pano de fundo explica por que há uma crescente transformação da GCM.
Por muito tempo, a atribuição dessa força se limitou à proteção de bens, serviços e instalações municipais. Os membros da Guarda não poderiam, em tese, enquadrar e revistar alguém na rua.
É fato, contudo, que no estado de São Paulo várias gestões vêm paulatinamente transformando essas forças em verdadeiras Polícias Municipais. Este é o termo usado, inclusive, por um parlamentar do Cidadania em projeto de lei apresentado na ALESP no começo de 2024.
Não é de hoje que a CGM atua para repreender violentamente, por exemplo, vendedores ambulantes a população em situação de rua. Além disso, também não é de hoje que diversos municípios da região metropolitana contam com guardas civis não só muito mais equipadas e treinadas que a PM, e justamente também profundamente repressivas e violentas, e que atuam, inclusive, em despejos e remoções forçadas. Na capital, é comum ver a GCM abordando nas ruas e tendo papel decisivo nas operações repressivas na “Cracolândia”.
Em S. Caetano do Sul, a Guarda Municipal chegou a montar uma espécie de BOPE. Já foi identificado que esse batalhão especial atua com violência até mesmo fora dos limites do município. Em Itapecerica da Serra, guardas abordaram jovens que andavam de moto em um terreno baldio e cometeram crimes terríveis contra essas pessoas, inclusive abuso sexual.
Há mais de 10 anos movimentos e entidades ligadas ao combate à seletividade do sistema de justiça criminal e ao encarceramento em massa denunciam a lógica policial que tem prevalecido nessas corporações, caracterizada por um patrulhamento ostensivo, abordagens seletivas, apreensão de pertences e a realização de prisões.
O Governo Lula também deu sua contribuição para regularizar o papel de polícia das guardas com o decreto 11.841 de 2023. Ministro da Justiça à época, Flavio Dino tuitou: “Guardas municipais mais fortes e com mais segurança jurídica para atuarem na segurança pública, em defesa da sociedade”. “Segurança jurídica” quer dizer: podem brincar de PM à vontade, prendendo em flagrante e levando às delegacias, com respaldo legal.
Aliás, o Governo Federal também alimentou essa lógica com a manutenção deste quadro geral ao sancionar a Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares nos Estados. Como se sabe, o texto mantém o legado da ditadura civil-militar que estruturou a segurança pública nos moldes atuais. Para não confrontar o acordão de governabilidade com os militares, o PT manteve intacto esse “entulho autoritário”. Importante também mencionar a PEC 57/2023, assinada por vários petistas, que visa transformar, na Constituição Federal, a GCM em polícias municipais.
Finalmente, é necessário tomar posição oposta à política oficial de “guerra às drogas”. Ao contrário do que tem dito Boulos, não basta defender a resolução do STF sobre o tema, que está longe de ser suficiente. É preciso avançar para a descriminalização do uso de drogas (não apenas da maconha) associado a políticas de reparação dos danos causados por essa guerra sobre determinadas pessoas e seus territórios.
Verdade seja dita, adotar esta posição coloca um confronto direto com o Governo Lula, que aprovou a Lei de Drogas em 2006, responsável pela explosão do encarceramento em massa no Brasil.
A seletividade do sistema penal se evidencia no fato de que 80% das pessoas está presa por crimes contra o patrimônio (a propriedade privada) ou pequenos delitos relacionados ao tráfico de drogas, e são, em sua maioria, pobres, pretas, jovens e periféricas. Cerca de 41% da população prisional brasileira sequer tem condenação definitiva e é, portanto, juridicamente inocente. A política de combate às drogas é ainda mais cruel quando se trata das mulheres. Mais de 60% das mulheres presas são acusadas por crimes relacionados ao tráfico de drogas.
Conforme aponta a Agenda Nacional pelo Desencarceramento, o sistema carcerário do Brasil, assim como todo o aparato penal e repressivo do Estado brasileiro, é caracterizado por produzir massacres, torturas e mortes. Essa realidade não é diferente em relação a adolescentes e jovens com menos de 18 anos que cumprem medidas socioeducativas de internação, mais uma face do encarceramento em massa.
Por isso, medidas que fortaleçam as guardas municipais reforçam o aumento das abordagens policiais, das prisões preventivas, do incremento da população prisional e das violências sofridas pela prisão. Qualquer mudança nesse cenário de criminalização da pobreza e aumento da violência contra os mais pobres passa por despenalizar o uso de drogas e por um processo de desencarceramento em massa, fortalecendo ao mesmo tempo instâncias comunitárias de poder dos trabalhadores para resolver os conflitos de forma não repressiva.
Uma força de segurança sem controle público de fato é o caminho certo para uma série de abusos. Tal poder, contudo, não deve partir de Executivos, Legislativos, nem Judiciários, sabidamente comprometidos com a política atual de insegurança. É preciso formular caminhos para extinguir o modus operandi militarizado das guardas, tão necessário à dominação burguesa de classe e raça.
Conclusão
A análise sobre o programa de habitação e “segurança pública” da candidatura do PSOL em São Paulo nos permite terminar nosso artigo constatando a natureza plenamente capitalista das propostas de Guilherme Boulos.
Alguém pode retrucar: “mas ele nunca disse o contrário”. Verdade. Fato é que tais propostas não apenas não alteram ou amenizam o cenário que vivemos, mas o aprofundam. O discurso de Boulos é de quem quer se mostrar um bom gestor para o capital.
É justamente a disposição de governar com os capitalistas o obstáculo absoluto para implementar uma política que resolva estruturalmente os problemas mais sentidos pela maioria da população. E aqui não se trata de uma hipótese sobre o futuro, mas de simples constatação a partir da história recente de partidos como o PT brasileiro e o Syriza grego.
A quem cobrar “realismo” da nossa parte, perguntamos o que de fato é irreal: concluir que somente pelas forças do povo trabalhador virá um novo amanhã ou acreditar que vencer de mãos dadas com o inimigo ajuda na construção de um futuro radicalmente diferente do presente?