Internacional

Quais conclusões podem ser tiradas das eleições europeias?

Joana Salay, de Portugal

20 de junho de 2024
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Marine Le Pen, dirigente do partido de extrema direita da França, Reunião Nacional (RN)

Muito se tem falado sobre o resultado das eleições para o Parlamento Europeu, vencidas pela direita e a extrema direita em vários países. Que conclusões devemos ter deste processo?

Primeiro, vale lembrar que, desde as últimas eleições, em 2019, muita coisa se passou na Europa: a pandemia, a Guerra na Ucrânia, a volta da inflação e o aumento da pressão, em todo o continente, causada pelo acentuamento da crise da ordem mundial.

Além disso, em meio à disputa interimperialista entre os Estados Unidos (EUA) e a China, a União Europeia, mantendo a sua essência imperialista, tem perdido protagonismo e está desempenhando um papel cada vez mais subordinado na economia e na ordem mundiais.

Estas eleições, assim, refletem esse processo. Mas, a crise do projeto europeu é ainda anterior e, podemos dizer, está apenas começando.

O Parlamento Europeu e as eleições

Vinte e sete países prticipam das eleições europeias, elegendo 720 eurodeputados para um mandato de cinco anos. Mas, as principais decisões europeias não passam pelo Parlamento e, sim, pela Comissão Europeia (CE), atualmente presidida pela alemã Ursula von der Leyen, e pelo Banco Central Europeu (BCE), presidido pela francesa Christine Lagarde.

A malfadada “Troika” da crise de 2008, que atuou de maneira autoritária e unilateral sobre os países do Sul da Europa, para garantir a aplicação dos planos de austeridade, era composta exatamente por essas instituições, juntamente com o Fundo Monetário Interncional (FMI).

As presidências dos órgãos são ratificadas pelo Parlamento, mas são previamente negociadas pelos Estados-Membros, em decisões determinadas pela hegemonia imperialista francesa e alemã.

Não à toa, a taxa de abstenção nestas eleições foi de 49%, refletindo a ausência de entusiasmo com um processo de muitas cartas marcadas, que deslegitima não apenas as eleições europeias, mas também as nacionais.

A verdadeira essência da União Europeia

Muito se fala, também, dos “valores europeus”, que levaram à fundação da União Europeia (UE): a dignidade humana, a democracia, a liberdade, a igualdade, os direitos humanos e o Estado de direito. Contudo, há um grande abismo entre este discurso e a prática.

O Mercado Único Europeu, estabelecido em 1987, promoveu a total liberdade de movimento de capital, seguido da implementação da moeda única europeia, através do Tratado de Maastricht, em 1991. Juntamente com a liberdade de circulação de capitais, veio, também, uma investida neoliberal, que visava minar as conquistas sociais alcançadas desde o pós-Segunda Guerra.

Relembremos, por exemplo, a famosa luta dos mineiros britânicos contra Margaret Thatcher, no inicio dos anos 1980. Mas, as medidas neoliberais não vieram apenas pelas mãos de forças políticas conservadoras.

Na França, por exemplo, François Miterrand, do Partido Socialista, a partir de 1983, protagonizou a chamada “virada do rigor”, rompendo abertamente com o programa pelo qual foi eleito. Por toda a Europa, os partidos social-democratas passaram a liderar a retirada de direitos e a flexibilização das relações de trabalho, muitas vezes com a cumplicidade dos sindicatos, frequentemente dirigidos por Partidos Comunistas.

Um salto da crise

A crise de 2008 significou um salto neste processo, com a utilização da dívida como camisa de força, levando ao desmonte da economia nacional de diversos países, como Portugal e Grécia. Paralelamente, a destruição do Estado de Bem-Estar Social, a crescente concentração de riquezas e a livre circulação de capitais esmagaram um amplo setor das classes médias urbanas e rurais.

Criminalização da imigração

Ao mesmo tempo em que a UE passou a esmagar a classe trabalhadora europeia, perseguiu e legitimou o racismo e a xenofobia contra os imigrantes. O Novo Pacto Europeu de Imigração e Asilo (PEMA), da União Europeia, torna mais difícil a acesso ao asilo, estabelece rejeições na fronteira, legalizando e financiando expulsões imediatas, e amplia o uso da detenção, até para crianças.

Com o PEMA, países receptores que não desejem dar asilo pagarão 20 mil euros por pessoa para encaminhá-la a outro país da UE, destinando esses fundos para deportações e o reforço das fronteiras. Longe de resolver a crise migratória europeia, o PEMA acaba por legitimar a repressão e a morte dos imigrantes no Mar Mediterrâneo, que, somente em 2024, já somam mais de 5.000 casos.

Repressão às lutas pela Palestina

Polícia alemã reprime manifestação de solidariedade à Palestina

A UE e seus governos nacionais fortalecem e reprimem os movimentos sociais e da classe trabalhadora. O exemplo mais recente é a repressão às lutas pró-Palestina, na França e na Alemanha. A UE dá apoio e cobertura para o genocídio em Gaza, enquanto reprime os que protestam contra ele. Por outro lado, continuam com o discurso de apoio à Ucrânia, mas sem fornecer as armas necessárias para que esta derrote a invasão russa.

A hipocrisia europeia é muito nítida. A dignidade humana, a liberdade, os direitos humanos e a democracia são apenas para alguns poucos.

Antes da extrema direita

A virada à esquerda no pós 2008

Antes da extrema direita começar a ganhar peso eleitoral, houve um importante processo de contestação em toda a Europa. A classe trabalhadora e a juventude fizeram fortes mobilizações contra as medidas de austeridade impostas pela grande burguesia.

Ocorreram dezenas de greves gerais, manifestações e acampamentos, de onde nasceram os movimentos “15M” e os “Indignados”, uma poderossíma onda de protestos, iniciada na Espanha, em 15 de maio de 2011, sob o lema “Não somos mercadorias nas mãos de políticos e banqueiros”.

Este processo significou um giro à esquerda no continente, fazendo com que forças como Syriza (Grécia), Podemos (Estado Espanhol) e Bloco de Esquerda (Portugal) ganhassem muito peso eleitoral. Porém, o que essas direções fizeram com a esperança que conseguiram canalizar? A linha de “levar a luta ao voto” significou depositar as fichas da mobilização exclusivamente na luta parlamentar.

Na Grécia, o governo do Syriza foi um grande exemplo de traição, deixando rapidamente de lado o programa com o qual foram eleitos, para ceder às pressões da Troika, passando por cima até do resultado do referendo de julho de 2015, que disse “Não à Troika”. Já o Podemos e o Bloco de Esquerda optaram por dar apoio parlamentar aos governos do Partidos Socialistas, lutando por migalhas, via Parlamento, enquanto a crise social se acentuava.

Hoje, não podemos compreender o peso da extrema direita sem entender a desilusão provocada pela traição feita por estes partidos.

Demagogia e repressão

A extrema direita é reflexo da decadência capitalista

Nestas eleições europeias, a extrema direita foi a força política mais votada na Itália, na França, na Hungria, na Bélgica, na Áustria e na Polónia, e a segunda força na Alemanha e na Holanda. Ainda que tenha crescido menos que o esperado, a extrema direita alcançou um pouco mais de 20% do total de votos nas eleições.

O exemplo da França é importante. O imperialismo francês vive uma forte crise, com processos em curso nos países africanos e, mais recentemente, protestos na Nova Caledônia, que colocam o seu projeto neocolonial em xeque.

Neste contexto, o partido de Le Pen, o Reunião Nacional (RN), venceu pela terceira vez consecutiva uma eleição europeia e se tornou o partido com mais deputados no Parlamento Europeu. O partido de Macron (o Renascimento) teve menos de 15% dos votos. Este resultado causou um terremoto político, levando Macron a convocar eleições legislativas de emergência.

Não temos dúvida de que o crescimento da extrema direita pode acentuar ainda mais o caráter repressivo e reacionário da UE. Na Comissão Europeia, Von der Leyen já fala numa “extrema direita boa”, apoiada em Giorgia Meloni, Primeira Ministra da Itália, que pode ser parte da base governativa europeia, legitimando, assim, as suas propostas xenófobas e racistas.

Perante a crise do projeto europeu, que tem como consequência a deterioração das condições de vida de milhões de pessoas, combinada com um nacionalismo xenófobo crescente e incentivado pelas próprias instituições europeias, não nos surpreende que forças políticas como a extrema direita estejam se fortalecendo, financiadas, inclusive, por setores da grande burguesia.

O discurso demagógico antissistema, combinado com a crise da direção revolucionária da classe trabalhadora, acaba seduzindo um setor da classe trabalhadora e uma classe média descontente e sem alternativas.

Lições da História

Retomar a Frente Popular não é a solução

Na França, perante a convocatória de novas eleições, foi anunciada uma coalização por uma nova “Frente Popular”, composta pelos Verdes, o Partido Comunista Francês (PCF), o França Insubmissa e o Partido Socialista (PS), citando como referência a experiência da Frente Popular, de 1936, um governo liderado por Léon Blum, a partir da coligação entre PS e o PCF.

Vários partidos da esquerda europeia comemoraram a “união”, referindo-se aos importantes avanços sociais conquistados durante o governo de Blum. O que fingem esquecer é que, neste período, a França vivia um forte processo revolucionário, a Frente Popular acabou servindo para a contê-lo e a desmoralização da classe trabalhadora, decorrente disto, levou à queda do governo, em 1938, que foi substituído pelo governo conservador de Daladier, que também compunha a Frente Popular. Esquecem-se, também, que Mitterrand foi eleito, em 1981, através de uma frente entre o PS e o PCF.

Evidentemente, a situação política na França de hoje é completamente distinta de 1936 e as próprias direções, que antes tinham muito peso nas organizações da classe trabalhadora, hoje têm muito menos, fazendo com esta Frente Popular de agora seja ainda mais burguesa e muito mais ausente nas mobilizações.

Nitidamente, não retiraram lições dos processos anteriores. O grande problema para a esquerda reformista é que ela não vê horizonte para além das chamadas “forças democráticas”, que, assim como o capitalismo, estão cada vez mais decadentes, negando-se a apontar uma saída independente para a classe trabalhadora. E, ao mesmo tempo, se negam a jogar peso na construção de uma unidade nas lutas, que possa, de fato, enfrentar os ataques dos governos e a extrema direita.

É deste vazio que se alimenta a extrema direita, o que coincide com a decadência cada vez maior do capitalismo.

Construir uma alternativa política da e para a classe trabalhadora

A solução passa por afirmar uma alternativa política da classe trabalhadora, a única saída para crise social que vivemos, apresentando um programa para que ela seja a dirigente de um projeto social alternativo, para além do capitalismo falido.

É preciso construir a mobilização e a organização independente da classe trabalhadora, chamar a unidade para lutar e combater a precariedade e os baixos salários, enfrentando o pacto de imigração, assim como a xenofobia e o racismo.

Também temos que reafirmar a necessidade da luta pela reorganização da economia, para combater a desigualdade e a catástrofe ambiental. É preciso, ainda, afirmar que, dentro da UE dos ricos, não há saída. Que a solução passa pela construção de uma força revolucionária e socialista alternativa, que defenda uma Europa dos trabalhadores e dos povos.