Nordeste

Privatização das praias, Neymar e polêmica com Ian Neves da Soberana

Caio Marx, do Rebeldia

7 de junho de 2024
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Praia do Pina, em Recife. FOTO: Portal da Copa/ME

Recentemente foi discutido no Senado um projeto de emenda à Constituição, tendo como relator o senador Flávio Bolsonaro, que permite a venda de territórios que pertencem à Marinha brasileira para entes privados que possam comprar ou adquirir a propriedade. Este projeto legaliza a venda dos litorais brasileiros para grandes empresas e permite que esses territórios sejam transferidos para estados e municípios, deixando assim de pertencer à União. A extrema-direita apoia a PEC das praias e afirma que este projeto vai atrair investimentos e empregos, transformando as praias brasileiras, especialmente as da região nordeste, em “Caribes brasileiros”. Após a repercussão negativa do projeto de lei, Flávio Bolsonaro afirmou que a PEC não vai privatizar as praias e que estas continuarão sendo um espaço público. Porém, a PEC das praias, ao retirar a influência do Estado sobre esses territórios e não dar nenhuma garantia de acesso às praias, na prática sim, é um processo de privatização. Ao contrário do que diz a extrema-direita, este projeto visa beneficiar as grandes empresas de construção hoteleira que lucram com o turismo, principalmente nas praias do nordeste brasileiro. As grandes empresas hoteleiras e de turismo, com esta PEC, não precisarão mais sequer pagar o imposto que lhes dá direito de construir em áreas da Marinha brasileira, caso possam comprar esses terrenos. Com isso, o acesso às praias será restrito a quem puder pagar, diferente do que ocorre hoje na maioria das praias brasileiras, onde o acesso é público.

Já está em curso um processo real de privatização das praias nordestinas. Em Pernambuco, a praia dos Carneiros, na cidade de Tamandaré, existe um grande conglomerado de empresas de construção de hotéis de luxo na região que estão ocupando as praias, criando espaços exclusivos e dificultando o acesso dos trabalhadores que se sustentam com o comércio de praia, impedindo que estes transitem ou ultrapassem os espaços delimitados. Inclusive, Neymar, jogador do Al-Hilal, possui investimentos na região junto com a incorporadora Due, em residenciais de luxo à beira-mar chamados “Orla Praia dos Carneiros” e “Boulevard Praia dos Carneiros”. O próprio Neymar fez um vídeo anunciando o projeto, afirmando que a Incorporadora Due vai criar a “Rota Due Caribe Brasileiro” nas praias do nordeste. Ele não está mentindo, pois já existem projetos da incorporadora também no município de Ipojuca, na praia de Muro Alto, com a construção do residencial “Cais Eco Residência”. O vídeo de Neymar e da incorporadora Due ganhou repercussão após a denúncia de ambientalistas contra esta empresa por violar as leis ambientais ao restringir o acesso às praias. Vale lembrar que Neymar é um apoiador do bolsonarismo e, com esta PEC das praias, será um dos beneficiados, além de outras grandes empresas de hotelaria e residenciais de luxo que já atuam na praia de Porto de Galinhas, em Ipojuca, e em praias do estado de Alagoas.

PEC das Praias legaliza apartheid no litoral brasileiro

As praias do nordeste atraem turistas do Brasil e do mundo todos os anos, principalmente no verão. Muitos trabalhadores retiram seu sustento da venda e comércio na praia; é bastante comum encontrar trabalhadores desempregados que vão às praias vender produtos variados, desde pescados até produtos de beleza, para ter o que comer no final do dia. Muitos destes são jovens, visto que a maioria dos desempregados, por exemplo, na região metropolitana do Recife são jovens, e não é diferente em outras capitais do nordeste, onde o trabalho informal e precário vem crescendo bastante na juventude. Sendo assim, a PEC das praias, ao permitir que empresas privadas se apropriem destes territórios, estará, diferente do que diz a extrema-direita, expulsando esses trabalhadores e impedindo que retirem seu sustento, tendo em vista que isso já acontece em praias do nordeste brasileiro, mesmo sendo ilegal. Dessa forma, a PEC das praias visa criar um apartheid no litoral brasileiro, onde haverá espaços exclusivos em que os mais pobres não terão acesso. Somente aqueles de classe média alta e bilionários como Neymar poderão ter acesso às praias, pois, na prática, só quem puder pagar poderá utilizá-las. É um projeto anti-pobre e anti-trabalhador, e não surpreende o apoio da extrema-direita a este projeto, já que estes odeiam os mais pobres, a classe trabalhadora, as mulheres, os LGBTQIA+, os negros e negras, os indígenas e quilombolas. Enquanto 75 mil trabalhadores e trabalhadoras estão sem um teto para morar em Recife e milhares de trabalhadores perderam suas casas e todos os seus bens com as enchentes no Rio Grande do Sul, residenciais luxuosos à beira-mar estão sendo construídos por esses bilionários capitalistas que estão se apropriando das praias para lucrar e explorar os trabalhadores.

Além disso, a privatização das praias vai expulsar trabalhadores que possuem barracas e quiosques à beira-mar para venda de produtos variados. Existem vários destes, por exemplo, na praia do Pina, nos bairros do Pina e Brasília Teimosa, em Recife, bairros populares à beira-mar que resistem à especulação imobiliária. Mas, mais do que isso, este projeto busca permitir que grandes investidores capitalistas e empresas de construção, hotelaria e turismo abocanhem as praias para auferir lucros e transformar as praias nordestinas em espaços de luxo para usufruto dos mais ricos, demonstrando que, para os bilionários capitalistas, não existem limites. Ao deixar de ser um espaço público, as empresas e investidores privados vão se apossar das praias e criar um verdadeiro apartheid, onde, de um lado, haverá espaços exclusivos para a classe média alta e os bilionários em SPAs e hotéis de luxo, e do outro, os mais pobres, em sua maioria negros e negras, que não poderão mais utilizar a praia e nem dela tirar seu sustento. Por isso, chamamos esta PEC das praias de PEC do apartheid, pois vai segregar e dividir os espaços entre bilionários e pobres.

Destruição ambiental: quem mais sofre são os trabalhadores e os mais pobres!

Além da segregação social e também de cunho racial, visto que a grande maioria dos trabalhadores pobres são negros e negras, esta PEC permite que as empresas privadas prejudiquem ainda mais o meio ambiente. Os litorais nordestinos foram extremamente devastados com o processo de urbanização e, para a construção dos residenciais e hotéis de luxo, estas empresas estão devastando a mata costeira das praias, fomentando a erosão costeira, que é, trocando em miúdos, a erosão causada pela ação das águas do mar que, devido à ação antrópica, ou seja, a ação humana na modificação do desenho das praias, está se intensificando. A erosão costeira e o avanço do mar prejudicam principalmente os mais pobres, revelando a face mais crua do racismo ambiental. Os bairros Brasília Teimosa e Boa Viagem, em Recife, são os mais vulneráveis à erosão costeira, principalmente o bairro popular de Brasília Teimosa, que já sofre com enchentes, mesmo sem chuva, devido a esta erosão. Já quase não é mais possível ver praia nestes bairros, devido ao avanço do mar, e a ressaca das marés já está ultrapassando o limite de contenção. O aumento das temperaturas, causado principalmente pela emissão de gás carbônico no meio ambiente, junto à devastação da mata costeira das praias, impacta diretamente os oceanos, que estão elevando o nível do mar. Estudos apontam que a capital Recife é uma das mais vulneráveis à mudança do clima, pois é uma cidade abaixo do nível do mar e bastante suscetível a enchentes. Estes empreendimentos na costa litoral nordestina, além de criar um apartheid social, estão prejudicando ainda mais o meio ambiente. Diferente do que diz o bolsonarista e deputado federal por Pernambuco, Coronel Meira (PL), esta PEC não defende o meio ambiente e legaliza a devastação das matas costeiras das praias, entregando as orlas marítimas nas mãos dos bilionários capitalistas. Estes empreendimentos que o Coronel Meira defende com unhas e dentes, reivindicando o direito à propriedade privada, estão aumentando as ilhas de calor nos ambientes urbanos periféricos das cidades. Ou seja, até mesmo o calor e a sensação térmica são questões de classe, visto que os mais pobres são os que mais sentem calor devido a estas ilhas formadas por esses grandes empreendimentos de luxo à beira-mar.

Polêmica com Ian Neves: Neymar faz parte da classe trabalhadora?

O comunicador digital Ian Neves, do grupo Soberana, há algum tempo, fez um vídeo afirmando que Neymar era um trabalhador e pertencia à classe trabalhadora. A justificativa de Ian Neves para tal afirmação era de que Neymar, por ser assalariado, seria um trabalhador, pois a burguesia, segundo ele, não vive de salário, por ser dona dos meios de produção. Bem, vamos aproveitar este debate da privatização das praias para mostrar como Ian Neves passou longe de uma análise marxista e materialista histórica-dialética da realidade com essa afirmação estapafúrdia. Primeiro que Neymar recebe um salário muito (muito mesmo) acima da média da classe trabalhadora no Brasil e no mundo. O salário de Neymar no seu atual clube de futebol está na casa dos bilhões, enquanto 40% dos mais pobres na região metropolitana do Recife sobrevivem com R$104 por mês. A grande parte da classe trabalhadora gasta o salário com bens necessários à sobrevivência, como alimentação, muito diferente da realidade de bilionários como Neymar, que possuem carros e casas de luxo. Pior ainda, no caso de Neymar, é que este é um grande investidor e está num mega projeto de privatização das praias nordestinas que custa 7,5 bilhões de reais.

Dizer que Neymar é trabalhador é chacota e zombaria com a classe trabalhadora. Neymar é um bilionário capitalista e, apesar de ter vindo da classe trabalhadora, hoje vive numa realidade e num modo de vida completamente diferentes do proletariado. A afirmação de Ian Neves possui uma explicação, pois, como diz Marx, nenhuma ideia paira no ar, mas sim possui explicações materiais, ou seja, tem um pé na realidade. Nesse sentido, por ser adepto do stalinismo, faz sentido Ian Neves defender que Neymar seja um proletário, pois, segundo os manuais de Bukharin sobre materialismo, bastante lidos na União Soviética sob o comando de Stálin e textos do próprio Stálin, a materialidade econômica determina a realidade unilateralmente. Portanto, para os stalinistas, A é sempre igual a A e B é sempre igual a B, pois a matéria determina a consciência e as circunstâncias históricas. Para os stalinistas, a materialidade é pré-determinada e vem sempre primeiro. O próprio Stálin, em seus textos, defendia ser a consciência mero reflexo mecânico da matéria, ou seja, toda consciência, para Stálin, era determinada pela matéria, e por isso esses se apegam às formas das coisas e não ao que elas realmente são.

Ian Neves, por exemplo, se apegou à forma e a um elemento da realidade de que Neymar é um “assalariado” para chegar à conclusão tosca de que ele é trabalhador. Isto é tudo, menos materialismo histórico e dialético. É muito importante compreendermos o seguinte: para Marx, a matéria não determina de maneira mecânica a realidade, pois para Marx a própria matéria é passível de transformação conforme as circunstâncias, por isso esta deve ser sempre analisada em relação, tendo em vista que a consciência também atua sobre a realidade. Nesse sentido, temos o seguinte para Marx: as coisas precisam ser analisadas em relação social, produtiva e histórica, senão caímos num erro muito comum do materialismo vulgar. É o materialismo vulgar que Marx vai criticar de forma contundente nas Teses sobre Feuerbach, pois esses materialistas vulgares abstraem da materialidade toda sua práxis humana, como diz Marx:

“A principal insuficiência de todo o materialismo até aos nossos dias — o de Feuerbach incluído — é que as coisas, a realidade, o mundo sensível são tomados apenas sobre a forma do objeto ou da contemplação [Anschauung]; mas não como atividade sensível humana, práxis, não subjetivamente”.

Assim sendo, para Marx, a forma do objeto, as coisas devem ser tidas enquanto atividade humana prática sensível, devem ser analisadas dentro de uma realidade moldada pela sociedade e pelas classes envolvidas. Portanto, dizer que Neymar é um trabalhador por ser assalariado é apenas tomar a forma do objeto “o pagamento em salário” como um produto dado e acabado, sem qualquer intermediação ou relação com as coisas. É diferente quem acorda e tem que trabalhar na escala 6×1, recebendo um salário mínimo, de quem acorda com bilhões na conta e mega investimentos. Por isso, esta análise mecânica da realidade propagada pelo stalinismo nada tem a ver com marxismo ou materialismo histórico e dialético. Na verdade, esta corrente de pensamento é uma deturpação da realidade e do marxismo para defender os interesses de uma burocracia política. Enfim, essa polêmica é para demonstrar que Neymar é inimigo da classe trabalhadora por ser um bilionário capitalista e não um aliado, como defende o stalinismo e seitas pequeno-burguesas como o PCO, que distorcem a realidade para impor suas políticas.

Não à privatização das praias!

A PEC das praias é um absurdo e demonstra como a extrema-direita bolsonarista e os bilionários capitalistas estão unidos contra o povo trabalhador, criando um apartheid no litoral brasileiro e destruindo o meio ambiente para garantir o lucro. Por isso, somos contra a PEC das praias, pois defendemos que a praia seja pública e um bem da classe trabalhadora e não dos bilionários. É necessário o fim dos resorts e residências de luxo à beira-mar que depredam o meio ambiente e impedem a utilização das praias pelos trabalhadores mais pobres. É preciso investimento público na revitalização das praias para utilização pública, melhoria na qualidade das praias como espaços de lazer da classe trabalhadora e preservação da fauna e da flora para impedir a erosão costeira e enchentes. É de extrema importância a auto-organização dos trabalhadores, dos pescadores e dos trabalhadores das praias, bem como dos moradores nas áreas de praia, para defender o ecossistema marinho e o espaço público contra os interesses privados dos bilionários. Defender a praia como espaço público é defender o direito dos trabalhadores à moradia, ao trabalho e ao lazer!