Oscar Wilde: da glória à lama e ao calvário na prisão de Reading
Neste terceiro e penúltimo artigo da série sobre Oscar Wilde, veremos como o auge de sua fama coincidiu com sua derrocada, em lances dramáticos que são exemplares da forma perversa que atinge aqueles que praticam o “amor que não se diz o nome”, como o escritor disse durante o julgamento que resultou na condenação a dois anos de prisão, com trabalhos forçados.
No artigo anterior, vimos como a publicação de “O retrato de Dorian Gray” e as polêmicas em torno da peça “Salomé” colocaram Oscar Wilde no centro de fervorosos debates e críticas, mas o fato é que o escritor potencializou ao máximo a publicidade conquistada por estes “escândalos”, algo completamente sintonizado com um de seus mais famosos aforismos: “Só há apenas uma coisa no mundo pior do que falarem mal de você. Não falarem sobre você”.
Comédias que descortinaram a hipocrisia da Era Vitoriana
No início dos anos 1890, os inventivos livros com contos e fábulas infantis – como “O Príncipe feliz e outros Contos” (1888), “O crime e outras histórias de Lord Arthur Savile” (1891) e a “A casa dos Romãs” (1891) –, que ele havia escrito para seus filhos, já faziam cada vez mais sucesso, apaziguando, um pouco, o impacto da fúria dos reacionários sobre o público em geral.
Mas, o triunfo, de fato, foi atingido através de uma sequência de peças encenadas a partir de 1891, como “O leque de lady Windermere (1892), “Uma mulher sem importância (1893) e “O marido ideal” (1895) e “A importância de ser Prudente” (1895).
E vale dizer que quase chega ser uma ironia “wildiana” que suas peças mais bem sucedidas sejam, todas elas, sátiras, algumas nada sutis, da hipocrisia que caracteriza sua sociedade em termos da moral e dos costumes, geralmente centradas na instituição mais valorizada pela Era Vitoriana: a família.
Algo, contudo, que tem uma explicação: o reinado de Vitória e o mundo que ela conduziu com punhos de ferro estavam à beira do fim e o público que frenquentava seus espetáculos se identificava com a irreverência e impertinência que Wilde destilava contra as convenções, as maneiras, os preconceitos (sociais e sexuais) e os hábitos.
E mesmo que parte da audiência fosse composta exatamente pelos exemplos mais deploráveis disto tudo, uma classe média cada vez mais descontente também lotava suas apresentações. E é exatamente por isso que Wilde é considerado o “pai” da Comédia Moderna no teatro britânico.
Nelas, há um pouco de tudo. Na primeira citada, uma mulher arruína sua própria reputação para salvar a da filha e lhe garantir um bom casamento; na segunda, a protagonista se recusa a se casar com um nobre, pelo qual nutre um profundo ódio e com quem teve um filho fora do casamento; na terceira, Wilde espinafra a elite nobre vitoriana, bem como demais setores da população, numa trama que descortina a hipocrisia no comportamento moral e sexual, além da corrupção na máquina do Estado.
A última delas, que, aqui, também ficou conhecida como “A importância de ser Ernesto”, em função de um trocadilho intraduzível no título original “The importance of being Earnest” (onde a última palavra pode ser tanto um nome próprio quanto significar “honesto” ou “sério”), foi a que o consagrou definitivamente.
A peça tem como subtítulo “uma comédia trivial para pessoas sérias”, o que, por si só, já é uma provocação, na medida em que sua narrativa gira em torno de grupo de pessoas que se escondem por trás de mentiras e nomes fictícios como forma de lidar e sobreviver numa realidade (a própria Era Vitoriana) onde as aparências importam muito mais que a verdade.
Considerada o melhor e mais influente trabalho de Wilde, o texto e o extraordinário sucesso que alcançou, contudo, funcionaram quase como um prólogo para a tragédia que veio logo a seguir. Uma tragédia que muitos dos amigos de Wilde já o haviam alertado que estava anunciada e que, de forma dramática, ao melhor estilo “wildiano”, teve início na portaria do teatro onde a peça estava em cartaz, sendo marcada, depois, por uma sucessão de “atos”, um mais tenso que o outro, até o desfecho catastrófico.
A “via crucis” de Oscar Wilde
Na primeira cena foi vista, em 18 de fevereiro, quando o pai de Bosie, o ultraconservador e homofóbico Marquês de Queensberry, que há tempos tentava afastar os dois e, inclusive, chegou até a planejar a invasão do teatro várias vezes para humilhar Wilde, literalmente surtou ao vê-los juntos na saída de uma apresentação e mandou um bilhete desaforado para Wilde, chamando-o de “sodomita”.
Na sequência, contrariando o conselho de todos os amigos, mas cedendo à pressão de Bosie, que queria se vingar do pai, Wilde, como resposta (intempestuosa, no mínimo), abriu um processo por calúnia, exigindo a prisão do Marquês. O que, obviamente, o deixou ainda mais furioso e o suficientemente motivado pra procurar provas para inverter o jogo, algo que, para a desgraça de Wilde, foi fácil de encontrar dentre os jovens prostitutos com que o escritor se relacionava.
Em 6 de abril, mesmo dia em que viu o Marquês ser declarado inocente, Wilde foi detido sob a acusação de “indecência grave/repugnante” e, a partir do dia 26, tomou o centro de um palco no qual jamais esperaria ser protagonista, em dois sucessivos e massacrantes julgamentos, sendo que, no segundo, o fala de abertura do juiz é nada menos do que o prenúncio da condenação:“preferiria julgar o caso de homicídio mais chocante que fosse colocado em suas mãos do que estar envolvido num caso como este”.
Condenado a dois anos de prisão e trabalhos forçados, a sentença começou a ser cumprida em 25 de maio. E vale lembrar, ainda, que em meio a tudo isto, durante um leilão realizado para financiar os custos do processo, sua casa foi invadida e vandalizada e todos seus bens foram saqueados.
Mas a Terra nunca foi plana e o mundo dá suas voltas impulsionado pelas lutas, a tentativa de silenciar Wilde, apesar de seu calvário, acabou surtindo, no decorrer das décadas posteriores, o efeito oposto e, hoje, a frase mais citada do tribunal e que se tornou uma referência para as LGBTIs é o seu discurso, uma bela e poética defesa do direito ao amor LGBTI (jogando, ainda, holofotes sobre vários “dos nossos” que a História, desde sempre e até hoje, quer invisibilizar).
Evidentemente, sua tática de defesa era simplesmente negar que tivesse tido qualquer contato com outro homem. Contudo, quando questionado pelo promotor sobre o que era “o amor que não ousa dizer seu nome”, mencionado em uma de suas cartas a Bosie, transformada, agora, em “evidência”, Wilde disparou:
“‘O amor que não ousa dizer seu nome’, neste século, é uma grande afeição de um homem mais velho por outro mais novo, como havia entre Davi e Jônatas, tal como Platão fez a verdadeira base de sua filosofia, tal como alguém encontra nos sonetos de Michelangelo e de Shakespeare. É aquela profunda afeição espiritual que é tão pura quanto é perfeita. Ela conduz e preenche as grandes obras de arte como as de Shakespeare e Michelangelo e essas duas minhas cartas. É neste século incompreendido, tão incompreendido que pode ser descrito como ‘o amor que não ousa dizer seu nome’, e, por causa dele, fui colocado onde estou agora. É bonita, é fina, é a mais nobre forma de afeição. Não há nada inatural nisso. É intelectual e existe repetidamente entre um homem mais velho e um mais novo, quando o mais velho tem intelecto, e o mais novo possui toda a alegria, esperança e glamour de vida diante de si. É assim que deve ser, mas o mundo não entende. O mundo o ridiculariza e às vezes coloca alguém no pelourinho por causa dele”. (…)
Aplaudido de forma entusiasmada pelas galerias (geralmente reservadas para o “povo”), o discurso literalmente entrou para História, mas não foi capaz de impedir sua condenação. E, quando foi solto, dois anos depois, em maio de 1897, sua saúde e status estavam destruídos, Constance havia se divorciado e partido para Itália, levando os filhos, que tiveram seus nomes mudados e nunca mais viram o Wilde.
A poesia e a criatividade que brotam do sofrimento
Sem nenhum centavo, contou somente com o apoio de Robbie, que o ajudou no processo de exílio para Paris, onde, para se manter incógnito, adotou o nome de Sebastian Melmoth. Lá, numa atitude que muitos de seus contemporâneos e biógrafos consideraram um ato de pura autodestruição, ele voltou a se encontrar, por três meses, com Bosie.
Mas, sendo Oscar Wilde, foi também na prisão que ele escreveu uma de suas obras mais lindas: “De Profundis” (1897), talvez o maior acerto de contas público que alguém já tenha feito ao se envolver numa relação tóxica ou abusiva. O texto foi concebido como uma longa carta a Bosie, que Wilde descreveu, detalhadamente, como uma figura mimada, desprezível, mesquinha e oportunista, que, ainda, contribuiu para destruí-lo, “tanto do ponto de vista intelectual quanto ético”, ao usá-lo para se inserir nos círculos intelectuais e, ainda, acertar as contas com o pai.
Vale lembrar que Bosie não só abandonou Wilde como ainda teve posturas pra lá de deploráveis enquanto ele estava preso, chegando ao absurdo de, por puro ciúme, colocar a vida de Robbie Ross em risco ao denunciá-lo pelos mesmos crimes pelos quais o escritor estava preso.
Mergulhado no sofrimento, na vergonha e no arrependimento (Wilde se refere a sua estupidez na forma como lidou com o jovem dezenas de vezes), o texto, no entanto, se torna terrivelmente mais melancólico ao deixar evidente que, apesar de tudo, Wilde iria perdoar Bosie, como, de fato, ele fez. Ou tentou, antes de levar uma derradeira rasteira, já no exílio.
De qualquer forma, para além da beleza da escrita, “De profundis” também interessa por aquilo que ele revela sobre o próprio Wilde, que faz uma profunda e ultra sincera revisão de sua própria vida, algo decorrente de algo que ele constata no decorrer do texto: “Por detrás da alegria e do riso, pode haver uma natureza vulgar, dura e insensível. Mas, por detrás do sofrimento, há sempre sofrimento. Ao contrário do prazer, a dor não tem máscara.”
Seu último escrito, “A Balada do Cárcere de Reading” (1898), é ainda mais belo e significativo. Escrito na forma de um longo poema e emblematicamente assinado C.3.3. (Bloco C, 3º andar, cela 3), o texto mescla sua experiência na prisão com o impacto causado pela execução de um prisioneiro, fazendo uma profunda reflexão sobre a vida prisional, a repressão, a liberdade e a própria vida.
Optando por um estilo poético, a balada, apreciado pelas camadas populares e operárias, Wilde deixava claro a quem o poema se destinava, fazendo dela um texto que André Gide (1869-1951), outra figura fundamental na cultura e história LGBTI (é autor, por exemplo, dos ensaios sobre homossexualidade publicados em “Corydon”, de 1924), sintetizou de forma muito apropriada: “A Balada é uma lamentação humilde e rebelde, ao mesmo tempo, e de uma cadência admirável”.
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