Internacional

Os internacionalistas na questão do Tratado de Itaipu

Daniel Sugasti

16 de junho de 2023
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“O povo que oprime a outro não pode ser livre”

Karl Marx

No último mês de março, o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), se referiu ao país como “irmão maior dos países da América do Sul” [1]. O discurso foi pronunciado no ato de posse do ex-deputado federal Enio Verri (PT) como diretor-geral brasileiro da usina hidrelétrica Itaipu Binacional, na presença do presidente paraguaio Mario Abdo Benítez.

O recurso retórico, certamente, pretende encobrir o histórico papel expansionista e opressor do Brasil na região, por meio de mecanismos nada fraternais, consolidado no período imperial.

O Brasil estende sua dominação sobre o Paraguai e outros países sul-americanos. É fato. Na condição de burguesia regional mais forte, em termos econômicos, políticos e militares, o Brasil penetra no Paraguai por meio do comércio desigual[2]; da proliferação de empresas que produzem com nulos ou baixíssimos custos tributários, de energia elétrica e mão de obra, amparando-se no regime de maquilas garantido pelos governos paraguaios[3]; da expansão desenfreada do agronegócio, controlado por colonos de origem brasileira (os chamados “brasiguaios”), de tal modo que, atualmente, estima-se que 14% dos títulos de terras no Paraguai pertencem a proprietários brasileiros[4], um setor poderoso que expulsa violentamente os pequenos camponeses de suas terras e comete uma série de crimes ambientais. Em departamentos paraguaios como Alto Paraná ou Canindeyú[5], fronteiriços com os estados de Mato Grosso do Sul e Paraná, a porção do território nas mãos destes empresários brasileiros é escandalosa: 55% e 60%, respectivamente.

Contudo, podemos afirmar que o principal instrumento da dominação brasileira sobre o Paraguai – que, antecipamos, nenhum dos dois governos pretende mudar qualitativamente – é o Tratado de Itaipu, objeto deste artigo.

O cenário em 2023

O Tratado de Itaipu, assinado em 1973 pelos generais ditadores Emílio Garrastazu Médici e Alfredo Stroessner, completou meio século no passado dia 26 de abril.

Mais que uma efeméride, a data marca a iminente renegociação do Anexo C, que estabelece as “bases financeiras e de prestação de serviços de eletricidade”. Trata-se do dispositivo legal que, desde 1984, garante à burguesia brasileira a parte do leão desse acordo bilateral[6].

A renegociação caberá aos governos do Brasil e do Paraguai, por meio de suas chancelarias. De um lado, atuará o governo Lula-Alckmin, apoiado acriticamente pela maioria da esquerda brasileira e latino-americana. De outro, Santiago Peña, político do tradicional e conservador Partido Colorado, que assumirá o posto de novo presidente paraguaio em 15 de agosto.

Em primeiro lugar, é muito importante definir a essência da questão e os principais problemas históricos e sociopolíticos colocados por este assunto que, na aparência, se apresenta como meramente técnico e diplomático.

A partir daí, nos interessa discutir qual deve ser a atitude da esquerda brasileira e latino-americana, principalmente daquela que se apresenta como socialista e internacionalista.

Destacamos este último atributo, que é um princípio para os marxistas, posto que uma concepção nacionalista, tanto no Brasil como no Paraguai, oferece um caminho sem saída. O nacionalismo é uma ideologia reacionária, um engano para as classes não proprietárias, dado que esse enfoque facilita que as burguesias locais apresentem seus interesses particulares como se fossem os da sociedade, da “nação”. Por isso, o marxismo não é nacionalista. A essa ideologia burguesa opõe a concepção da centralidade da perspectiva da luta de classes e, nesse sentido, a defesa dos interesses das classes exploradas contra as burguesias nacionais ou estrangeiras.

O fato de o marxismo não ser uma corrente nacionalista não significa, contudo, que não reconheça e defenda o direito democrático à autodeterminação das nações oprimidas.

Nesse contexto, o ponto de partida consiste em compreender que o caso de Itaipu não é um problema exclusivo do Paraguai, afastado da realidade e dos interesses da classe trabalhadora brasileira. A pauta da renegociação, ou até mesmo da anulação do Tratado de Itaipu, merece toda a atenção por parte da classe trabalhadora e das esquerdas no Brasil, que devem assumir a defesa inequívoca do Paraguai, a nação oprimida, subjugada e explorada pela mesma classe dominante que controla o poder no Brasil.

Na população em geral e, por conseguinte, nas esquerdas, existe um desconhecimento quase completo não apenas sobre o caso de Itaipu, mas, principalmente, sobre a relação histórica entre o Brasil e o Paraguai. Essa realidade é lamentável. Ela pode ser explicada pela política de discriminação, xenófoba e racista, que a classe dominante brasileira impôs contra tudo aquilo que possa ser associado ao Paraguai. É hora de romper com o ciclo de reprodução dessas ideologias reacionárias, que nos dividem como classe trabalhadora.

Para isso, é preciso conhecer, aprofundar e debater sobre o caráter dessa relação desigual e como ela foi construída.

Uma relação histórica de opressão nacional

Para estabelecer a natureza das relações entre o Brasil e o Paraguai, é determinante compreender que, há 153 anos, o segundo país foi destruído na Guerra contra o Paraguai (1864-1870)[7].

Em 1865, um Tratado secreto estabeleceu a Tríplice Aliança contra o Paraguai, um acordo político-militar entre o então Império do Brasil, governado pelo Imperador Pedro II; a Argentina, recentemente unificada a sangue e fogo, e capitaneada pelo general Bartolomeu Mitre; e o Uruguai, Estado que aderiu à aliança após a vitória do caudilho Venâncio Flores numa guerra civil (1863-1865), na qual recebeu apoio político e militar do Brasil e da Argentina[8].

O Tratado definia de antemão não apenas a repartição do território paraguaio e da pilhagem entre os aliados, mas a obrigação de levar a guerra às últimas consequências, isto é, não aceitar nenhuma negociação de paz, separadamente, com o país invadido. Estabeleceu, ademais, a imposição de uma dívida impagável ao Paraguai, em conceito de “reparação e indenização” aos Estados que quase o apagaram do mapa.

Esse documento, por si mesmo, prova as intenções conquistadoras dos Aliados, na maior guerra internacional da história sul-americana.

Após mais de cinco anos de guerra, entre 60 e 69% da população total do Paraguai havia desaparecido[9]. Uma hecatombe demográfica atroz. É muito difícil encontrar outro exemplo de tamanha mortandade, em termos percentuais, na história moderna. Dos sobreviventes paraguaios, dois terços eram crianças e mulheres[10].

Além disso, cerca de 40% do território reivindicado pelo Paraguai foi anexado pelos vencedores. A economia ficou completamente arruinada; a agricultura, a pecuária, e todos os avanços técnicos e modernizadores introduzidos no país desde 1850 foram desmantelados. Em nome da civilização e modernização liberais, foi proibido o uso da língua guarani. A data nacional foi mudada para o 25 de maio, efeméride relacionada à independência argentina. Enormes extensões de terras públicas foram leiloadas a empresas estrangeiras. O Paraguai, até então sem endividamento externo, contratou seus primeiros empréstimos com a banca inglesa em 1871 e 1872.

É cínico apresentar esse quadro de morte e destruição como fato progressivo ou civilizatório, como fez a propaganda de guerra da Tríplice Aliança e, até hoje, certa literatura chauvinista no Brasil e na Argentina reproduz mais ou menos abertamente.

A realidade é que, na atualidade, o Paraguai é um dos países mais pobres e desiguais do continente. Uma nação duplamente oprimida e explorada, tanto pelos imperialismos hegemônicos a nível mundial como, também, pelas burguesias brasileira e argentina, as mais fortes do Cone Sul.

Os sucessivos governos brasileiros que, como diria Marx, não passam de “um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”, atuam no Paraguai – e noutros países menores e mais pobres, como a Bolívia – como uma submetrópole ou, se preferir, como uma semicolônia privilegiada. Isso significa que o Estado burguês brasileiro trata esses países como se pertencessem à sua “área de influência”, expandindo os negócios de suas empresas e, principalmente, do capital e interesses imperialistas. Em suma, a burguesia brasileira explora e oprime não apenas a sua própria classe trabalhadora, mas as de outras nações mais débeis, em benefício próprio ou do imperialismo.

Os antecedentes do Tratado de Itaipu

Desde a década de 1950, o Brasil estudava o potencial hidrelétrico do rio Paraná, especialmente na região dos Saltos del Guairá, ou Salto das Sete Quedas[11], com a intenção de viabilizar uma política de desenvolvimento industrial, ainda que limitada e subordinada ao capital imperialista.

O problema residia em que essa região se encontrava em litígio com o Paraguai desde o final da Guerra da Tríplice Aliança.

Em 1954 ascendeu ao poder, no Paraguai, uma férrea ditadura militar liderada pelo general Alfredo Stroessner, uma figura completamente servil à política dos EUA e de seu gendarme regional, o Brasil.

Em janeiro de 1964, os dois governos assinaram um acordo para conformar uma comissão mista que estudasse o aproveitamento do potencial hidrelétrico do rio Paraná. Dois meses depois, como é sabido, um golpe militar, com apoio de Washington, derrubou João Goulart e impôs um regime ditatorial no Brasil.

No contexto da disputa de limites com o Paraguai, em junho de 1965, o ditador Castelo Branco ordenou posicionar tropas na fronteira e invadiu a localidade chamada Puerto Renato, em território paraguaio. O regime brasileiro alegou como motivação o combate ao contrabando e à guerrilha. Em outubro, a comissão paraguaia de limites se deslocou até a área litigiosa, mas foi detida por militares brasileiros. Assunção ficou em silêncio. Não houve nenhuma reação por parte da ditadura de Stroessner diante desses atentados à soberania do Paraguai.

Em 22 de junho de 1966, após mediação de Dean Rusk, Secretário de Estado dos EUA, os chanceleres das duas ditaduras assinaram a Ata do Iguaçu. De acordo com esse documento, os dois governos concordavam em construir uma usina hidrelétrica na região litigiosa e, assim, aproveitar seu potencial energético.

A solução para a disputa de fronteiras consistiria no alagamento do Salto das Sete Quedas, que seria submerso com a formação do atual lago de Itaipu, fato concretizado em 1982. O desparecimento das Sete Quedas, uma maravilha natural, foi fortemente questionado por diversas manifestações locais e de ambientalistas. A área, modificada artificialmente, seria declarada “pertencente em condomínio aos dois países”. As tropas brasileiras se retiraram apenas quando o território em disputa foi submerso.

Convém recordar uma anedota sombria desse episódio. O chanceler brasileiro, general Juraci Magalhães, disse ao colega paraguaio Raúl Sapena Pastor: “Meu querido amigo, como sabe, um tratado pode ser modificado em virtude de outro tratado ou pelo resultado de uma guerra. O Brasil não está disposto a aceitar um novo tratado, o que resta saber é se o Paraguai está disposto a promover outra guerra”[12].

Já em 1966 ficou nítido quem ficaria com a parte privilegiada quando um tratado definitivo fosse celebrado.

Portanto, o que hoje é a usina hidrelétrica de Itaipu nasceu de uma invasão militar brasileira e de um dos maiores crimes ambientais já cometidos na região, além, evidentemente, de uma renúncia territorial por parte da ditadura de Stroessner.

Sete anos depois, o artigo 18 do Tratado de Itaipu estabeleceu, entre outras, a possibilidade de intervenção militar pelos Estados signatários[13].

Seria risível, se considerarmos a enorme assimetria entre o Brasil e o Paraguai em todos os aspectos que, em alguma circunstância, uma cláusula dessa natureza poderia favorecer aos paraguaios. Ao contrário, em mais de uma ocasião, o Brasil realizou exercícios militares simulando a tomada da hidrelétrica, sendo a mais conhecida delas a de 2009.

O tratado de 1973

O acordo de 1966 definiu que a energia produzida pela futura usina hidrelétrica seria dividida “em partes iguais” entre os dois países. Caso um deles não pudesse consumir a totalidade da sua metade, deveria oferecê-la “preferencialmente” e a “justo preço” ao seu parceiro[14]. Não é necessário dizer que, de antemão, sabia-se que essa situação caberia ao Paraguai.

O Tratado de Itaipu, no entanto, anulou essas declarações e impôs o chamado “direito de aquisição”, isto é, a transferência compulsória da energia não utilizada por um dos países para a sua contraparte, não a um “justo preço” ou de mercado, mas a um preço prefixado pela própria Itaipu. Deste modo, o “direito de preferência” se transformou em cessão obrigatória, em troca de uma “compensação”, cujo cálculo nunca teve relação com o preço de mercado.

A questão é que entre 1984 – ano em que Itaipu entrou em operação – e 2022, o Brasil ficou com 91% do total da energia produzida pela empresa e o Paraguai apenas com 9%[15]. Este último dado, por sua vez, representa 18% da metade que corresponde ao Paraguai. Portanto, em 39 anos, o Paraguai cedeu – não vendeu – 82% da energia que, pelo Tratado de 1973, lhe pertence[16]. Essa cessão de direitos se efetua por um valor muito abaixo daquele praticado no mercado.

Em outras palavras, o Paraguai está impedido de exportar sua própria energia para terceiros países – como Argentina, Uruguai ou Chile, que manifestaram interesse em algum momento –, dado que está obrigado a cedê-la para o Brasil.

Em troca dessa cessão, o Brasil “compensa” o Paraguai com um valor fixo. Esse valor sofreu ajustes desde 1984, mas dados atualizados indicam que o preço médio pago pelo Brasil equivale a 4,14 dólares por MWh, quando os preços de importação de energia no mercado internacional oscilam entre 80 e 200 dólares por MWh[17]. No primeiro trimestre de 2023, o próprio Brasil arrecadou cerca de R$ 500 milhões em conceito de exportação de energia elétrica para Argentina e Uruguai[18].

Em 2009, um acordo entre os presidentes Lula e Fernando Lugo triplicou o valor da compensação brasileira[19]. Isto, que foi comemorado pela esquerda paraguaia como um “fato histórico”, exaltando as figuras de ambos os presidentes “progressistas”, na verdade, não passou de um ligeiro aumento das migalhas que caiam do banquete brasileiro. Lula e Lugo não resolveram nada. Segundo dados de 2022, o Paraguai recebe de seu sócio 429,3 milhões de dólares como “compensação por cessão de energia”[20]. No entanto, se pudesse dispor livremente de sua energia e negociá-la a preço de mercado, no Brasil ou outros países, poderia receber um montante anual próximo dos três bilhões de dólares. É claro que o acordo Lula-Lugo, tão alardeado pelo “progressismo”, não alterou nada substancial.

Não é necessário ser um especialista para entender a enorme injustiça cometida contra o direito do Paraguai de usar seus próprios recursos energéticos.

O Tratado de Itaipu, em termos práticos, não passa de um sofisticado esquema de pilhagem e corrupção que beneficiou, principalmente, às iniciativas industriais do sudeste brasileiro, principalmente do estado de São Paulo. Um punhado de empresários e banqueiros, brasileiros, paraguaios e de outros países, enriqueceram de maneira obscena, amparados pelas ditaduras militares. No Paraguai, os empresários ligados Stroessner que encheram os bolsos atuando como sócios menores da burguesia brasileira são conhecidos como os “barões de Itaipu”.

A dívida de Itaipu

Em 28 de fevereiro, os governos e a imprensa de ambos os países celebraram o pagamento da última parcela da dívida pela construção de Itaipu. Segundo a entidade, a totalidade do valor desembolsado foi de 64 bilhões de dólares.

Desde a década de 1970, foram assinados mais de 300 contratos de financiamento, principalmente com credores brasileiros ou de países imperialistas, a maioria deles por meio da Eletrobras, empresa privatizada pelo governo Bolsonaro em 2022.

O conhecido mecanismo do mercado financeiro, pautado pela corrupção, superfaturamento, crescimento descontrolado de juros acima de juros, fez com que o empréstimo inicial de 3,5 bilhões de dólares, contratado em 1974, crescesse até alcançar a cifra astronômica de 64 bilhões em 2023. É escandaloso, sobretudo, se considerarmos que a obra teria custado, aproximadamente, 12 bilhões de dólares[21].

Essa dívida foi paga, em boa parte, pelos consumidores de eletricidade de ambos os países, por meio das nossas contas residenciais de energia elétrica.

Contudo, a pior parte coube, mais uma vez, ao Paraguai, já que a dívida foi paga em partes iguais, apesar de que, como assinalamos, o Brasil ficou com mais de 90% da energia produzida.

É como se na fila de um supermercado houvesse uma pessoa com um carrinho cheio de produtos, e atrás houvesse outra pessoa que só comprasse uma barra de chocolate, mas, na hora de pagar, a primeira propusesse à segunda: que tal se pagarmos tudo meio e meio?

Esse fato não impede, no entanto, que os empresários e a imprensa brasileiras repitam a conhecida falácia de que “o Paraguai só colocou a água”, como forma de justificar os benefícios do seu país. Os mais extremos chegam a dizer que o Tratado, na verdade, favoreceu mais ao Paraguai.

Isso não corresponde à realidade, posto que o Paraguai arcou com os custos da dívida, inclusive com os 4,193 bilhões de dólares que a própria Controladoria Geral da República, após auditoria, considerou “espúria”.

A verdade é que a dívida gerada pela obra de Itaipu foi paga várias vezes por ambos os povos, mas proporcionalmente muito mais pelos contribuintes paraguaios, que apesar de pagar a metade dos encargos, usufruíram menos de 10% da energia produzida, gerando, na prática, um subsídio à indústria paulista e do sudeste brasileiro.

Por outra parte, convenhamos, dizer que o Paraguai “só colocou a água”, no caso de uma empresa hidrelétrica, é como dizer que, em uma exploração de ouro, um país “só colocou o ouro”.

Os trabalhadores e trabalhadoras brasileiras foram e são roubados pelos altos executivos de seu país em Itaipu e por seus governos[22], porque uma energia que o Estado compra por 4,14 dólares por MWh ou menos do Paraguai é revendida, em média, por 226 dólares por MWh para o consumo residencial no Brasil[23]!

Para dimensionar o peso que essa dívida teve nas contas de eletricidade, basta saber que o pagamento dos empréstimos representava cerca de 64% do custo da energia produzida[24].

A exploração de outra nação não traz nada positivo para o povo brasileiro. Enquanto uma minoria de grandes empresários e financistas, protegidos pelos governos de plantão, exploram um povo irmão, a tarifa média de energia elétrica no Brasil aumentou 219% acima da inflação entre 1997 e 2022. Por isso, não podemos perder de vista a profundidade desta lição: “um povo que oprime outro não pode ser livre”.

Uma saída de classe e internacionalista

A reivindicação de um acordo igualitário, sob bases democráticas, que derive de uma renegociação ou, inclusive, da anulação do atual Tratado de Itaipu constitui um problema democrático, relacionado ao direito à autodeterminação nacional do Paraguai. Diz respeito, especificamente, ao direto a dispor, soberanamente, de seus recursos energéticos, questão elementar para qualquer nação.

Nesse sentido, estamos diante de um caso nítido de opressão nacional, no qual a nação maior e mais rica, o Brasil, explora e oprime outra menor e mais pobre, o Paraguai. Essa relação de opressão, como assinalamos, não começou em 1973, mas remonta, no mínimo, ao século XIX.

Na época imperialista, de decadência histórica do capitalismo mundial, as tarefas democráticas – soberania nacional, direitos e garantias democráticas, problema da terra, entre outras –, cerceadas ou abandonadas pela burguesia, passaram às mãos do proletariado e seus aliados sociais, que poderão resolvê-las unificando demandas democráticas e anticapitalistas num único programa político, baseado na estratégia da revolução socialista em escalas nacional e internacional.

Isto significa que os problemas democráticos não são indiferentes para os marxistas, que, sem cair no nacionalismo próprio das correntes burguesas e reformistas, defendem o direito à autodeterminação das nações oprimidas.

Por isso, os marxistas encaram o problema de Itaipu como qualquer outro problema nacional: assumindo uma perspectiva de classe, internacionalista e indissociável à estratégia da revolução socialista. Nesse contexto, combatem qualquer postura nacionalista ou xenófoba, que cause divisão entre a classe trabalhadora de ambos os países. O marxismo enfrenta tanto o nacionalismo da nação opressora como o nacionalismo da nação oprimida, mas sem por isso deixar de defender seus justos direitos nacionais.

O ano de 2023 é fundamental para a classe trabalhadora do Paraguai e do Brasil. Após meio século, o Tratado de Itaipu será renegociado, abrindo um cenário fértil de debates e mobilização de diversos setores sociais e políticos.

No Paraguai, a classe trabalhadora não deve confiar no futuro governo de Santiago Peña, nos grêmios empresariais nem na diplomacia do seu país. A história mostrou, repetidas vezes, que a classe dominante paraguaia manteve sempre uma postura de sistemática capitulação aos interesses do Brasil[25]. Estimular ilusões em uma possível confluência de interesses entre empresários “patriotas” e setores populares, na luta pela recuperação de Itaipu com vistas ao “desenvolvimento nacional”, colocado em termos gerais, é um erro fatal. Uma análise histórica de classe revela que o governo e os empresários, em todos seus matizes, não foram nem serão aliados da classe trabalhadora e do povo pobre.

Confiar em organismos internacionais, como argumentam alguns setores nacionalistas no Paraguai, que inocentemente pensam que uma reclamação no Tribunal de Haia fará com que burguesia brasileira e os bancos imperialistas retrocedam em suas intenções, é uma ilusão. Esse caminho institucional, legalista e “pacífico” é um caminho sem saída para o Paraguai.

Apenas um poderoso processo de mobilização social, que parta de uma ampla campanha de educação sobre o tema e possua organização independente, poderá forçar uma revisão do Tratado em sentido progressivo, isto é, estabelecendo um novo acordo sob a base do respeito à soberania do Paraguai.

É claro que a mobilização da classe trabalhadora paraguaia não será suficiente. É preciso, como apontamos, que a poderosa classe operária e o movimento social do Brasil se apropriem desta causa e, simultaneamente, lutem lado a lado com seus irmãos de classe paraguaios.

O povo brasileiro, como exemplificamos, é mais uma vítima desse acordo corrupto, que nas últimas cinco décadas só enriqueceu uma minoria.

Esta luta é única e indivisível, sem espaço para os nacionalismos. A única perspectiva capaz de gerar uma mudança qualitativa, radical, é a concepção internacionalista, na esfera da análise e das ações.

A classe trabalhadora paraguaia deve compreender que seus principais inimigos sãos as classes dominantes e os governos do Paraguai e do Brasil, e não “os brasileiros” em geral. O povo brasileiro sofre as mesmas penúrias que o povo paraguaio.

Ao mesmo tempo, a classe trabalhadora brasileira deve entender que Itaipu não é um problema apenas “paraguaio”, mas uma questão que a afeta diretamente, por meio da injusta cobrança da energia elétrica. Além disso, que é um Tratado de usurpação de um povo irmão e mais pobre, historicamente ultrajado.

Lula disse que estava seguro de que “…vamos alcançar um acordo que terá muito em conta a realidade dos dois países e muito em conta o respeito que o Brasil tem que ter pelo seu aliado, o querido Paraguai”[26]. No cenário atual, sem depositar nenhuma confiança no governo Lula-Alckmin, é necessário exigir, através de uma campanha forte de mobilizações, uma renegociação que contemple a soberania energética do Paraguai, ou seja, a livre disposição da parte que lhe cabe. Ao mesmo tempo, denunciar cada fato, cada declaração, cada avanço das negociações em sentido oposto. A esquerda brasileira está diante de uma prova de fogo, dado que a renegociação será conduzida pelo presidente Lula, que, recentemente, nomeou como conselheiros de Itaipu a quatro de seus ministros: Alexandre Silveira de Oliveira, ministro de Minas e Energia; Fernando Haddad, ministro da Fazenda; Esther Dweck, ministra da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos; e Rui Costa dos Santos, ministro da Casa Civil[27]. Eles receberão cerca de R$ 69.000 por mês, somados seus salários de ministros de Estado e de conselheiros da binacional[28]. O diretor brasileiro da Itaipu, nomeado por Lula, também é do PT.

Uma atitude independente e ao mesmo tempo de oposição pela esquerda diante do governo Lula-Alckmin é condição necessária para que a esquerda brasileira possa, na prática, assumir uma postura genuinamente internacionalista, cujo ponto de partida, nas nações opressoras, é exatamente o combate à própria burguesia e ao próprio governo.


[1] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/03/novo-tratado-de-itaipu-buscara-desenvolver-brasil-e-paraguai-diz-lula.shtml

[2] O Brasil é o principal parceiro comercial do Paraguai, representando, em 2022, 28,5% do total de transações. Na sequência, figuram China (18,3%), Argentina (12,8%), Estados Unidos (6,9%) e Chile (4,8%).

[3] Aproximadamente 72% das empresas maquiladoras no Paraguai são brasileiras. Ver: https://www.lanacion.com.py/negocios/2023/03/06/restablecimiento-de-condiciones-favorables-con-brasil-impulsaron-exportaciones-de-maquila/https://www.idesf.org.br/2022/05/12/exportacoes-registradas-pelas-industrias-maquiladoras-tem-recorde-historico-no-mes-de-abril/

[4] https://deolhonosruralistas.com.br/deolhonoparaguai/2017/11/06/proprietarios-brasileiros-tem-14-das-terras-paraguaias/

[5] Os departamentos, na divisão administrativa do Paraguai, são equivalentes aos estados brasileiros.

[6] As operações da Itaipu começaram em 1984. Desde então, a empresa produziu mais de 2,9 milhões de GWh. Em termos da capacidade instalada, é a terceira usina hidrelétrica do mundo.

[7] SECCO, Lincoln. A guerra contra o Paraguai em debate. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/a-guerra-contra-o-paraguai-em-debate/. Acesso em 04/06/2023. NÚÑEZ, Ronald. A guerra contra o Paraguai em debate. São Paulo, Sundermann, 2021, 472 p.

[8] O Império do Brasil invadiu o Uruguai em outubro de 1864.

[9] WHIGHAM, Thomas; POTTHAST, Barbara. The Paraguayan Rosetta Stone: New Insights into the Demographics of the Paraguayan War, 1864-1870. Latin American Research Review, v. 34, n. 1, pp. 174-186, 1999.

[10] Charla debate internacional sobre la Guerra de la Triple Alianza. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jr5ND-D1a1k&t=4348s . Acesso em 04/06/2023.

[11] O Salto de Sete Quedas, também chamado Sete Quedas do Rio Paraná, foram as maiores cachoeiras do mundo. Com um volume estimado de 49.000 m³/s, dobravam o volume das cataratas do Niágara e eram treze vezes mais caudalosas que as cataratas de Vitória, em Zâmbia e Zimbábue.

[12] MAGALHÃES, Juraci. Minhas memórias provisórias. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1982, pp. 201-203. O general Juraci também era conhecido por outra frase: “o que é bom para os Estados Unidos e bom para o Brasil”.

[13] TRATADO DE ITAIPU. Artigo XVIII: “As Altas Partes Contratantes, através de protocolos adicionais ou de atos unilaterais, adotarão todas as medidas necessárias ao cumprimento do presente Tratado…”. Disponível em: https://www.itaipu.gov.br/sites/default/files/u13/tratadoitaipu.pdf . Acesso em 04/06/2023.

[14] Ata do Iguaçu. Disponível em: https://www.itaipu.gov.br/sites/default/files/af_df/ataiguacu.pdf. Acesso em 05/06/2023.

[15] A energia gerada pela usina corresponde a cerca de 8,6% da energia utilizada no Brasil, enquanto tal proporção atinge 86,3% do consumo paraguaio.

[16] https://www.abc.com.py/edicion-impresa/suplementos/economico/2023/02/19/en-38-anos-de-produccion-de-itaipu-el-paraguay-recibio-us-414mwh/

[17] https://www.abc.com.py/edicion-impresa/suplementos/economico/2023/02/19/en-38-anos-de-produccion-de-itaipu-el-paraguay-recibio-us-414mwh/

[18] https://www.gov.br/mme/pt-br/assuntos/noticias/exportacao-de-energia-eletrica-para-paises-vizinhos-permite-reducao-de-custos-ao-consumidor-brasileiro

[19] https://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u600336.shtml

[20] https://www.itaipu.gov.br/es/sala-de-prensa/noticia/estado-paraguayo-recibio-usd-4293-millones-de-itaipu-por-anexo-c-en-el-2022

[21] https://www.abc.com.py/economia/2023/04/10/la-central-hidroeletrica-binacional-itaipu-costo-tres-veces-mas/

[22] A Itaipu é administrada por um Conselho de 12 pessoas, nomeadas pelos governos brasileiro e paraguaio.

[23] https://megawhat.energy/news/147522/energia-em-sp-custa-25-menos-que-em-belem-compare-os-valores-edicao-da-manha

[24] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/04/eleicoes-no-paraguai-podem-definir-futuro-do-tratado-de-itaipu.shtml

[25] Em 2014, Horacio Cartes, ex-presidente e padrinho político de Peña, disse aos empresários brasileiros em Assunção: “Usem e abusem do Paraguai, porque, para mim, é um momento inacreditável de oportunidades”.

[26] https://www.folhape.com.br/politica/lula-afirma-que-vai-respeitar-os-direitos-do-paraguai-na-hidreletrica/262243/

[27] https://www.itaipu.gov.br/institucional/diretoria-e-conselho

[28] O salário, recentemente aumentado, dos ministros é de R$ 41.650,92, e o de conselheiro de Itaipu ronda os R$ 27.000.