Os governos de Frente Popular na História
Leia o prefácio da nova edição de "Os governos de Frente Popular na História", uma obra que ganha ainda mais atualidade num momento em que governos de colaboração de classes ressurgem em diversos países da América Latina, num contexto de polarização com a extrema direita
Acaba de ser publicada pela Editora Sundermann a segunda edição do livro “Os governos de Frente Popular na História”.
A primeira edição foi publicada no Brasil em 2003, no primeiro mandato de Lula na Presidência. Ela reuniu dois importantes trabalhos teórico-políticos escritos por Nahuel Moreno, trotskista argentino, dirigente e fundador da LIT-QI, falecido em 1987: “O governo Miterrand, suas perspectivas e nossa política” e “A traição da OCI(U)”. Eles foram escritos em 1981 e 1982, respectivamente, como parte de uma grande polêmica em torno da política da Organização Comunista Internacionalista – Unificada, a OCI(U), perante o governo de François Miterrand na França, eleito em 1980, então considerado de frente popular.
Esta segunda edição agrega um novo texto, intitulado “A frente popular”. Ele corresponde ao capítulo 2 do livro Escola de Quadros da Venezuela, publicado pela editora Crux, da Argentina, em 1993, a partir da transcrição dessa escola de quadros realizada por Moreno em 1982, com a presença do então senador Ricardo Napurí. Acreditamos que a incorporação deste texto contribui para uma leitura mais dialética dos outros dois trabalhos.
Este texto expressa uma discussão bastante livre e aberta, um livre pensar por assim dizer, em um curso de quadros, que enriquece a leitura do conjunto dos textos. Ajuda também a pensar melhor as mudanças e o desenvolvimento de tipos específicos de governos de colaboração de classes no decorrer da história, os quais, neste livro, foram todos chamados por Moreno, de forma genérica, de governos de frente popular, quando, ao nosso ver, seria mais preciso denominar de frente popular um tipo específico de governo de colaboração de classes.
Apesar disso, possivelmente os textos que publicamos neste livro constituem a sistematização marxista mais abrangente sobre a história e a natureza dos governos de colaboração de classes ou de “frente popular”, como foram chamados nos anos 1930, quando o stalinismo impôs como teoria geral e norma os “campos burgueses progressivos” e a constituição de governos de aliança entre partidos operários e burgueses.
Do governo provisório russo, passando pelos governos da França e da Espanha na década de 1930; pelos governos da social-democracia nos países nórdicos, na Alemanha e na Inglaterra; por governos dessa natureza em países semicoloniais, como o de Allende no Chile; ver-se-á que tais governos têm invariavelmente uma natureza burguesa e contrarrevolucionaria, ainda que respondam à diferentes circunstâncias e correlação de forças.
Moreno identifica que nem todos os governos de conciliação com a burguesia são prévios ou diretamente produtos de uma situação pré-revolucionária ou revolucionária. Que todo governo desse tipo é burguês e não é, em si, incompatível com o regime ou com a institucionalidade vigente, muito menos com o sistema capitalista. E que nem todos são necessariamente instáveis e/ou o último recurso da burguesia antes do fascismo ou do bonapartismo. Porém, acabou por defini-los todos de forma genérica como governos de frente popular.
Ao afirmar serem todos de frente popular, buscou diferenciá-los de forma específica pelas circunstâncias, mais precisamente pela correlação de forças, sobretudo pela existência ou não de duplo poder. Nesse caso, de situação revolucionária com duplo poder, seriam kerenkistas. Um governo de conciliação sumamente instável pela existência do poder dual, na medida em que o duplo poder (e não o governo) é incompatível com a burguesia, com o regime e o sistema capitalista.
No primeiro texto deste livro, “O governo Mitterrand, suas perspectivas e nossa política”, Moreno aponta que a forma mais clássica de frente popular seria o governo composto por partidos operários (social-democratas ou stalinistas) e partidos burgueses, em maioria ou minoria, tendo um setor burguês importante presente no mesmo ou, às vezes, o que Trotsky chamou de “a sombra da burguesia”, como no caso da Espanha dos anos 1930.
Contudo, seriam também governos de frente popular em forma não clássica os governos de Lázaro Cárdenas, no México da década de 1940, em que Trotsky apontava haver uma frente popular em forma de partido, ou de Chiang Kai-shek na China. Ou, ainda, os governos de Roosevelt nos Estados Unidos, com seu New Deal, e o do Compromisso Histórico do Partido Comunista italiano com a Democracia Cristã. Ainda que não se enquadrassem numa definição mais estrita de frente popular por não incorporarem partidos operários no governo ou representantes de organizações operárias na conformação ministerial, subsistiam a partir da colaboração de classes, por meio de pactos frentepopulistas.
Na Escola de Quadros da Venezuela, Moreno retoma essa discussão, apontando que, sejam de crise, sejam estáveis, pode haver governos:
— de frente popular no qual estão partidos operários mais partidos burgueses;
— operário-liberais, como o do Partido Trabalhista Australiano, ou o do Partido Social-democrata Alemão, que havia já abandonado o programa de Erfurt, adotando um objetivo liberal;
— social-democratas burgueses (ou capitalistas), como os dos países nórdicos;
— diretamente burgueses, nos quais não intervêm ou não participam os partidos operários.
Concordamos com Moreno que nenhum governo de colaboração de classes é incompatível com a burguesia ou com o capitalismo, nem os de frente popular. E também que nem todo governo de colaboração de classes formado por uma aliança das organizações operárias contrarrevolucionárias e um setor da burguesia é necessariamente instável, expressão de situação pré-revolucionária, revolucionária, de revolução em curso ou “último recurso” antes do fascismo. Pode haver diferentes tipos, formas e modalidades de governos de conciliação em diferentes circunstâncias.
Os partidos reformistas e os governos conformados por eles em alianças explícitas ou implícitas com a burguesia compõem, ou são parte, em geral, da ordem burguesa vigente (em especial quando o regime é democrático burguês) e também da correlação de forças entre as classes. Isto é, são condicionados pelas circunstâncias. Porém intervêm, incidem e interferem nas circunstâncias, na correlação de forças e nos regimes. Não são meros efeitos ou resultado de determinada correlação de forças, como certa argumentação determinista procura livrar a cara de partidos e governos dessa natureza. Na maioria das vezes são responsáveis ou co-responsáveis pela correlação de forças.
Ou seja, pode não existir sovietes e, no entanto, uma circunstância que a sua existência seja uma possibilidade e que um determinado tipo de partido reformista possa, mesmo contra sua vontade, contribuir tanto para o surgimento de sovietes quanto para formar um governo típico de frente popular, ou seja, um governo burguês anormal que a classe trabalhadora enxerga como seu governo e a burguesia vê como inimigo.
Por exemplo, no Brasil de 1989, se Lula-Bisol (uma chapa de colaboração classes) tivesse ganhado a eleição de Collor, pelas circunstâncias nacionais e internacionais, pelo tipo de direção reformista que conformava o PT na época, e pela relação de beligerância que a burguesia mantinha com ele, apesar de não haver sovietes, conformaria um governo de frente popular, o qual inclusive poderia, mesmo sem querer, estimular o surgimento de duplo poder, que era uma possibilidade pela correlação de forças.
Seria um governo anormal, que a classe trabalhadora veria como seu e a burguesia veria como inimigo, ou no máximo, o toleraria. Muito diferente, por exemplo, do Lula de 2002, que nem a burguesia nem o imperialismo temiam mais. Era preventivo, porque as circunstâncias, não sendo as de 1989, evoluíam, ainda que mais atrás, em direção ao restante da América Latina, que então se convulsionava contra o neoliberalismo. Mas as bases do PT não eram as de 1989 e, em especial, as relações do PT com a burguesia e da burguesia com o PT já eram inteiramente outras.
Por tudo isso, pensamos que definir ou mesmo nomear todos os governos de colaboração de classes como de frente popular, pode ou tende a gerar confusão. Seja em nível da análise da realidade, seja em nível da definição de certas políticas. Então, pensamos que o governo de frente popular é um tipo específico de governo de colaboração de classes e que os governos de colaboração de classes, além de poderem ocorrer em diferentes circunstâncias ou correlação de forças entre as classes, vêm constituindo, através da história, como diz o próprio Moreno, vários tipos ou formas.
Vêm, a partir dos anos 1950, inclusive se “normalizando”, no sentido de serem governos da ordem, participando como um componente normal ou normalizador da alternância de poder. Isso ocorre na medida em que há mudanças qualitativas nos partidos operários contrarrevolucionários, em que vários deles se transformaram em partidos burgueses, mesmo que por vezes “partidos burgueses diferentes” (certa “frente popular em forma de partido às avessas”). Essas mudanças qualitativas, que na social-democracia ocorrem desde pelo menos o final dos anos 1950, acabaram generalizando-se e sendo acentuadas após a restauração capitalista nos ex-estados operários degenerados, abrangendo também os ex-partidos stalinistas, mas não só.
Isso não quer dizer que, em circunstâncias radicalizadas, governos de colaboração de classes não possam adquirir traços ou até se converterem em governos burgueses anormais de frente popular. Mas, pela transformação desses partidos reformistas ou contrarrevolucionários nestas décadas, isso é mais difícil, porque, em sua maioria, transformaram-se em partidos eleitorais colados de forma orgânica ao Estado burguês, com organização de base proletária muito inferior ao que tinham antes ou mesmo praticamente esvaziados de militância de base.
Não se pode considerar os partidos social-democratas da Alemanha, Espanha ou França como partidos operários reformistas hoje em dia. Aliás, Moreno antecipa nestes textos tal compreensão, quando compara, por exemplo, o PSOE da revolução espanhola com o PSOE recriado por Felipe Gonzáles. Nem os partidos comunistas chinês e cubano são partidos comunistas ou operários, ainda que contrarrevolucionários. Seus governos não são vistos pela burguesia e pelo imperialismo como inimigos de classe ou mesmo adversários a quem esta deva temer ou apenas “tolerar” por medo de perder o poder.
O caso do terceiro governo Lula (Lula 3) – quinto do PT (PT 5) – no Brasil é um exemplo. Não é, do nosso ponto de vista, um governo de frente popular ou burguês anormal, o qual a burguesia e o imperialismo não apoiem ou vejam com desconfiança. É um governo burguês de colaboração de classes com pretensão de unidade nacional. Em certo sentido, é ainda mais amplamente burguês, pró-imperialista e social-liberal que os governos anteriores do PT.
Ao mesmo tempo, assume em circunstâncias diferentes de 2003. Tanto do ponto de vista das condições internacionais e nacionais quanto da decadência do país, esgotamento da Nova República, crise da institucionalidade e existência de uma oposição de extrema direita, parlamentar e extraparlamentar. Contraditoriamente, apesar da larga experiência com seus inúmeros governos, ele inicialmente gera, a partir de um ponto de vista, ilusões e expectativas na vanguarda. Isso porque derrotou no terreno eleitoral um governo reacionário, semibonapartista, que ameaçava mudar o regime caso reeleito. E porque a extrema direita continua organizada.
Ele busca assegurar, de modo preventivo, o controle e a passividade do movimento de massas e reestabilizar o regime democrático burguês. Isso expressa e, ao mesmo tempo, exerce uma pressão campista maior do que a que existiu nos governos anteriores do PT.
Sobre um processo mais profundo de desequilíbrio aberto em 2013, que não se fechou, assenta-se uma situação não revolucionária, de refluxo do movimento operário e popular, embora de equilíbrio instável. Uma situação que pode mudar de forma brusca a depender da luta de classes. É possível que, pelas circunstâncias internacionais e nacionais, dessa vez possa (não quer dizer que vá) ser de maior crise.
De qualquer modo, não é o “último recurso” da burguesia antes do fascismo. Nem é um governo temido pela burguesia ou anômalo perante a burguesia e o imperialismo. É perfeitamente integrado à ordem. Foi um governo estável por três mandatos seguidos, fez e faz parte normal da alternância de poder do regime da Nova República, que, sim, encontra-se em crise, mas não porque o PT o tenha desafiado ou pretenda desafiar a ordem. Pelo contrário.
Em 1989, na primeira eleição direta pós-ditadura, a candidatura do PT gerava medo na burguesia. Lula, se tivesse sido eleito em 1989, seria um governo de frente popular. Apesar de não haver então sovietes ou duplo poder no país, sua eleição expressaria uma correlação de forças favorável aos trabalhadores e objetivamente daria um enorme impulso ao movimento de massas, difícil de ser contido pela própria direção do PT, que não tinha intenção de fazer revolução e faria o possível para desmobilizar e ganhar a confiança da burguesia. Seria, porém, um governo de frente popular. Mário Amato, o então presidente da Fiesp, disse que 800 mil empresários fugiriam do país se Lula fosse eleito.
Em 2002, na primeira eleição de Lula para presidente, tudo já era diferente. Lula já tinha a confiança e o apoio da burguesia e do imperialismo.
Delfim Neto, o ministro da economia da ditadura, disse na época à revista Carta Capital de outubro de 2022:
“A sociedade brasileira vive um momento histórico. Até recentemente o Partido dos Trabalhadores tinha fortes restrições aos mercados, exatamente como o Partido Social-democrata Alemão até o manifesto de Bad Godesberg (1959) e o Partido Trabalhista inglês até a reunião de Westminster Hall (1995), quando retiraram de seus programas todos os resquícios de marxismo que os infectavam. No seu último programa, o PT fez o mesmo caminho. E na Carta ao Povo Brasileiro, de junho deste ano, o senhor Luiz Inácio Lula da Silva reafirmou os mecanismos de mercado para a administração econômica. A eleição de 2002 dá a oportunidade para que se consagre definitivamente a incorporação do Partido dos Trabalhadores ao corpo político nacional“.
O governo Lula 3 não é um governo burguês anormal para a burguesia ou de frente popular. Isso não quer dizer que não seja ou não tenha um importante componente de colaboração de classes e que parcelas expressivas da classe trabalhadora, dos setores populares e da juventude não tenham ilusões nele. Seja pela origem do PT, seja pela presença de representantes ou dirigentes de organizações da classe dentro dele, diferente dos governos puros da burguesia.
Essa precisão, porém, de colaboração de classes em lugar de frente popular, não é terminológica. Ela tem sua importância em dois sentidos ou dimensões. Uma é no terreno da análise, de não fazer uma leitura mecânica da correlação de forças, deixando de fazer uma análise concreta da realidade concreta e acabar colocando um sinal de igual entre a existência de tais governos com uma situação pré-revolucionária ou revolucionária da luta de classes. A outra é no terreno da política e do programa. Uma das propostas utilizadas perante as organizações reformistas ou pequeno-burguesas que compunham ou apoiavam tais governos era o que se entende como proposta ou exigência de conformação de um governo operário e camponês. A exigência de que tais organizações rompam com a burguesia e governem com independência de classe contra a burguesia ou até mesmo tomem o poder se for possível.
Na Rússia de 1917, Lênin e Trotsky dirigiram aos mencheviques e socialistas revolucionários (SR) várias formulações em que exigiam isso. Palavras de ordem como “todo poder aos sovietes”, nas palavras de Trotsky, tinham um duplo significado: por um lado, era uma popularização da ditadura do proletariado; por outro, era uma exigência para que a direção majoritária dos sovietes antes de outubro, mencheviques e SR, rompessem com a burguesia.
Se expressou também em “fora os ministros burgueses do governo”, ou seja: mencheviques e SR rompam com a burguesia e governem. Trotsky dizia que era altamente improvável que eles fizessem tal coisa. Mas, se fizessem, dariam um largo impulso à revolução. Se não fizessem, tal exigência serviria para desmascará-los perante operários e camponeses.
Em uma revolução em curso como a da Rússia tinha um peso central. Contudo, os revolucionários não descartavam a possibilidade de serem governo sem condições ainda de tomar o poder; porém, se fosse o caso, governariam contra a burguesia para fazer avançar a organização, a consciência e a luta da classe. Jamais para administrar o capitalismo contra o proletariado.
No que concerne a organizações como o PT de hoje, pensamos que uma proposta desse tipo não é apenas altamente improvável de ser abraçada por ele de conjunto, mas impossível. O PT hoje já é um partido de colaboração de classes e é impossível para ele governar sem a burguesia e contra a mesma, a não ser que ele rompa consigo próprio. Defender, por exemplo, que “Lula governe sem a burguesia” não seria combater ilusões, mas fomentar ilusões.
Apesar de considerarmos que o governo de frente popular é um tipo específico de governo de colaboração de classes, consideramos que este livro e os trabalhos que o compõem continuam sendo de extrema atualidade e utilidade.
Ele é um marco teórico e de princípios para construir numa definição marxista correta de governos de colaboração de classes em seus diversos tipos. E também, principalmente, as orientações e a sistematização que Moreno faz da evolução desse tipo de governo e do programa e da política que Lênin e Trotsky tiveram perante eles são fundamentais, opostas às dos reformistas, sejam social-democratas, sejam stalinistas e também dos centristas. E continuam atuais e imprescindíveis para formular um programa e uma política revolucionários hoje.
É curioso que tanto a OCI (U) quanto Moreno considerem, em 1982, o governo Mitterrand como governo de frente popular, sendo que a OCI (U) o considerava um tipo específico e Moreno o definia de forma genérica. No entanto, para a OCI(U), a definição de frente popular levava ao embelezamento e à mais completa capitulação ao governo Mitterrand.
Moreno, além de realizar uma análise do governo Mitterrand e apontar uma política revolucionária perante ele, fez um levantamento histórico e uma sistematização ampla, abrangente e de grande relevância sobre todo debate no interior do movimento marxista acerca das “frentes populares” ou governos de conciliação com a burguesia, desde que esses governos apareceram pela primeira vez na história.
Acreditamos que essa seja a principal sistematização existente sobre a natureza desses tipos de governo. O livro resgata a dimensão empírica da política de frente popular praticada pelos mencheviques na Rússia em 1917 e de sua conversão em uma teoria geral pelo stalinismo a partir do VII Congresso da Internacional Comunista, em 1935, quando o texto de Jorge Dimitrov defende a “frente antifascista” ou frente com a “burguesia progressista” como tática privilegiada.
Daí nasce a teoria dos campos burgueses progressivos, que, no contexto da coexistência pacífica com o imperialismo e da defesa do socialismo em um só país, substitui a luta de classes, a independência de classe e a luta pela revolução. Pavimentará em todo o mundo uma política de colaboração de classes, com as suas adaptações aos países coloniais e semicoloniais, onde a frente única anti-imperialista e a “revolução por etapas” justificaram todo tipo de colaboração de classes, amarrando o proletariado à uma política reformista e de apêndice da burguesia. A teoria dos campos é antimarxista, e a política campista de colaboração de classes é contrarrevolucionária.
A necessidade de algum tipo de compromisso fugaz ou de unidade de ação com algum setor da burguesia pode colocar-se em determinada circunstância, mas jamais se constituir em estratégia, “tática privilegiada” ou frente permanente. Quando se coloca como unidade de ação pontual, como se colocou para Lênin e o Partido Bolchevique perante o golpe de Kornilov, jamais implicou em frente ou apoio político ao governo Kérenski. Apenas existiu uma unidade de ação militar, mantendo completa independência política. Ou seja, o compromisso de golpear juntos, mas jamais marchar juntos.
Outra discussão importante é sobre identificar especialmente os governos de frente popular como governos burgueses e contrarrevolucionários. No caso específico do governo de frente popular – como governos burgueses anormais, os quais a classe acredita que são governos seus, e a burguesia os vê como inimigos ou com desconfiança –, deve-se estabelecer a necessidade de uma política revolucionária perante os mesmos ao, desde o primeiro momento, colocar-se na oposição de esquerda, na posição de explicar pacientemente à classe que ele não é seu governo, e que ela precisa organizar-se independente dele para derrotá-lo, afastando-se de uma política oportunista ou sectária. Isso porque o sectário tende a ver a natureza burguesa do governo, mas desconsiderar as ilusões que o proletariado tem no mesmo. E o oportunista, por sua vez, comete o erro simétrico: só enxerga as ilusões do proletariado e desconhece a natureza burguesa do governo. A maior pressão sob esse tipo de governo é a pressão oportunista.
Também há uma discussão muito importante sobre como os revolucionários devem se comportar perante concessões ou medidas “progressivas” desse tipo de governo, já que nenhuma medida está desvinculada de uma totalidade reacionária, burguesa e pró-imperialista.
Não foram poucos os grupos revolucionários que sucumbiram perante governos de colaboração de classes e, mais ainda, os de frente popular. Basta dizer que o próprio Partido Bolchevique, em 1917, antes da chegada de Lênin à Rússia e de suas Teses de Abril, estava capitulando inteiramente ao governo.
Nos anos 1930, vários grupos revolucionários e centristas de esquerda, ao contrário de Lênin e Trotsky, acabaram curvando-se diante dos “campos burgueses progressivos”, das frentes populares e de seus governos. Em geral, tornaram-se ala esquerda desses governos para “não se isolar das massas”. Advogavam que esses governos estavam “em disputa”, que a postura deveria ser apoiar o que “fosse progressivo” e “criticar o que estivesse errado”, como se o governo não fosse uma totalidade.
O mais reacionário de tais governos é o fato de que são um fator poderosíssimo de desorganização, desmobilização, retrocesso na consciência, desmoralização da classe operária e, portanto, da luta pela revolução e pelo socialismo.
O primeiro desafio é ser oposição de esquerda e enfrentar o governo de colaboração de classes e o campo burguês, imperialista e contrarrevolucionário que ele forma. Ser oposição de esquerda, de classe e socialista, sem se confundir com a extrema direita, é a tarefa dos revolucionários. É uma questão de princípio não apoiar politicamente um governo burguês, de colaboração de classes ou não.
Ao mesmo tempo, se a maior pressão que se exerce sobre os revolucionários em governos dessa natureza é a oportunista, isso não quer dizer que se deva responder a ela com sectarismo. É preciso saber como ter uma atuação revolucionária, que rejeite o oportunismo, mas também o sectarismo, como orienta Moreno.
É preciso nadar contra a corrente, ser oposição de esquerda, de classe e socialista e combater o governo. Enfrentá-lo com um programa e um sistema de palavras de ordem que enfrente, além dele, o regime e o sistema capitalista. Chamar as massas a confiar nas suas próprias forças, a não ter confiança no governo e disputar a vanguarda para defender a independência de classe, para uma política, um programa e um projeto de construção de um partido revolucionário e socialista.
Junto com a agitação política é preciso a propaganda, a explicação paciente e em profundidade da política, programa e projeto socialista concreto (que responda à realidade), polemizando também com as bases teóricas dos defensores do governo, afirmando a necessidade de um governo socialista dos trabalhadores e de outro Estado e outro regime: um Estado operário (a ditadura do proletariado), com democracia operária em vez da democracia dos ricos.
Armando-nos com os princípios, a estratégia, o programa e a política, o lance é entrar no rio, saber nadar (diferente do sectário). Mas, ao mesmo tempo, é preciso ter coragem de nadar contra a corrente (diferente do reformista, que é surfista e está sempre a favor das ondas), enfrentar a consciência governista e reformista.
Os revolucionários não podem deixar de enfrentar as ilusões, desmascarar a burguesia e os reformistas. Levar em conta a consciência, mas não fazer seguidismo à consciência das massas ou da vanguarda. Partir sempre da necessidade objetiva e do programa socialista para responder concretamente à realidade, mas levando em conta a consciência. Como dizemos sempre, os marxistas não são surfistas. São navegantes, sabem onde querem chegar. Sabem ir a favor das ondas, mas também contra a corrente, enfrentando as ondas.
No momento em que escrevemos este texto, praticamente todas as centrais sindicais (exceto a CSP-Conlutas), entidades populares e estudantis e quase todas as organizações de esquerda entraram no governo liberal de colaboração de classes de Lula. O PSOL integra o governo ao lado do PT e também de Geraldo Alckmin. Várias correntes de esquerda apoiam o governo de dentro ou de fora. Pouquíssimas são as organizações que, como o PSTU, colocam-se na oposição de esquerda e na defesa da independência de classe. Única localização, aliás, que permite enfrentar também de forma coerente a extrema direita.
Daí a importância de explicar o mundo a partir das classes sociais e da defesa da independência de classe em contraposição à teoria antimarxista, stalinista e reformista dos “campos burgueses progressivos”. O nosso campo é o da classe operária, do proletariado e seus aliados contra a burguesia e os diferentes campos burgueses. Em um momento de confronto militar, golpe ou invasão imperialista, saberemos fazer unidade de ação com o campo democrático ou anti-imperialista, como fizeram os bolcheviques contra Kornilov. Mas jamais o apoiaremos politicamente, como os bolcheviques jamais apoiaram Kérenski. Apoiar um governo de colaboração de classes e sucumbir aos “campos burgueses progressistas” implica abandonar a estratégia e a luta pela revolução socialista e se tornar prisioneiros da ordem burguesa capitalista, mesmo que seja como apêndice de correntes reformistas de colaboração de classes.
Os agrupamentos que se encontravam à esquerda da frente popular nos diversos processos históricos que se sucederam não passaram no teste da luta de classes e da necessidade do enfrentamento ao reformismo. Acabaram sendo cúmplices das derrotas – em vários casos, históricas – que tais governos impuseram aos trabalhadores.
Este livro ganha hoje novamente enorme atualidade, quando governos de colaboração de classes ressurgem em diversos países da América Latina em um contexto de polarização com a extrema direita. Direita que germinou no terreno preparado pelo capitalismo imperialista neoliberal nas últimas décadas, em grande medida levado adiante por estes mesmos governos de colaboração de classes, que como o PT, governaram por longos anos.
Este livro é um ponto de apoio importante para guiar a ação a todos os militantes e ativistas que queiram de fato iluminar o caminho para uma revolução socialista e construir uma alternativa revolucionária que supere o projeto capitalista e de colaboração de classes do PT e dos reformistas.
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