O real significado da PEC de transição
O Senado aprovou, em segundo turno, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Transição, na noite desta quarta-feira, 7. Com os votos da base bolsonarista, o placar fechou num resultado bem além do necessário: 64 contra 16, quando precisava de 49 para seguir à Câmara e ser definitivamente aprovada.
A PEC flexibiliza o teto de gastos num montante que pode chegar a R$ 205 bilhões nos próximos dois anos. A medida é apontada como necessária para a manutenção do Auxílio Brasil (que deve voltar a se chamar Bolsa Família) nos atuais R$ 600, além do auxílio de R$ 150 para crianças abaixo dos 6 anos de famílias atendidas pelo programa.
Articulada por Lula e a equipe de transição do futuro governo, o resultado está sendo proclamado como uma vitória do PT e seu poder de negociação, mesmo em minoria no parlamento. O que, por sua vez, traria um alento à chamada governabilidade de Lula em sua próxima gestão, mesmo num ambiente ainda mais inóspito que o atual. Mas seria isso mesmo?
Terra arrasada
Não é difícil entender o apoio da base bolsonarista à PEC. O governo Bolsonaro chega ao final de sua gestão num quadro de verdadeiro apagão da máquina pública. Ao mesmo tempo em que a União tem arrecadação recorde, simplesmente corta as bolsas de 200 mil estudantes e pesquisadores da Capes, além dos salários de 14 mil médicos residentes. Órgãos como o Ibama estão paralisados, assim como o INSS, ameaçando os benefícios de milhões de aposentados e pensionistas.
Trata-se do resultado de uma política econômica que privilegia o pagamento de juros aos banqueiros e voltado às multinacionais e ao grande agronegócio e que, dentro desta política, escancarou os cofres para pôr em marcha o Orçamento Secreto e, nos últimos meses, um megaoperativo de compra de votos em sua tentativa desesperada de vencer as eleições. Os R$ 200 a mais de Bolsonaro, além de eleitoreiro e absolutamente insuficientes para dirimir os efeitos da crise, seriam pagos pela própria classe trabalhadora, como denunciava o PSTU.
A versão final da PEC, que passa pela Câmara nesta semana, permite utilizar parte dos recursos liberados para cobrir o rombo do final de feira da gestão Bolsonaro. Incluindo aí R$ 7,8 bilhões do Orçamento Secreto ainda de 2022, hoje “contingenciados” por conta do teto. Além, é claro, de abrir espaço no orçamento de 2023 para a continuidade do esquema bilionário de compra de votos.
O que está por trás da PEC
Na prática, a PEC aprovada pelo Senado avança na substituição da Emenda Constitucional nº 95, aprovada em 2016 durante o governo Temer, apelidada então, não sem razão, de “PEC do fim do mundo”. Isso porque ela proíbe, e inscreve isso na Constituição, o aumento dos gastos públicos através dos anos, excetuando os gastos com a dívida aos banqueiros. Ou seja, mesmo que o país aumente sua arrecadação, como vem acontecendo agora, isso não pode se traduzir em aumento nos investimentos em saúde ou educação. Pelo contrário, com o tempo a tendência é que o arrocho fiscal se aprofunde cada vez mais. Só o que aumenta é colchão de garantia de que o mercado vai receber o fruto de sua extorsão.
Desde o início, porém, mesmo analistas da burguesia e do mercado, já sinalizavam que essa jabuticaba impunha um arranjo tão draconiano, que era simplesmente insustentável. E que levaria, mais cedo ou mais tarde, a um colapso do próprio Estado. A política ultraliberal de Bolsonaro, o pacote eleitoreiro e os bilhões do orçamento secreto ao centrão precipitaram isso.
A PEC, então, aponta para um remodelamento do que chamam de “âncora fiscal”, ou seja, um sistema que perpetua essa política econômica que drena recursos do país, e da classe trabalhadora, para os grandes banqueiros. A ideia é manter a máquina pública minimamente funcionando para, em 2023, substituir esse mecanismo insustentável por outro, mais factível, mas com o mesmíssimo conteúdo. Não há teto para os banqueiros, mas o teto para os investimentos nas áreas sociais fica cada vez mais baixo, e mesmo esse teto rebaixado tem que abrigar os bilhões do centrão.
Para garantir os R$ 600 do Bolsa Família em 2023, e o aumento do salário mínimo, não era imprescindível uma PEC, como explicou o próprio Geraldo Alckmin à imprensa. Havia uma série de medidas que o novo governo, já empossado, poderia lançar mão. Mas a equipe de transição fez questão da medida para mostrar que “já fazia política”.
Frente amplíssima já começou
A PEC é a primeira ação do governo Lula-Alckmin mesmo antes da posse formal do novo presidente. O que está unindo um espectro político que vai do PSOL a Arthur Lira, com o bolsonarismo nesse meio, é, na prática, a manutenção dos pilares da atual política econômica, sob a chantagem da redução do Bolsa Família e da redução dos já combalidos investimentos públicos. É aceitar, por conta dessa chantagem, que a dívida paga aos banqueiros continue sendo prioridade absoluta, enquanto o Auxílio Brasil chega a um número de famílias (21 milhões) menor que o número de pessoas que passam fome no país (33 milhões). E num valor absolutamente insuficiente, menor que o valor médio de uma cesta básica.
A lógica que guia a equipe de Transição, do PT ao PSOL, é a que não há opção a não ser compor com o centrão e viabilizar o futuro governo. A mesma lógica que rege o apoio à recandidatura de Arthur Lira à Presidência da Câmara. Nesse raciocínio, a prioridade é isolar o bolsonarismo e sua base para que Lula governe. O problema começa pela pergunta: governar para que, e para quem? Junto com Lira e o centrão será possível revogar a reforma trabalhista, impedir as privatizações e aumentar os investimentos em saúde e educação? Será possível impor medidas que garantam empregos e direitos e que, necessariamente, contrariem os interesses das grandes empresas e do mercado? O futuro governo conhece bem a resposta.
Mas há alternativa? – poderia perguntar algum ativista honesto preocupado com o crescimento da extrema-direita. Sob o ponto de vista do governo, há uma única alternativa à chantagem do centrão e do bolsonarismo: chamar e se apoiar na mobilização popular e dos trabalhadores na defesa de medidas que, de fato, garantam um Bolsa Família maior, de um salário mínimo ao menos, e para todas as famílias desempregadas. E para a geração de empregos, direitos sociais, passando pela revogação completa da reforma trabalhista e da Previdência.
Lamentavelmente, o PT e o PSOL não cogitam essa opção, e enxergam como única alternativa a ação parlamentar, e a partir dela, os acordos com Lira e o centrão. Uma política de conciliação que, justamente, falhou lá atrás, e nos legou a ascensão de um governo de extrema-direita. E que agora tende a ser ainda mais trágica, pois prepara a derrocada e desmoralização do futuro governo, como os exemplos dos governos de esquerda eleitos recentemente, como Boric no Chile. Com a diferença de que, agora, temos uma extrema-direita ainda mais radicalizada, organizada, e armada, com a simpatia de amplos setores das Forças Armadas.
Talvez nem se possa chamar, hoje, de conciliação. Uma revista semanal revelou o que os parlamentares do centrão cochichavam por trás dos panos, em tom de ironia: “deixa eles articularem lá o que nós queremos“. Quer dizer, longe de ser a expressão de um suposto fortalecimento de Lula e seu poder de barganha, o que está ocorrendo é uma capitulação que vai garantir ainda mais força e protagonismo ao centrão e a Arthur Lira.
Mobilização e organização independente da classe
A única opção colocada para a classe trabalhadora é confiar em suas próprias forças, e, de forma independente, se mobilizar por suas reivindicações: emprego, renda, direitos, terra, etc. Enfrentando, inclusive, os ataques do futuro governo, e da extrema-direita no Congresso Nacional e nos estados. E nesse processo, fortalecer uma verdadeira oposição de esquerda ao governo Lula-Alckmin. O bolsonarismo monopolizar a oposição ao futuro governo, pela direita (como quer o PSOL), será uma tragédia, que preparará derrotas indizíveis lá na frente.
Precisamos de uma oposição de esquerda que ajude a organizar e a impulsionar a luta dos trabalhadores e dos setores populares e oprimidos. Só isso é o que pode garantir o fim da fome, do desemprego e o resgate dos direitos mais básicos. E só isso o que pode também enfrentar, e derrotar, de uma vez por todas a extrema-direita e o bolsonarismo.