O que não foi discutido no encontro entre Lula e Marina Silva
O anúncio da ex-ministra Marina Silva (Rede) em apoio à candidatura Lula, no último dia 12, chamou a atenção da imprensa, causou burburinho nas redes sociais e chegou a ser saudada como uma “reaproximação histórica”. Marina foi ao comitê de Lula e apresentou uma série de propostas para serem incluídas no programa do petista para a questão ambiental, com ênfase especial no combate às mudanças climáticas.
Entre as propostas está a retomada do plano de prevenção ao desmatamento da Amazônia e a ampliação desse plano para todos os biomas, com o objetivo de chegar ao desmatamento zero no país. Além disso, Marina propôs a criação de uma autoridade nacional para enfrentar as mudanças climáticas. Também defendeu a retomada da demarcação de terras indígenas e a criação de unidades de conservação.
Entretanto, no mesmo dia, na sabatina na emissora CNN Brasil, Lula fez um aceno ao agronegócio. Quando entrevistado pelo Jornal Nacional, o ex-presidente chegou a dizer que parte dele é “fascista e direitista”, o que foi saudado por apoiadores nas redes sociais. Mas também lembrou que “nenhum governo tratou do agronegócio como nós”, se orgulhando do apoio dado ao setor – algo sequer comentado por seus entusiásticos apoiadores. Dessa vez, na CNN, disse que há “muita gente responsável”, “que cuida do meio ambiente” e “está tentando preservar”. “Tem empresários grandes no agro que se comportam dignamente”, declarou.
O problema é que não é possível acender uma vela para deus e outra para o diabo. Os imensos problemas ambientais que o Brasil enfrenta nas últimas décadas têm relação imediata com o fortalecimento do agronegócio, inclusive durante o governo Lula e com Marina Silva como ministra do Meio Ambiente, como veremos mais adiante. Essa pauta ficou muito longe da conversa entre Lula e Marina.
Condição subalterna e meio ambiente
O avanço do extrativismo vegetal e mineral, complementar às economias centrais do capitalismo, é resultado de uma nova localização do país na divisão internacional do trabalho, e que se manifesta com o fenômeno da reprimarização da economia brasileira, marcado, sobretudo, por uma mudança da pauta do comércio internacional com o aumento contínuo das exportações dos bens primários e a redução dos bens manufaturados.
A reprimarização da economia brasileira atualiza os dispositivos coloniais, provocando um reajuste do país às novas necessidades centrais do capital, modificando a configuração territorial e no uso dos recursos naturais. Em outras palavras, a destruição de sistemas ecológicos, a degradação de biomas e a contribuição do Brasil nas mudanças climáticas estão diretamente relacionado a esse novo papel subalterno do país no capitalismo global.
No Brasil, a maior parte das emissões dos gases de efeito estufa (como o dióxido de carbono e o metano), 44% do total, é proveniente do que os pesquisadores chamam de “mudanças no uso da terra”. “Mudanças no uso da terra” nada mais são do que desmatamento, degradação florestal e queimadas que aumentam as emissões de carbono.
A agropecuária é a segunda fonte de emissões e responde por 28% das emissões diretas de carbono no país. Foram quase 593 milhões de toneladas emitidas em 2019. Em 20 anos, o crescimento foi de 50% em relação aos 402 milhões de toneladas de gases emitidos em 1990.
Em terceiro lugar vem o setor de “Energia, Transportes e Eletricidade”, responsável por 19% do das emissões. No entanto, esse setor aumentou suas emissões em 114%, entre 1990 e 2019. Nessa modalidade, o transporte de cargas e de passageiros foi responsável por 47% das emissões em 2019. É importante lembrar que historicamente a burguesia brasileira optou por esse tipo de transporte em detrimento do transporte sobre trilhos, com o intuito de atrair grandes montadoras estrangeiras. Essa história é longa e vem lá dos tempos de JK na presidência.
Em resumo, as emissões de carbono no Brasil estão diretamente relacionadas à condição semicolonial do país na ordem econômica mundial – 72% das emissões vem diretamente da agropecuária. Foi a expansão do agronegócio que provocou as “mudanças no uso da terra”, com a explosão do desmatamento e das queimadas, além do crescimento da agropecuária, o que fez o ter um rebanho com mais de 218 milhões de cabeças de gado. Só a Amazônia Legal concentra quase 83 milhões de cabeças de gado, em face dos seus 38 milhões de habitantes.
É por isso que o cerrado está quase extinto no Brasil, e a Amazônia não para de queimar. Segundo dados do Prodes (Inpe), a taxa de desmatamento por corte raso para os nove estados da Amazônia Legal em 2020 foi de 10.851 km. Em 2019 foi de 10.129 km2. Somadas áreas queimadas, temos algo equivalente à do estado de Sergipe. E, enquanto você lê essas linhas, a Amazônia registra suas maiores queimadas em décadas, o que produzirá um novo e sinistro recorde de deflorestamento em 2022.
Roubo de terras públicas
O Estado sempre foi o maior parceiro no crescimento do agronegócio. Não só agora com Bolsonaro. Não só concedendo subsídios e crédito barato, mas também fomentando sua expansão territorial, favorecendo especialmente o roubo de terras públicas. O fogo na Amazônia (e por extensão outros biomas, tais como o cerrado, o pantanal etc.) é apenas o primeiro passo desse processo, depois vem o capim, o boi e a espera da regularização fundiária que sempre vem pelas mãos do governo de turno.
O boi criado em terras públicas vai direto para o mercado externo, sem maiores problemas. E se tiver algum, basta esperar que o governo regularize a posse ilegal da terra, tal como fez Lula com a Lei 11.952 que autorizou a emissão de títulos de áreas públicas de até 1.500 hectares na Amazônia, ocupadas e desmatadas ilegalmente até dezembro de 2004 – além de dispensar a vistoria do Estado para a emissão de título para áreas de até 400 hectares. Temer e Bolsonaro ampliaram o perdão e a grilagem, regularizando áreas com até 2.500 hectares e estendendo o perdão para os grileiros.
Segundo dados, terras federais e estaduais somam 263 milhões de hectares (cerca de 30% do território nacional). São Terras Indígenas, quilombolas, Unidades de Conservação territórios comunitários, entre outras modalidades. A estes números devem ser somados os cerca de 141,5 milhões de hectares de terras devolutas, federais e estaduais. As terras devolutas são uma modalidade de terra pública que não está identificada, não se sabe onde estão e, por essa razão, sequer estão registradas em cartório como integradas ao patrimônio público. E por esse motivo elas são o alvo mais cobiçado pela grilagem. Mais de 80% de todas essas terras públicas do Brasil estão na Amazônia e se constituem como um fundo territorial apropriado pela grilagem do agronegócio.
Agronegócio ganha impulso sob governo do PT
Lá atrás, em 2002, durante a campanha presidencial, Lula prometeu que acabaria com a concentração de terras no país e “fazer a reforma agrária numa canetada”. Não o fez. E quando o PT deixou o governo a concentração fundiária cresceu, acrescentando 97,9 milhões de hectares às grandes propriedades, como apontou o geógrafo da USP Ariovaldo Umbelino de Oliveira em artigo publicado no Caderno sobre Conflitos no Campo em 2015, da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
O impulsionamento do agronegócio recebeu uma ajuda de Lula também no que se refere à liberação dos chamados transgênicos (organismos geneticamente modificados), em 2007, a despeito de uma intensa e forte mobilização de ativistas ambientais.
Desde então, explodiu o uso de agrotóxicos no país. O principal objetivo das transnacionais para realizar as modificações genéticas, isto é, produzir sementes transgênicas, é para que tenham mais resistências ao uso dos agrotóxicos. Por exemplo, a soja geneticamente modificada desenvolvida pela transnacional Monsanto (conhecida como “RoundUp Ready”) foi criada para resistir ao herbicida glifosato, hoje proibido em muitos países. São essas empresas que detêm o monopólio da produção de sementes e, por tabela, de toda a cadeia de produção e comercialização desses produtos.
Fonte: Larissa Mies Bombardi. Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia
Mas recentemente, sob os governo de Temer e Bolsonaro, o agronegócio passou a utilizar venenos ainda mais potentes, como o 2,4-D, que ficou lamentavelmente conhecido por ter sido usado no composto chamado “agente laranja”, utilizado como “arma química” na Guerra do Vietnã e que contém compostos cancerígenos. Os transgênicos permitiram o aumento em 30 vezes do uso desse veneno, multiplicando a contaminação ambiental e dos alimentos.
Entre os anos 2000 e 2014, o consumo de agrotóxico aumentou em 135% e, hoje, o Brasil consome 20% de todo o veneno comercializado no mundo, muitos deles proibidos nos países centrais. Quer dizer, o Brasil também sofre de uma “colonização química”, na expressão da geógrafa da USP Larissa Mies Bombardi. O gráfico acima mostra que a explosão do uso de agrotóxico ocorreu após a liberação dos transgênicos, em 2007. Ou seja, se hoje o veneno está na sua mesa, nos alimentos que você e sua família consomem, isso é mais um resultado dos governos do PT.
A liberação dos transgênicos foi uma das bases da expansão dos monocultivos. Hoje, o Brasil é, ao lado dos EUA, líder mundial da produção de soja transgênica. Em 2002, a soja ocupava uma área de 18 milhões de hectares (ha); em 20015, foi para 33 milhões ha. A cana-de-açúcar (também transgênica) saltou de 5,8 milhões hectares, em 2005, para 8,6 milhões ha, em 2015. Adivinha quem governava o país? Pois é…
Marina Silva e o ambientalismo liberal
Marina Silva não é, certamente, a única responsável por todo esse desastre. Mas acompanhou boa parte desse processo como ministra do Meio Ambiente (de 2003 a maio de 2008). E enquanto ministra defendeu um tipo de política liberal-conservacionista conhecida como “economia verde” (capitalismo verde, na verdade) que em nada resolveu os problemas ambientais do país. Um exemplo foi a aprovação da polêmica Lei de Gestão de Florestas Públicas, que autoriza a sua concessão para exploração pelo setor privado, a comercialização de “serviços ambientais”, a venda de créditos de carbono, entre outras medidas de cunho neoliberal e financista. O pressuposto da “economia verde” é o de que a floresta precisa ter um valor econômico para ser preservada e incentivos financeiros devem ser criados para que os indivíduos se abstenham de destruí-la. Propõe-se uma “economia verde”, em que as forças de mercado (com suas “falhas” supostamente corrigidas) proporcionem um uso sustentável dos recursos naturais. A verdade é que o papel subalterno do Brasil na economia global reduziu a pó os sonhos liberais de Marina, a ponto de ela concorrer à presidência da República em 2014 com um vice ligado ao agronegócio. “A Marina não tem uma proposta de reforma agrária, nunca teve essa preocupação. Com a escolha desse vice [Beto Albuquerque] ela combina a imagem de lutadora que teve no passado com esse setor que sempre foi o grande inimigo daqueles que defendem a reforma agrária e lutam contra a concentração da terra. Os seringueiros e os índios vão sofrer as consequências disso na Amazônia”, criticou, na época, Osmarino Amancio Rodrigues, que ao lado de Chico Mendes dirigiu a luta contra o desmatamento no Acre.
Socialismo e revolução das forças produtivas
Está mais do que provado e comprovado de não há como o país conservar o meio ambiente mantendo o atual modelo agrícola capitalista. Agronegócio sustentável só existe em novela da Globo. Na realidade, ele é expressão da decadência brasileira que nos levou a novas veredas coloniais. Nossos biomas, a maior floresta do planeta e o Brasil não estarão livres da possibilidade e iminência de uma catástrofe ambiental, enquanto não rompermos com o atual modelo dependente, superando o sistema capitalista que destrói os sistemas ecológicos, converte seus recursos em mercadoria, na toada da expansão da propriedade privada da terra. Precisamos de uma sociedade socialista para revolucionar as forças produtivas, fazer a necessária transição energética e onde toda a grande biodiversidade, os bancos de germoplasma e o conhecimento tradicional dos povos da floresta estejam a serviço do bem comum da humanidade. Uma sociedade que não esteja voltada para o lucro e acumulação de capital de um punhado de bilionários, como ruralistas, banqueiros e mineradoras.