Opinião Socialista

O que é ser socialista hoje

Gustavo Machado do canal Orientação Marxista

9 de agosto de 2024
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O surgimento, na História, de socialistas e de movimentos socialistas não foi uma criação a partir do nada, por parte de idealistas e visionários, mas coincide com o amplo desenvolvimento do capitalismo. A desigualdade, a opressão e a dominação na relação entre os seres humanos não eram novidades. Apesar disso, pela primeira vez, a riqueza e a pobreza desenvolviam-se lado a lado, em máxima intensidade.

Um exemplo é a Inglaterra dos séculos 18 e 19 (ou seja, entre os anos 1700 e 1800). Esse país alcançou um nível de produção de riquezas jamais visto em toda História da humanidade até então. Era o país capitalista mais desenvolvido do mundo, o coração e o pulmão de uma indústria que exportava seus produtos para a Índia e o Brasil, os Estados Unidos e a China. Apesar disso, não existia um país no mundo onde a classe operária industrial fosse tão numerosa quanto massacrada, com jornadas de trabalho extenuantes e mal remuneradas.

Um país onde conformaram-se os grandes centros urbanos em que, de um lado, tínhamos as Bolsas de Valores, os bairros regados pelo luxo de industriais, acionistas e executivos das empresas; enquanto, de outro, os operários e operárias industriais eram amontoados com condições de vida degradantes, sem que as necessidades mais básicas fossem atendidas.

Foi nesse cenário que a menção ao socialismo deixou de ser um episódio isolado para ganhar os holofotes públicos. Muitos constataram o absurdo de uma sociedade em que a produção de riqueza é, ao mesmo tempo, a produção de pobreza, de embrutecimento, de degradação física e moral.

Surgiram, assim, teorias e movimentos dos mais variados, que se denominavam socialistas. Para todos eles, o ponto de partida foi a detecção desse problema social colossal e inquestionável. No entanto, como resolvê-lo? As respostas foram muitas.

Os tipos de “socialismo”

Tínhamos os “socialistas utópicos”, que construíam modelos de sociedades justas, baseadas em comunidades autossuficientes ou cooperativas de trabalhadores, como o francês Charles Fourier (1772-1837) e o galês Robert Owen (1771-1858). Já os “socialistas cristãos” construíam instituições filantrópicas voltadas para ações de ajuda mútua e os chamados “socialistas reformadores” propunham alterações na sociedade capitalista, de modo a minar o avanço da desigualdade, como o suíço Jean de Sismondi (1773-1842) e o francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-65)

E, ainda, existiam os revolucionários, como o também francês Louis-Auguste Blanqui (1805-81), que acreditavam que o principal problema era o regime político existente, corrupto e opressor, que, por isso mesmo, deveria ser imediatamente derrubado por um grupo secreto de revolucionário bem treinados, pondo fim ao que seria a raiz de todos esses males e contradições: o sistema político e o Estado.

Passado mais de um século do início desses movimentos, nos dias de hoje, temos um dilema. Por um lado, muitos são aqueles que continuam a se identificar com o termo socialismo. E o motivo é óbvio. Os problemas anteriormente mencionados não apenas se mantêm, como se desenvolvem em uma escala cada vez maior. Ao lado dos problemas sociais clássicos, ligados à remuneração, ao emprego, à moradia etc., desenvolvem-se outros tantos, como a crise climática global e a ameaça de novas guerras de dimensões globais, ameaçando a existência da própria espécie humana.

Ao mesmo tempo, outros veem no socialismo uma ameaça ainda maior. Afinal, foi sob esse nome que não poucos governos foram erguidos no último século. Das sociais-democracias europeias ao “Socialismo do Século 21”, de Hugo Chávez e Nicolás Maduro, na Venezuela. Mas, longe de avançar na solução dos problemas postos, eles se agravaram sob esses governos. Tivemos, ainda, a tentativa de construir o socialismo em um só pais, sob controle de uma burocracia, como na ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), Cuba etc.

O surgimento do marxismo

Diante disto, muitos passaram a acreditar que o socialismo seria um ideal fadado ao fracasso e, no final das contas, redundaria em governos autoritários e no excesso de controle por parte de um Estado cada vez mais apartado da realidade da maioria.

Como consequência, hoje, muitos se refugiam em saídas meramente individuais, por vezes em um liberalismo extremo, que chega a postular um mercado capitalista sem Estado. Ou, então, em pautas particulares que problematizam corretamente, por exemplo, os problemas ambientais e as opressões de vários tipos, sem conectá-los com a forma de sociedade em que vivemos.

Os questionamentos são justos. Todas as tentativas de administrar o capitalismo por meio de um Estado mostraram-se, e mostram-se, a cada dia como impotentes. Mas, nem todo movimento socialista se baseou nessa dupla premissa: a criação idealista de uma sociedade do futuro ou a administração do capitalismo, por meio de políticas públicas.

Também no século 19, emergiu uma corrente socialista específica: o marxismo. Sua especificidade foi vincular a necessidade do socialismo às necessidades da classe trabalhadora, como estando conectadas uma na outra.

Aí, o socialismo que se propõe não é uma construção feita “de cima”, por meio de agentes sociais benfeitores; mas exige uma reconfiguração completa da sociedade, pondo fim à sociedade capitalista, a partir do seu produto mais genuíno: a classe trabalhadora.

Esse movimento partiu de um estudo científico da sociedade capitalista, demonstrando que a saída proposta não é uma possibilidade dentre outras, mas a única possível. O mercado capitalista é incontrolável e o Estado que lhe corresponde está totalmente subordinado a ele, tendo estreitos limites de intervenção. Esse Estado não é neutro, mas, enquanto uma parte ineliminável dessa sociedade, a legitima e perpetua a divisão dos indivíduos em classes cada vez mais desiguais. Por que é assim?

O capitalismo

O mercado capitalista move-se por meio de umas poucas centenas de empresas globais, sediadas em alguns poucos países dominantes, em um sistema imperialista mundial. O movimento do mercado capitalista é um movimento cego e incontrolável. O que cada empresa individual deve e necessita fazer, para se expandir e elevar seus lucros, jamais coincide com as necessidades da sociedade em seu conjunto e nem mesmo com as necessidades das demais empresas.

Para elevar seus lucros, cada empresa utiliza as novas tecnologias para demitir o máximo possível de trabalhadores, reduzindo, assim, seus custos e elevando os seus lucros. Quando as mercadorias são barateadas pelo desenvolvimento tecnológico, procuram reduzir os salários com o mesmo objetivo. Uma empresa eficiente é a que gasta o mínimo possível.

Acontece que são esses mesmos trabalhadores que irão comprar quase toda a riqueza produzida e uma massa de trabalhadores desempregados, informais e sem emprego, pouco ou nada podem comprar. No fim das contas, para crescerem e se expandirem, as próprias empresas minam a base de sua expansão. Como cada empresa visa elevar seus lucros o mais rápido possível, as condições naturais e ambientais são ignoradas, sejam quais forem os efeitos de médio e longo prazo.

Uma disputa por mercados mundiais se instaura entre os capitais que não mais conseguem se expandir, mas precisam se expandir para sobreviver.

Afinal, o mais ostentador dos proprietários não conseguiria gastar em seu consumo próprio nem sequer 1% dos lucros bilionários que extraem todos os anos de uma massa de centenas de milhares de trabalhadores. Com isso, agravam o problema ao procurarem elevar ainda mais a exploração de seus trabalhadores, ancorando-se em diversas formas de opressão: de gênero, raça-etnia, nacionalidade, orientação sexual etc.

A última válvula de escape é o Estado. Uma primeira saída é expandir o capital para o setor público, privatizando empresas estatais que já existem. Mas, não adianta se expandir se, em cada mercado, temos cada vez menos compradores: a massa de trabalhadores dia após dia assolada por esse processo.

É aí que o Estado entra como um dos principais compradores das empresas privadas por meio do gasto público. E não para por aí. Quando não há possibilidade alguma de expansão, os capitalistas colocam, ainda, seus capitais no Estado na forma de títulos públicos, recebendo os juros às custas da sociedade inteira.

Mas essa saída é como tapar o sol com a peneira. Seu alcance é limitado. O Estado extrai sua riqueza da enorme massa de trabalhadores, cuja renda cai dia após dia, e, em menor parte, dessas mesmas empresas capitalistas que não mais conseguem se expandir. Ele apenas prenuncia uma explosão ainda maior.

Torna-se evidente, então, porque o socialismo que se apoia no Estado e em seus governos para gerir o capitalismo fracassou no passado e continuará a fracassar no futuro. Independente das intenções dos governantes, o Estado está organicamente conectado ao capital privado e os espaços de intervenção que ele oferece são mínimos. No lugar de serem progressistas e o mal menor, governos mais ou menos intervencionistas se alternam conforme as necessidades de valorização do próprio capital.

Necessidade do socialismo

Hoje, mais ainda do que no passado, é necessário ser socialista. A realidade atual exige uma revolução completa na forma de sociedade. Mas, não adianta dar murro em ponta de faca. O verdadeiro socialismo do século 21 é aquele que se apoia na única elaboração que sobreviveu a todo esse vai e vem, esse frenesi.

É necessário organizar a classe trabalhadora de forma independente, não para eleger esse ou aquele governo de plantão, supostamente socialista, mas para que trabalhadores e trabalhadoras sejam sujeitos do processo.

São eles e elas que devem se organizar e tomar o poder de modo a constituir, de forma independente e democraticamente, o seu próprio Estado, destruindo o anterior, com o objetivo de reconfigurar a sociedade sob novas bases. Que devem colocar a tecnologia ou todo o desenvolvimento acumulado por milênios pela humanidade a serviço de seus próprios interesses e necessidades, de modo planejado, consciente, democrático e racional.

Diante de toda experiência histórica, hoje, esse é o único socialismo pelo qual vale a pena lutar. Ou melhor, pelo qual é necessário lutar.