O plano de conquista da Amazônia pela ditadura militar
A saga da Amazônia, aquela marcada pela imensa destruição da floresta, por queimadas, violência e roubo de terras, começou com o regime militar. Não que, antes, reinasse o paraíso da Terra. Claro que não. Desde que a região foi integrada ao mercado capitalista mundial, com a chegada dos colonizadores, o genocídio dos povos originários e a superexploração das populações seringueiras foram normas. Mas tudo isso ficou ainda mais terrível quando a ditadura fez da floresta um inimigo a ser aniquilado.
Durante um vasto período de sua história, a Amazônia teve como principal atividade econômica o extrativismo florestal, com exploração das chamadas “drogas do sertão”. Na segunda metade dos anos 1800, a região passou a se destacar com extração do látex, para a produção de borracha voltada a atender o mercado capitalista mundial.
A produção em larga escala deste produto foi consequência, dentre outros motivos, da Revolução Industrial (por volta de 1850) e do grande aumento da procura por matéria-prima, principalmente quando a indústria automobilística começou a crescer.
Para os ditadores, Amazônia era uma questão de segurança nacional e um obstáculo ao “progresso”
Mas a lenta agonia da economia extrativista, desde que a Ásia começou a produzir um látex mais barato, impulsionava novos projetos de transformação na região. Nas décadas de 1960 e 1970, a ditadura apresentou uma nova visão sobre a Amazônia e lançou mão de novas políticas institucionais de ocupação, resultando em uma rápida e brutal destruição ambiental.
Todo o plano tem como raiz a geopolítica dos militares, particularmente nas elaborações do general Golbery do Couto e Silva, membro da Escola Superior de Guerra (ESG), que consolidou a Doutrina de Segurança Nacional, que serviria de fundamento ideológico para a ditadura militar. Golbery ajudou a articular o golpe de 1964, criando Serviço Nacional de Informações (SNI), e exerceu o cargo de chefe da Casa Militar dos presidentes Ernesto Geisel (1974-1979) e Figueiredo (1979-1985).
Nas propostas voltadas para a Amazônia, o general defendia “inundar de civilização a Hileia amazônica [nome, cujo significado é algo como ‘selvagem’, dado à região por exploradores europeus, em 1850]”, sob um suposto discurso nacionalista, no qual a Amazônia era apresentada como um imenso “vazio demográfico e econômico”, comparável “às regiões polares”, conforme propaganda institucional da época.
Uma região que, segundo os militares, comprometia a soberania brasileira, ameaçada pelas pressões externas e internas. Portanto, era necessário “integrar para não entregar”, palavra de ordem que simbolizou o enquadramento da região às diretrizes da Doutrina de Segurança Nacional, mencionada acima.
O plano dos militares para a conquista da Amazônia seria executado mediante grandes obras de infraestrutura, tais como estradas e hidroelétricas. Não se tratava mais de um desenvolvimento com a floresta, como foi no ciclo da borracha, mas sim contra a floresta, considerada um símbolo de atraso, um obstáculo ao “progresso”.
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Abrindo espaço para o grande capital e o agronegócio
Mas qual espaço vazio era preciso ocupar? Nos projetos de ocupação da Amazônia, populações indígenas, ribeirinhos, posseiros, quilombolas e seringueiros sequer eram mencionados. Para essas populações sobraram as terríveis consequências do rolo compressor da ocupação da “última fronteira”.
Com o objetivo de viabilizar esta nova estratégia de desenvolvimento, foi colocada em curso a chamada “Operação Amazônia”, que resultou na criação de um conjunto de instrumentos legais e de novas instituições federais na região.
Como parte da “Operação Amazônia”, a Lei 5.174, de outubro de 1966, alterou e estendeu ainda mais a política de incentivos fiscais, incorporando a agropecuária fortemente. As empresas privadas poderiam obter isenção de até 100% do Imposto de Renda. Também estariam isentas do imposto de exportação de produtos regionais e dos impostos sobre importação de máquinas e equipamentos. Assim, novos e mais poderosos agentes entraram cena.
O grande capital internacional, sob a tutela do próprio governo, passou a se fazer diretamente presente no interior do espaço amazônico. A partir de então, o grande capital extrarregional, tanto nacional como internacional, não exploraria mais a região “de fora”, como acontecia até a década de 1960, mas “por dentro” da própria floresta.
Sob o falso manto do nacionalismo, encontrava-se um forte alinhamento ideológico do regime militar com os Estados Unidos, que procurava ocultar uma aliança entre o capital estrangeiro com o capital nacional. O regime militar reforçava o papel de subalternidade do Brasil diante dos países imperialistas, fomentando a exportação de produtos primários, particularmente na Amazônia.
Tudo isto cumpria um papel importante no modelo econômico dependente do chamado “milagre brasileiro”, pois ajudava a sustentar o pagamento da dívida externa brasileira e a manter o saldo positivo da balança comercial. Endividamento este que crescia na medida em que a ditadura implementava seus megaprojetos de infraestrutura país afora, inclusive, na própria Amazônia.
Veias e feridas abertas
A ocupação dos “espaços vazios” estava claramente orientada pelas grandes rodovias abertas e pelos projetos de colonização. Os militares criaram o Programa de Integração Nacional (PIN), cujo objetivo formal era garantir a integração por meio da construção de rodovias como a Transamazônica, ligando a região Norte ao Nordeste; a rodovia Belém – Brasília; a BR 368, ligando Acre e Rondônia; e a Cuiabá – Santarem, ligando o Mato-Grosso à Transamazônica e ao porto de Santarém.
As estradas abriram acesso aos recursos naturais da região e aos grupos econômicos nacionais e internacionais. Milhares de hectares de terras foram vendidos a grandes grupos empresariais. Províncias minerais, como a Serra dos Carajás, foram expostas a grandes grupos econômicos nacionais e estrangeiros.
Hoje, as consequências ambientais desta política podem vistas em imagens de satélite. Basta passar os olhos sobre a região amazônica para perceber, imediatamente, que a floresta tem sido gradualmente devorada pelas bordas das estradas que trouxeram fazendeiros, madeireiros, grileiros e também muitos capitalistas.
É possível ver o padrão “espinha de peixe”, que ocorre perpendicularmente ao traçado das rodovias. Aliás, o famoso “arco do desmatamento” acompanha todo traçado das rodovias abertas pela ditadura na região. Com as rodovias, a Amazônia ficou com as veias abertas para o desmatamento, a grilagem de terras e o saque dos recursos minerais.
Projetando desastres ambientais
Além disso, a geopolítica militar animava planos mirabolantes como, por exemplo, o sistema de grandes lagos, rodovias e canais de navegação elaborados a pedido do governo brasileiro, pelo Hudson Institute, em 1967. Se fossem executados, a maior floresta tropical teria certamente sucumbindo. Boa parte estaria apodrecida embaixo d’água.
Outros projetos da ditadura que não foram executados pelos militares continuariam a ameaçar a região nas décadas seguintes ao fim do regime.
Foi o caso da Usina Hidrelétrica de Balbina, criticada por ter um alto custo e ter causado um dos maiores desastres ambientais da história do Brasil. A usina tem uma baixa geração de energia em relação à área alagada, ao mesmo tempo que sua emissão de dióxido de carbono e metano é superior à de uma usina termoelétrica de mesmo potencial energético. Um desastre total.
Outro exemplo desastroso é Belo Monte, planejado pela ditadura e executado pelo governo Lula e Dilma. Quem não lembra da frase de Lula, irritado com a demora do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) em liberar a construção por causa de “alguns bagres”? Ou daquele vídeo (hoje, vergonha alheia total) de estudantes e professores de Engenharia e de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp), defendendo a construção da usina porque ela era necessária ao “progresso do país”?
A construção de Belo Monte foi um dos maiores desastres socioambientais do pós-ditadura e sua produção de energia é ridícula, muito abaixo da capacidade de produzir por conta da dinâmica fluvial do Rio Xingu. E todo mundo já tinha avisado sobre isso, mas prevaleceram os interesses das empreiteiras e das grandes mineradoras de ouro e alumínio, beneficiadas pela construção e pelo “progresso”.
“Válvula de escape”
Mas, a Amazônia também foi utilizada como reserva territorial para impedir a explosão de novos conflitos sociais, particularmente no campo. Sob o invólucro de reforma agrária, o regime militar iniciou a implementação dos projetos de colonização dirigidos para a Amazônia (sob a responsabilidade do Estado ou da iniciativa privada).
Na realidade, os projetos de colonização realizados tinham por objetivo a preservação da estrutura fundiária em outras regiões do país, como Sudeste, Sul e Nordeste, e serviam como “válvula de escape” para os conflitos fundiários dessas regiões, preservando a velha concentração fundiária. Como já foi defendido pelo sociólogo Otavio Ianni, se efetivou uma verdadeira contrarreforma agrária: se distribuía terras a alguns trabalhadores rurais, para não distribuir as terras aos muitos trabalhadores rurais sem terras em outras partes do país.
Muitos camponeses sem terras foram simplesmente jogados na mata, sem a menor infraestrutura e condições de prosperar. Ainda tinham que desmatar seus lotes, conforme as exigências do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (o Incra, criado pela ditadura) para terem o título da posse definitiva da terra.
O problema é que, sem a floresta, o solo da Amazônia perde seus nutrientes e nenhum cultivo brota e medra. Face à miséria e à desesperança, a grande maioria desses assentados abandonou suas terras, voltou para suas cidades ou se tornaram trabalhadores em madeireiras – um dos negócios que mais prosperaram nessa época.
Já as antigas terras passaram a ser apropriadas por criadores de gado, que as “compravam” de forma fraudulenta, muitas vezes pagando uma passagem para o colono voltar ao seu lugar de origem. Esse processo ocorreu em todo estado de Rondônia, no Norte do Mato Grosso e Sul do Pará. Hoje, os dois últimos estados são os maiores produtores de gado do país.
Até a década de 1960, havia menos de 5 milhões de cabeças na Amazônia que utilizavam, sobretudo, pastagens naturais. Hoje, a Amazônia Legal concentra 104,3 milhões de cabeças de gado. Mais um legado dos militares que foi ampliado por todos os governos da Nova República.
Quando a preservação ambiental e a questão agrária se cruzam
Com a política dos militares, investir na compra de terras tornou-se um grande negócio para obter redução no Imposto de Renda das empresas, garantia de empréstimos bancários e fonte de especulação imobiliária.
É por isso que muitas empresas pagavam pela terra, mesmo quando ela era grilada, e apresentavam documentação falsa. Cabe mencionar, ainda, o papel fundamental exercido pelo Estado no processo da transformação da terra em mercadoria.
Subsidiada pelo Estado, a compra de terras deixou de ser um entrave à circulação e reprodução ampliada do capital, uma vez que comprar terra significa imobilizar o capital. Mas, com as isenções fiscais, a terra foi praticamente doada. Por isso, grandes empresas investiram muito em terras na região, como a Volkswagen, grupos como Bordon, Zazur e bancos que se tornam proprietários de imensas áreas de terra.
E a primeira providência que o novo “proprietário” tomava era o desmatamento, seguido da queimada e do plantio do pasto para a criação de gado. É assim que se inicia o processo da criação da fazenda como meio de produção capitalista. Desse modo, a luta pela preservação da floresta se entrelaça intimamente com a própria questão agrária da Amazônia, com a apropriação privada de terras públicas e devolutas que cobrem quase 80% da região. Mais uma saga iniciada pelos militares.
Garantias de lucros, da impunidade e de uma herança maldita
O roubo de terras tornou-se um negócio ainda maior quando os criminosos descobriram que poderiam ser perdoados pelo Estado. Foi assim, em 25 de junho de 2009, data da promulgação da Lei 11.952, editada pela gestão de Lula (PT), que autorizou a emissão de títulos de áreas públicas de até 1.500 hectares na Amazônia, ocupadas e desmatadas ilegalmente até dezembro de 2004, dispensando, inclusive, a vistoria prévia à emissão de título para áreas de até 400 hectares.
Também sob o manto da “lei”, o governo Temer beneficiou ainda mais a grilagem, com a Lei 13.465, de 11 de julho de 2017, que ampliou as áreas passíveis de regularização para até 2.500 hectares, e definiu o “Marco Temporal” em dezembro de 2011.
Mas também houve muita resistência aos planos da ditadura. “Aqui tem gente!” “Queremos o nosso direito!” foram gritos que ecoaram da mata, nas vozes de seringueiros liderados por Chico Mendes e de muitos povos indígenas que sobreviveram ao massacre.
É importante destacar, ainda, que, segundo a Comissão Nacional da Verdade, de 2014, pelo menos 8.350 indígenas morreram comprovadamente em decorrência de violências diretas e omissões do governo brasileiro entre 1946 e 1988, período que inclui a ditadura militar (1964-1985).
Felizmente, muitas dessas populações conseguiram se recuperar, conquistaram vitórias e, hoje, lutam contra a herança maldita de um dos mais obscuros períodos da nossa história. Essa saga está muito longe de terminar. Mas sua luta é a única maneira da Amazônia não atingir um ponto de não retorno.