O mito liberal: os indivíduos isolados
Uma característica que distingue a sociedade capitalista das últimas décadas é o individualismo extremo das concepções dominantes. Tudo se resume aos indivíduos e suas escolhas subjetivas. Na esfera privada, todo sucesso e todo fracasso é atribuído ao mérito individual. Na esfera pública, todo fracasso – já que aí jamais temos um verdadeiro sucesso – é novamente atribuído aos indivíduos: aos corruptos e os ladrões. Mas não somente.
Mesmo nos grupos e organizações que correntemente se insurgem contra a situação dominante, imperam saídas meramente individuais. As lutas contras as opressões convertem-se em empoderamento individual. As mudanças na sociedade convertem-se em escolher os indivíduos certos para legislar e exercer o poder. Em todos os casos, o que temos são indivíduos do bem, de um lado, e indivíduos do mal, do outro. Na esfera privada, o indivíduo é senhor de si. Na esfera pública basta escolher os indivíduos corretos.
Esse modo de conceber as coisas, como veremos, não é de hoje. Sua origem coincide com a origem do próprio capitalismo. Suas bases são objetivas. Nesse artigo, veremos como a noção de sociedade baseada exclusivamente nos indivíduos e nas ações individuais se consolidou no liberalismo. No artigo seguinte, veremos como ela se desenvolveu até o pós-modernismo.
O mito fundador do liberalismo: Robson Crusoé
A ideia do indivíduo onipotente e isolado, tão forte nos dias de hoje, é bem antiga. Surge com o desenvolvimento do próprio capitalismo. O principal marco literário do capitalismo foi o romance Robinson Crusoé. Seu autor foi empresário fracassado: Daniel Defoe. Membro da classe média puritana inglesa, Defoe se refugiou no jornalismo e na literatura após a falência de suas empresas no comércio de meias e na fabricação de tijolos, chegando a ser preso por dívidas. Ao fim, logrou algum êxito com a publicação do livro que se tornou a parábola e mito fundador do capitalismo.
Nesse livro, o herói que dá título ao livro, Robison Crusoé, sobrevive isolado por décadas em uma ilha tropical depois de um naufrágio. Com suas habilidades e inventividade, Crusoé cria uma sociedade feita por ele mesmo. O romance converte-se na bíblia da burguesia: indivíduos isolados, que não dependem de ninguém, triunfando por seus próprios méritos. Ainda hoje, o nome dá título a uma revista liberal brasileira recente. Crusoé converteu-se no herói predileto da burguesia de todas as épocas e, ironicamente, o livro propriamente dito tornou-se um sucesso de literatura infantil.
Cabe perguntar: se o indivíduo é tudo, onde fica a sociedade? O que a regula? O que garante a liberdade e o triunfo dos indivíduos isolados como Crusoé? É aí que entra a principal característica ideológica do liberalismo.
Do Deus dos milagres ao Deus da razão
O liberalismo se desenvolveu em luta contra a aristocracia feudal que, a cada passo, perdia seu poder econômico e, depois, o poder político. Por um lado, os produtores-camponeses eram expropriados da terra a que estavam ligados por gerações, tornando-se livres como um pássaro para … vender a sua força de trabalho. Por outro lado, surgia uma burguesia endinheirada. A aristocracia originada da Europa feudal dependia da propriedade de suas terras e da presença de uma massa de camponeses nela em relação de servidão ou semi servidão. Uma sociedade hierárquica e relativamente fechada. Apenas o excedente era comercializado.
A burguesia, ao contrário, necessitava colocar seus recursos em movimento como capital. Contratar e demitir trabalhadores, trabalhadores esses que, no fim das contas, comprariam as próprias mercadorias produzidas por meio do mercado. Para tal, os produtores deveriam ser liberados de sua relação fixa com a terra. Somente então, seria possível fazer circular todos os produtos como mercadorias. Quebrar as relações fixas de trabalho, produção e consumo.
Tudo que era fixo e imóvel necessitava se dissolver. Era preciso justificar ideologicamente estas pretensões. A onipotência do indivíduo era, então, justificada com a ideia de que o funcionamento interno da sociedade já estava pronto e acabado desde sempre. A sociedade era feita em base a uma lógica feita por Deus quando da criação do mundo: uma ordem natural.
A economia política seria a ciência que traduz a ordem natural que preside a produção e distribuição da riqueza entre os homens. Suas descobertas seriam tão universais como as leis da física. Deus havia inscrito no mundo uma lógica geral que tudo preside de forma equilibrada e harmônica. Caberia aos homens não violá-la, prescrevendo assim uma ação em conformidade com as leis gerais da sociedade. Surgem um direito e uma economia supostamente naturais, isto é, dadas desde de sempre.
O direito natural fez de cada indivíduo uma pessoa livre, proprietária, compradora e vendedora de mercadorias. A economia natural ou o mercado foi feita de modo a alocar automaticamente – sem intervenção consciente de ninguém – todos os recursos da melhor forma possível, conduzindo ao progresso e ao enriquecimento. Assim como o físico descobre as leis da natureza sem ser capaz de alterá-las, cabe ao economista descobrir as leis do mercado e do capitalismo. Cabe a ele examinar os fenômenos do mundo e encontrar os conceitos que lhe permitem, em seguida, tudo avaliar, julgar e administrar. Se opor a esta ordem natural é contrariar a ordem natural do mundo e ao próprio Deus. É a razão de toda pobreza e de todas as crises.
O Deus moderno do protestantismo é, portanto, completamente diferente do Deus medieval do catolicismo. O Deus medieval é concreto e interveem diretamente no mundo. O Deus dos milagres. O Deus moderno dotou o universo e a sociedade humana de uma racionalidade própria, de uma razão suficiente. Deus torna-se uma espécie de legislador do mundo. Ele criou o melhor mundo possível, com uma racionalidade impressa em seus caracteres. Os indivíduos não precisavam se preocupar com a forma de organização da sociedade e seu funcionamento porque quem a criou foi Deus. Ela independe de nós. Agora, é cada um por si e Deus por todos.
Do indivíduo à classe
O indivíduo liberal, como todas as concepções burguesas, não paira nas nuvens. Apenas foi possível elaborar essa concepção porque o capitalismo de fato apaga todas relações sociais da percepção dos indivíduos e os faz autônomos e isolados nas relações formais de compra e venda no mercado. O caráter social da relação entre os indivíduos se dá por meio do dinheiro e do capital, por isso está sempre apagado de sua percepção imediata. Tomemos alguns exemplos.
Uma crise econômica não se manifesta para os capitalistas na forma de fome, miséria e pobreza. Ela se manifesta na forma de prejuízo para suas empresas ou, então, de lucros mais reduzidos. Tudo medido em dinheiro. Tais prejuízos nada dizem sobre o que está acontecendo na sociedade inteira. Ele não será capaz de intervir diretamente na sociedade, mas apenas em sua empresa, reduzindo a produção e demitindo trabalhadores.
Da mesma forma, o trabalhador desempregado não vê que a sociedade capitalista em seu conjunto não é capaz de empregar a todos. Ele vê unicamente que está desempregado enquanto um outro trabalhador está trabalhando. O problema, portanto, deve ser ele mesmo, já que ele é “livre” para procurar emprego como qualquer outro.
O trabalhador empregado, por seu turno, vê que seu salário é corroído pela inflação. Mas o que é a inflação? O que ela expressa socialmente? Vai saber. A alta geral dos preços não mostra que o que ocorre é que menos mercadorias estão sendo destinadas ao consumo da classe trabalhadora e mais e mais capital está migrando para fora do país ou para títulos da dívida pública, no lugar de serem empregados produtivamente. Aparentemente, a inflação não tem nada que ver com as mercadorias produzidas na sociedade inteira. Elas estão lá na prateleira. O trabalhador apenas não tem dinheiro para comprá-la.
De fato, o capitalismo funciona por meio de uma lógica impessoal que se desenvolve as costas dos indivíduos, sejam trabalhadores ou capitalistas. Essa é a base das teorias que se apoiam em uma ordem natural e em leis universais e eternas. O indivíduo acredita ser onipotente porque não pode perceber diretamente os obstáculos sociais que o limitam. O desemprego, a inflação ou o lucro parecem ser um problema individual. A minha empresa, o meu emprego, o meu salário.
Caso nossa situação se limitasse as ações individuais, estaríamos eternamente presos nessa lógica que nos controla como escravos. Que nos faz mero ator de um enredo escrito nas estrelas. Individualmente, de fato, não podemos fazer absolutamente nada, a não ser tentar salvar a nossa própria pele. Apesar disso, como esta lógica a todo instante vira suas setas contra a massa de trabalhadores, para sobreviver eles devem a todo momento se unificar e lutar para garantir sua sobrevivência. Não por sua livre escolha, mas porque não tem outra escolha.
As classes sociais – no presente caso, capitalistas e trabalhadores assalariados – não se encontram enquanto classe para trocar individualmente suas mercadorias. O trabalhador vende sua força de trabalho e compra mercadorias para sua sobrevivência enquanto mero indivíduo abstrato no mercado. Ele atua enquanto classe para decidir mediante a força a fatia da riqueza que lhes é reservada no período seguinte e, no limite, a forma futura de organização da sociedade. O socialismo é possível porque o capitalismo produz não apenas a ilusão de uma ordem natural baseada nas ações individuais de compra e venda, mas também a necessidade de que esses indivíduos se organizem e lutem enquanto classe para sobreviver. Os dois aspectos estão presentes ao mesmo tempo. Por isso, a saída não é automática.
O mesmo trabalhador que ainda ontem lutava de forma abnegada em uma greve: enquanto classe; nos meses seguintes estará, como indivíduo, alegre e satisfeito com um aumento salarial ou, até mesmo, com a multa que recebe de um acordo de demissão.
As ilusões das teorias burguesas se baseiam nas ilusões reais produzidas pelo modo de produção capitalista. Os marxistas apenas poderão conduzir os trabalhadores a levarem suas revindicações e lutas até o fim – convertendo-os em sujeitos do processo – compreendendo a fundo a lógica objetiva do capital que os ilude e sendo um agente consciente em uma batalha encarniçada que leve em conta, a cada passo, tanto a finalidade de destruição desta sociedade como as condições que impedem a massa dos trabalhadores de tirarem autonomamente essas conclusões.
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