O aumento da oposição à “união civil” entre LGBTI+: sintoma de um sistema doente
Uma pesquisa realizada pelo portal Poder360, no final de janeiro, revelou que a taxa de pessoas contrárias à união de pessoas do “mesmo sexo” (termo usado na pesquisa) teve um aumento de sete pontos, nos últimos sete meses; e de 13 pontos, considerando-se os últimos dois anos. Isto significa que, pela primeira vez desde 2021, a porcentagem de pessoas contrárias ao chamado “casamento homoafetivo” ultrapassou a de favoráveis.
Segundo o levantamento, atualmente, 46% da população são contrários à união civil entre LGBTI+; enquanto 44% se dizem favoráveis (mesmo patamar desde junho de 2022). Em janeiro de 2021, o índice de favoráveis era de 51% e o de contrários chegava 33%.
Por trás destes índices, evidentemente, estão as garras ultraconvervadoras, fundamentalistas e LGBTIfóbicas de Bolsonaro, Damares e toda corja da extrema-direita. Como também é óbvio que eles refletem a profunda polarização que dividi o país.
Contudo, para que possamos refletir sobre o significado da pesquisa e, também, em como reverter este quadro, é preciso ir para além dos índices e discutir a relação deles com um tema cada vez mais importante: o caráter de classe das ideologias que justificam e dão suporte para todas formas de opressão.
Por isso, neste artigo iremos discutir a pesquisa, resgatando, também, um pouco da história da conquista do direito à união civil e como ela é reveladora dos limites da democracia burguesa e do “Estado de Direito” (hoje, tão apaixonadamente defendidos pela Frente Ampla e seus apoiadores) também no que se refere à concessão e garantia de nossos direitos.
No próximo, iremos falar um pouco sobre como as ideologias, que alimentam os preconceitos, que geram situações como a detectada pela pesquisa, só podem ser frontalmente combatidas numa perspectiva de classe e com um projeto revolucionário, já que seus principais objetivos são, ao mesmo tempo, permitir que a burguesia oprima e superexplore os setores historicamente marginalizados e imponha divisões entre os trabalhadores e trabalhadoras, minando nossa capacidade de organização e luta.
As opressões e como combatê-las vão para além da “esquerda” e da “direita”
O simples fato de que o índice de pessoas favoráveis à união civil entre LGBTI+ (cuja regulamentação já tem mais de uma década) nunca tenha ultrapassado muito mais que metade da população é uma lamentável evidência da profundidade da LGBTIfobia e o quanto as poucas conquistas que conseguimos arrancar com muita luta, por mais importantes e necessárias que sejam, ainda não estão, de fato, consolidadas na sociedade ou podem ser revertidas a qualquer momento.
Por isso mesmo, o retrocesso registrado, mesmo que pequeno, não pode ser menosprezado. Ao mesmo tempo em que representa uma tendência, é, também, um preocupante “sintoma” dos problemas que teremos que encarar pela frente, particularmente diante do atual contexto.
Por um lado, está mais do que evidente que a extrema-direita continua organizada e seguirá “militando” (nas ruas, por dentro das instituições do Estado, nas redes sociais etc.) para contaminar mais e mais pessoas com suas ideologias reacionárias e atacar todos e quaisquer direitos democráticos, inclusive os que dizem respeito aos setores historicamente marginalizados.
Por outro, por mais sinais que emita no sentido de se colocar ao lado destes mesmos setores, não há garantia alguma de que o governo da Frente Ampla, em função de suas alianças e compromissos com a conciliação de classes (inclusive com setores descaradamente conservadores), irá servir como um dique eficiente para barrar estes ataques, consolidar os direitos conquistados e, muito menos, garantir os avanços que precisamos e merecemos.
Aliás, não é difícil prever o cenário mais provável diante desta situação. A “direita” certamente continuará pregando contra as “ideologias de gênero”, em defesa da família e dos valores cristãos; esbravejando contra o “mimimi” e a “vitimização” de negros e mulheres, negando sequer a existência do racismo e do machismo; e atacando povos originários, nordestinos, quilombolas etc., em defesa de um suposto “progresso” e de uma “civilização” à sua imagem e semelhança.
Enquanto isto, o governo irá continuar dando declarações de “boas intenções” e até poderá adotar medidas pontuais, seja para tentar satisfazer as enormes expectativas que alimentou em relação ao tema ou pressionado pelos movimentos.
Uma previsão que não tem nada a ver com exercício de futurologia, mas, sim, com a análise dos governos petistas anteriores. Mas, com importantes diferenças, a começar pela profundidade da atual crise do capitalismo, que lhes dá ainda menos margem para fazer concessões, passando pelo fato de que, hoje, suas atuais alianças e compromissos com a burguesia são muito mais conservadoras e profundas do que no passado.
A questão, entretanto, é como ficarão as LGBTI+, negros(as), mulheres, indígenas etc. no meio desta história. Por exemplo, como será possível para as LGBTI+ não só reverter a oposição à união civil, mas também garantir seus direitos e fazer avançá-los?
A resposta não é simples. Mas, com certeza, precisa ser construída para além desta polarização entre a extrema-direita e Frente Ampla, que, apesar de real, é apenas a aparência distorcida do verdadeiro problema a ser encarado: a forma como, sob o capitalismo, as ideologias opressivas e reacionárias, impulsionadas pela burguesia e seus interesses de classe, contaminam os “de baixo”,
Algo que, inclusive, transparece em outro índice levantado pelo PoderData. Cruzando o apoio ao “casamento” LGBTI+ e ao atual governo, verificou-se que dentre os que apóiam a Frente Ampla, 61% são favoráveis ao direito; ao mesmo tempo em que 60% dos que se opõem a Lula-Alckmin são contrários. Ou seja, enquanto 40% daqueles que não votaram em Lula são aliados neste debate; dentre seus próprios apoiadores, outros 40% se mantém no campo “conservador”.
Em síntese, é um tremendo equívoco pensar, como querem muitos dos apoiadores de Lula, que todos e todas que votaram na Frente são aliados na luta contra a opressão (e a LGBTIfobia, em particular); da mesma forma que é um erro deduzir que todos os eleitores e eleitoras de Bolsonaro são militantes da extrema-direita e nossos “inimigos mortais”. Isso é um reducionismo que não serve pra nada nem bate com a realidade.
Como também é um enorme erro acreditar que o “pleno vigor” do Estado de Direito ou as instituições da democracia burguesa são garantias de que nossos direitos serão assegurados. E isto é assim porque, na verdade, vivemos sob uma “ricocracia” que assegura o controle do Estado e suas instituições a uma ínfima minoria que há muito se esqueceu da promessa de “liberdade, igualdade e fraternidade” que levou sua classe ao poder, simplesmente porque a opressão favorece seus interesses.
A oposição aos direitos das LGBTI+ tem raízes nas instituições da democracia burguesa
A própria história da regulamentação do “casamento” LGBTI+, bem como da criminalização da LGBTIfobia e outras reivindicações do movimento, é exemplar disto e de como nossos direitos só podem ser arrancados na luta e, mesmo assim, sua efetiva implementação fica à mercê daqueles que controlam o poder. Uma história que, ainda, diz muito sobre como a conciliação de classes afastou o PT de nossas bandeiras históricas, mesmo que o partido de Lula continue dizendo que as empunha.
Como foi destacado pelo portal JOTA, em reportagem publicada em 28/06/2021, desde a chamada redemocratização nem um único dos cerca de 50 projetos que tramitaram nas duas casas do Congresso (Câmara e Senado) foi sequer encaminhado para votação, tendo caducado ou sido engavetados pelas comissões temáticas e/ou seus relatores. O mesmo que aconteceu com outros 45 projetos apresentados em Assembléias Legislativas estaduais.
A maioria destes projetos referia-se à criminalização da LGBTIfobia, mas também havia proposições voltadas para sanções contra discriminação e a violência LGBTIfóbicas nos espaços esportivos, formação de bancos de dados sobre a comunidade LGBTI+, capacitação no mercado de trabalho, e regulamentações voltadas para a Educação e a Saúde, dentre outros temas.
O fato é que vários destes projetos já poderiam ter ajudado a minimizar a marginalização, os problemas e sofrimentos enfrentados pela população LGBTI+ (particularmente das pessoas trans) e isto não ocorreu pura e simplesmente porque os parlamentares que representam os interesses da burguesia (de todos os seus setores, “progressistas” ou “reacionários”), muitíssimas vezes com o apoio dos reformistas que se dizem nossos aliados, a começar pelo próprio PT, simplesmente barraram o trâmite dos projetos.
A primeira proposição para a regulamentação da união civil homoafetiva, por exemplo, data de 2007. Já o chamado “Projeto de Lei João Nery”, que garantiria a autodeterminação das identidades e expressões de gênero, está perdido em alguma gaveta do Congresso desde 2013.
Não por acaso, o mais antigo deles foi apresentado em 2001 (e transformado no PLC 122, em 2006), propondo alterar a chamada Lei do Racismo e incluir a discriminação por gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero e a criminalização de práticas que violassem este princípio.
Vários destes projetos foram bloqueados diretamente pela ação dos parlamentares das bancadas religiosas fundamentalistas e conservadoras ainda nas comissões. Mas, a trágica história do mencionado PLC 122 é particularmente reveladora, tanto do funcionamento da democracia burguesia quanto em relação ao beco sem saída construído pela perspectiva cada vez menos reformista e mais conciliatória do PT.
Apresentado pela bancada petista em 2001 (como nome PL 5003), em função da forte pressão do movimento LGBTI+, o projeto, já modificado, chegou a ser aprovado no plenário da Câmara, em 2005, sendo, então, encaminhado para o Senado, onde foi renomeado como PL 122.
Daí pra frente, a história só foi ladeira abaixo, empurrada fundamentalmente por obra e vontade do próprio PT, sempre sob a farsesca justificativa de que é “melhor uma reforma mínima do que nenhuma”, mas, essencialmente, para garantir a tal governabilidade.
Primeiro, ficou rodando e sendo alterado nas mãos de senadores petistas por mais de cinco anos. Neste período, vale lembrar, uma das relatoras, a então petista Marta Suplicy (eleita com o título de “madrinha das LGBTI+”), chegou a fazer um acordo espúrio com membros da Bancada Evangélica, como o famigerado e corrupto Marcelo Crivella (sobrinho de Edir Macedo), que desfigurou completamente a proposta e só não foi pra frente, porque gerou raivosos protestos país afora.
Em síntese, o acordo-traição propunha que a lei que deveria discriminar e criminalizar a LGBTIfobia não se aplicaria “à manifestação pacífica de pensamento decorrente da fé e da moral fundada na liberdade de consciência, de crença e de religião”.
Como se soube mais tarde, esta proposta escandalosa era parte de acordos tão asquerosos quanto, mas ainda mais amplos, que estavam sendo feitos nos gabinetes da então presidente Dilma Rousseff com a Bancada da Bíblia e que resultaram na retirada definitiva do projeto, além do veto ao chamado “kit anti-homofobia” (que seria usado como material pedagógico nas escolas).
Negociatas que tiveram como pano de fundo a retirada da assinatura de vários deputados de um pedido pela instalação de uma CPI para investigar o enriquecimento ilícito de seu ex-Ministro da Casa Civil Antonio Palocci e culminaram na absurda aprovação do racista, machista e LGBTIfóbico pastor Marcos Feliciano para a Comissão para a Comissão de Direitos Humanos da Câmara.
União civil entre LGBTI+ foi conquistada na marra, não pelas leis
Como reflexo de tudo isto, o fato é que, até hoje, não existe uma legislação específica sobre a “união homoafetiva” no Brasil. Depois de décadas de lutas, sua legalidade foi estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em maio de 2011, quando, mais uma vez, pressionado pelas lutas (mas, também, constatando o óbvio, já que era impossível negar a realidade vivida por milhares de casais LGBTI+), o Supremo alterou o entendimento do Código Civil de que a família só é formada por uma mulher e um homem.
Contudo, foi somente em 2013 que o Conselho Nacional de Justiça aprovou uma norma que garantisse aos casais homoafetivos o direito de se casaram no civil e proibisse juízes a tabeliães a se recusarem em registrar as uniões. E apenas em 2018 que o STF decidiu equiparar os direitos a herança de uma união estável homossexual com a de um casamento civil hétero.
Mesmo assim, país afora, cartórios e outras instâncias do judiciário continuaram (e continuam) criando todo tipo de obstáculos para a realização da “união civil”, o que, inclusive, obrigou o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) a votar, em dezembro de 2022, uma nova medida, tornando inconstitucional que membros do MP façam qualquer tipo de discriminação em relação à identidade de gênero ou orientação sexual daqueles que querem legitimar sua união diante do Estado.
O texto foi votado depois de mais uma onda de protestos, quando, em setembro de 2020, o MP de Santa Catarina, e 2020, tentou impedir que as uniões homoafetivas fossem reconhecidas. Aliás, não apenas “tentou”, mas, na prática, impediu a emissão de habitações de casamentos.
Em 2019, por exemplo, todas as 46 habilitações de casamentos homoafetivos de Florianópolis foram impugnadas, principalmente através da figura do promotor Henrique Limongi, que usou como justificativa a Constituição Federal de 1988, que, por nunca ter sido alterada pelo Congresso, determina que “é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.
Um exemplo evidente de como é a própria “democracia” que abre as “brechas” necessárias para que a burguesia e seus representantes nos poderes Legislativo, Judiciário, bem como nas demais instituições públicas e privadas, continuem alimentando a discriminação e os preconceitos que, inevitavelmente, reverberam na cabeça da população.
Preconceitos e discriminação só podem ser enfrentados no “campo” da luta de classes
Como será discutido no próximo artigo, tudo que diz respeito à criação e propagação das ideologias – bem como a possibilidade de questionar e romper com elas e construir contra-ideologias – tem a ver com o “campo” determinante na sociedade capitalista: aquele em que entra em jogo a luta de classes.
Como é também sob a ótica da luta de classes que devemos discutir como combater as ameaças de retrocessos, como a detectada pela pesquisa, e, no mesmo processo, lutar para conquistar a consciência daqueles que, neste momento, estando ou não apoiando a Frente Ampla, refletem as ideologias colocadas a serviço da opressão e confisco de direitos.
Evidentemente, esta batalha tem distintas “frentes” e formas, principalmente diante dos enormes estragos e da terra arrasada deixados por Bolsonaro. Por isso mesmo, em primeiro lugar, é preciso reconhecer que, hoje, há um setor consolidado da extrema-direta que jamais será convencido e diante do qual as únicas posturas possíveis são a organização, inclusive de nossa autodefesa (em aliança com a classe trabalhadora e as entidades dos movimentos), e a luta sem tréguas, com o objetivo de derrotá-lo completamente.
Contudo, não estamos dentre aqueles que acreditam que todos os eleitores e eleitoras de Bolsanaro estejam irremediavelmente “perdidos” nem que todos os que votaram em Lula sejam nossos aliados (como a própria pesquisa demonstrou). Por isso mesmo, disputar a consciência de cada um destes brasileiros é parte das batalhas que temos pela frente.
Uma disputa na qual, infelizmente, a própria Frente Ampla pode jogar contra, fundamentalmente em função de suas alianças que, além mantê-la acorrentada a banqueiros, empresários, latifundiários e o imperialismo internacional, já fizeram, por exemplo, com que Lula assinasse, ainda no processo eleitoral, a “Carta Compromisso aos Evangélicos”, prometendo respeitar os “valores cristãos e da família”. O que, aliás, já repercutiu na posse, quando as cores do arco-íris foram proposital e descaradamente invisibilizadas na ultrasimbólica passagem da faixa presidencial.
E como Marx nos ensina que a História pode se repetir como farsa ou como tragédia, o resultado disto pode ser tanto o fortalecimento da extrema-direita, pela própria omissão do governo, quanto a decepção daqueles e daquelas que têm expectativas de mudanças.
Algo que, lamentavelmente, não seria uma novidade. Afinal, poderíamos citar uma infinidade de dados que demonstram como o machismo, a LGBTIfobia, o racismo, a xenofobia etc. não só correram soltas nas últimas décadas, com a manutenção do genocídio da juventude negra, terríveis casos de feminicídio e a permanência do Brasil no vergonhoso posto do país que mais mata LGBTI+ no mundo, inclusive sob as administrações petistas.
É exatamente por isso que temos certeza que o único caminho para garantir direitos, de forma plena e permanente, e, de fato, conquistar liberdade, igualdade e justiça, é aquele que nos conduz à tomada do poder pela classe trabalhadora e a construção de uma sociedade em que explorados(as) e oprimidos(as) governem através de conselhos que garantam não só o acesso à riqueza que produzem, mas também o respeito à diversidade que nos caracteriza.