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Neste ano de 2025, não desejo a você a paz nem a felicidade hipócritas do capitalismo

Diego Cruz

31 de dezembro de 2024
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Foto: Romerito Pontes

Passagens de ano são momentos tidos como encerramento de um ciclo e o início de outro. São, de certa forma, comemorações cercadas por uma aura ilusória. Tendências que se desenvolviam não mudarão pela simples troca da folha de um calendário. Mas o grito, os abraços e o estampido da champagne, ressoam a esperança de um futuro melhor.

Esperança. O Aurélio define essa palavra como um “ato de esperar; expectativa de obter um bem desejado. Aquilo que se espera ou deseja. Sinônimo de confiança“. O clichê e o hábito, tidos como um ato de educação, e por que não, de afeto, nos sugere desejar um “feliz ano novo, repleto de saúde, paz e alegria” à família e aos amigos.

Confesso, no entanto, que essas palavras não me fazem muito sentido num momento em que os pequenos corpos de 14.500 crianças assassinadas pelo Estado de Israel estão empilhados no inferno que se tornou Gaza. Quando Trump assume a presidência da maior potência imperialista prometendo deflagrar uma cruzada contra os imigrantes, as mulheres, negras e negros, LGBTI’s e todo e qualquer grupo tido como “minoria”. Quando a crise climática provocada pelo capitalismo predatório ameaça a própria existência da humanidade.

No Brasil, o governo Lula acabou de aprovar um pacote que ataca o salário mínimo e direitos básicos justamente sobre os mais pobres, como o BPC e o abono salarial. Enquanto, por outro lado, aumenta a taxa de juros que, por si só, já vai representar uma elevação nos gastos de sete a oito vezes maior do que vai economizar em cima da população mais miserável. 

A violência policial, aliás, um termo que precisamos redefinir, avança de forma avassaladora. Não se trata só de “violência”, é um morticínio, um genocídio espraiado por inúmeros “casos isolados” contra, sobretudo, a juventude pobre  e negra. Não há esperança para o jovem Matheus Simões, um entregador de 21 anos assassinado em fevereiro pela polícia na Brasilândia, região norte de São Paulo, com um fuzil perfurado em seu pescoço. Não há esperança para as “Mães de Paraisópolis”, cujos filhos foram massacrados pela PM num baile funk em 2019. Mães que passaram mais um Natal, e passarão esta virada do ano sem seus filhos.

Peço agora um pouco de paciência para uma regressão, talvez, inusitada. Vamos retroceder algumas décadas. Nunca compreendi muito bem o testamento deixado por Trotsky em 1940, pouco antes de seu assassinato por um agente de Stálin. Perseguido, caluniado, tendo a família dizimada pelo stalinismo e já no início da guerra mais sangrenta da história, o velho dava seu testemunho mais contundente de esperança. 

Minha fé no futuro comunista da humanidade não é menos ardente; em verdade, ela é hoje mais firme do que o foi nos dias de minha juventude (…) Sejam quais forem as condições de minha morte, morrerei com uma fé inquebrantável no futuro comunista. Esta fé no homem e em seu futuro dá-me, mesmo agora, uma tal força de resistência como religião alguma poderia me fornecer.” (leia na íntegra aqui)

Como um revolucionário marxista, lúcido, consciente da sua situação e do mundo, poderia expressar tamanha confiança em meio a tantas desgraças? 

Posso estar errado, mas uma pista talvez tenha sido dada pelo próprio, quatro décadas antes. Num texto escrito em 1901, um jovem Trotsky discorria sobre as expectativas do novo século que se apresentava.

Numa espécie de ensaio literário, um tanto despretensioso, Trotsky classifica os vários tipos de “pessimismos” e “otimismos” que se observavam diante da chegada do Século XX. Um dos tipos descritos é bem interessante, e vale a pena transcrevê-lo aqui. Seria o que ele chama de  “pessimista absoluto”.

“O pessimista absoluto é o espírito da negação, o espírito da dúvida, um produto de momentos históricos difíceis, quando o porvir não é claro, e o futuro ‘ou é vazio ou é sombrio’, quando a desarmonia social atinge uma tensão suprema… Esse pessimismo pode criar um filósofo, um poeta lírico, mas não pode criar um militante.”

Creio que muitos de vocês já identificaram esse tipo por aí, em pleno Século XXI. Pena que nem filósofos ou poetas são mais capazes de produzir.

Mas, contrapondo-se ao pessimista absoluto, havia o “otimista absoluto”, orientado por uma espécie de fé mística e, oportunisticamente, sobrenatural. Espero aqui, de braços cruzados, as graças de uma força divina.

Finalmente, Trotsky define o “otimista do futuro”. Este, não idealiza ou nutre simpatia pelo passado como um nostálgico, mas “o passado lhe interessa apenas na medida em que dele nasceu o presente, e o presente, na medida em que dá um ponto de apoio para a criação do futuro“. E esse futuro se apresenta como algo a ser construído, a partir da sua própria atividade. “– Dum spiro, spero! Enquanto respirar, terei esperança! – exclama o otimista do futuro.

E a questão é que esse tal otimista do futuro se depara com o Século XX numa situação não menos dramática que a que vivemos hoje, com fome, guerras e massacres em todo o mundo. Ele termina, então, seu pequeno ensaio com um diálogo imaginário entre nosso otimista do futuro e novo século ameaçador:

“– Morte à utopia! Morte à fé! Morte ao amor! Morte à esperança! – troveja aos disparos dos fuzis e ao retumbar dos canhões o século vinte.

– Renda-se, patético sonhador! Eis-me, o seu tão esperado século vinte, o seu “futuro”!…

– Não! – responde o otimista insurreto: – você é só o presente!”

Nesse texto literário de um jovem Trotsky, vemos como ele percebia a realidade. “Você é só o presente!”. Ou seja, ele já concebia uma dinâmica dialética do processo histórico, e o porvir, o futuro, a ser construído, sob as bases da realidade atual, a partir da sua própria ação.

Quatro anos depois, esse jovem com anseios literários liderava o Soviet de Petrogrado na Revolução de 1905 e, década e meia depois, junto a Lênin, mudava o curso do mundo na primeira revolução socialista da História.

Voltemos agora ao seu testamento. A fé inabalável do já velho Trotsky não expressava uma esperança idealista ou religiosa, mas sua confiança concreta, materialista e racional, já provada pela história, na estratégia revolucionária e socialista que, tomada pela classe operária, derrubaria o capitalismo e construiria um mundo em que Rosa Luxemburgo definira como um “mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres“. 

Desgraçadamente, sobreveio a catástrofe stalinista e, hoje mesmo, em meio à barbárie capitalista, pululam os “pessimistas absolutos” do Século XXI. Mas há também os otimistas do futuro, os que não se renderam ao “pessimismo da razão”, mas que, empunhando a bandeira da independência de classe que aqueles deixaram pelo chão, e da revolução socialista em todo o mundo, carregam o direito à esperança. O ano de 2025 nos olha e ameaça: “eis aqui seu futuro”. Nós respondemos: “Não, você é só o presente!”.

Termino esta estranha coluna de final de ano, não desejando paz e felicidades a todos. Desejo justiça e vingança às crianças e ao povo palestino. Desejo justiça a Matheus, aos jovens de Paraisópolis e todos os meninos negros e pobres trucidados pela polícia. Desejo que cada bilionário capitalista seja expropriado e tenha arrancado cada centavo roubado da classe trabalhadora, e que a extrema direita volte ao lixo da história de onde nunca deveria ter saído.

A você que ainda está lendo este texto, também não vou desejar a felicidade hipócrita estampada nas mensagens cínicas das grandes empresas. O capitalismo nos obriga a performar uma falsa felicidade enquanto trabalhamos em jornadas 6×1 e convivemos com a barbárie cotidiana. E depois nos entope de remédios porque, afinal, devemos nos contentar com essa realidade, e sorrir em selfies no Instagram.

Desejo, sim, que você tenha momentos genuinamente felizes com seus camaradas, amigos, e familiares. Que construa memórias com seus filhos, seus pais, irmãos. E que viva este ano de 2025 tão intensamente quanto seja possível. Apesar do capitalismo.

E que tenhamos forças neste novo ano para seguir na luta pela revolução e o socialismo, pois, parafraseando mais uma vez a Rosa vermelha: “Há todo um velho mundo ainda por destruir e todo um novo mundo a construir, mas nós conseguiremos, jovens amigos, não é verdade?“.

Sim, Rosa, conseguiremos. O velho estava certo.

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