Na contramão do marxismo revolucionário, o stalinismo sempre tratou as LGBTIs como “doentes”
Secretaria Nacional LGBTI+ do PSTU
No dia 29 de janeiro, “Dia Nacional da Visibilidade Trans e Travesti”, a Unidade Popular pelo Socialismo, a UP, publicou um texto em seu site e fez uma postagem no Twitter onde desenvolve uma concepção cientificamente ultrapassada e essencialmente transfóbica. Debate que tratamos no texto “No ‘Dia da Visibilidade Trans e Travesti’, Unidade Popular (UP) defende posição transfóbica sobre identidade de gênero”.
Agora, neste novo texto, damos sequência a este debate mostrando que a posição da UP está relacionada à tradição histórica à qual essa organização política se filia e continua ecoando: a tradição stalinista.
Os avanços com os bolcheviques
Logo após a Revolução Russa, em outubro de 1917, os bolcheviques transformaram em terra arrasada toda a herança preconceituosa, fundamentalista e opressiva que reinava no sistema czarista, particularmente em relação à sexualidade.
“A atual legislação sexual da União Soviética é obra da Revolução de Outubro. Esta Revolução é importante não somente como fenômeno político que garante o governo político da classe operária, mas também porque as revoluções que emanam desta classe chegam a todos os setores da vida”, escreveu, em 1923, Grigori Batkis, médico e diretor do Instituto Moscovita de Higiene Social.
O impacto desta revolução em relação à homossexualidade e, inclusive, a transexualidade, foi sintetizado pela militante LGBTI e trotskista Sherry Wolf, no livro “Sexualidade e Socialismo: história, política e libertação LGBT” (2009).
“Em 1917, todas as leis contra a homossexualidade foram derrubadas pelo novo governo revolucionário, juntamente com o resto do código criminal czarista. Sexo consensual foi declarado como uma questão privada e os gays não somente eram livres para viver como eles/elas quisessem sem a intervenção do Estado, mas as cortes soviéticas também aprovaram o casamento entre homossexuais e, de forma extraordinária, foram reportadas até operações para mudança de sexo nos anos 1920.” (p. 89).
Além disso, como também foi documentado por Wolf, ainda no Exército Vermelho (comandado por Leon Trotsky), “mulheres que usavam roupas masculinas (…), geralmente assumindo um papel masculino, receberam postos de autoridade” e as autoridades bolcheviques defendiam que elas “deveriam, legalmente, assumir nomes masculinos e viver como homens” (p. 97).
Isto tudo, no entanto, foi completamente varrido pela contrarrevolução stalinista, logo após a morte de Lênin e a ascensão de Stalin ao poder. Já em 1934, o Código Penal da ex-URSS passou a criminalizar envolvimentos sexuais consentidos entre homens adultos e todas práticas distintas da heterocisgeneridade começaram a ser identificadas como sinais da “decadência burguesa”, da “perversão fascista”, contrária à “decência proletária” e, mais tarde, como consta na edição de 1971 da Grande Enciclopédia Soviética, uma “perversão sexual” ou “atração antinatural”.
No interior da ex-URSS, tudo isto resultou numa criminosa perseguição às LGBTIs, provocando algo em torno de 60 mil condenações, apenas entre 1934 e 1980. E mais: essas concepções opressivas e criminosas reverberaram por todo “bloco comunista”, como na Cuba governada por Fidel Castro que defendeu o “caráter patológico dos desvios homossexuais”, o que resultou na proibição da filiação no PC, na demissão dos cargos público, na prisão, tortura, envio para campos de trabalho forçado e exílio de milhares de LGBTIs.
Esta perseguição às LGBTIs não foi algo isolado. Foi acompanhada de campanhas como a do “volta ao lar”, imposta às mulheres, da opressão às culturas e autodeterminação das nações soviéticas, ao abandono e traição da luta antirracista, dentre muitos outros processos de burocratização e congelamento da revolução mundial. Em suma, o stalinismo foi uma ruptura com Marx, Engels, Lênin e toda tradição do marxismo. Muitos revolucionários se contrapuseram a estas políticas, mas inúmeros, assim como Trotsky, foram perseguidos, presos e executados exatamente por isto. E é esta história que UP omite para defender Stalin.
Por isso, inclusive, não é um acaso da História que alguns dos países mais violentamente LGBTIfóbicos da atualidade são exatamente aqueles em que, depois de promoverem a restauração capitalista, setores da própria burocracia stalinista se encastelaram no poder, a exemplos da Rússia, da Hungria, da Polônia e da República Tcheca.
A UP comprova que não há como romper com o passado sem romper com o stalisnimo
Depois da divulgação dos crimes de Stalin, ainda nos anos 1960, e particularmente após a restauração capitalista pelas burocracias stalinistas, muitos de seus partidos satélites mundo afora fizeram esforços mirabolantes para se afastarem da tradição stalinista sem, contudo, romperem com seus métodos e perspectivas teóricas, políticas e programáticas.
Ou seja, mantiveram a postura essencialmente contrarrevolucionária do stalinismo, seja pela busca incessante pela conciliação de classes e defesa da possibilidade de uma tal “revolução por etapas” ou do “socialismo em um só país”, seja pela preservação e propagação dos discursos e práticas que jogam contra as lutas e a verdadeira libertação de LGBTI+, negros(as), mulheres e demais setores oprimidos.
E é essa a história da própria UP e por isso, também, a postagem não foi somente um “deslize”. Essa nota reafirma as posições retrógradas destas organizações. E para compreendermos os “porquês” é preciso entender a história da própria UP, cujas raízes estão fincadas numa ruptura, primeiro, com o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), depois do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e, por fim, do Partido Comunista Revolucionário (PCR).
Numa entrevista concedida a Hiro Okita, então militante da Convergência Socialista (um das organizações que deu origem ao PSTU), para o livro “Homossexualidade: da opressão à libertação” (1981, reeditado recentemente pela Editora Sundermann), o representante do jornal “A Hora do Povo”, editado pelo MR-8, fez uma declarações asquerosas para definir o que é homossexualidade para eles.
“É uma forma de masturbação. É uma forma de realizar, fantasiosamente, um desejo que na verdade não se realiza, gerando outros problemas como frustrações, narcisismo, que são manifestações de homossexualidade. No fundo, fundo, é uma doença, se doença é um desvio; uma doença psicológica basicamente (…). O que se verifica em todas as sociedades em decadência, no nazismo por exemplo, é o surgimento, a reprodução, da homossexualidade nas classes dominantes (…). Acho completamente errado (a organização dos homossexuais dentro de um partido), não tem futuro, pois o socialismo tende a acabar com a homossexualidade” (p. 96), declarou o militante do MR-8.
Seria desonesto e absurdo afirmar que a Unidade Popular mantém exatamente esta mesma perspectiva. Mas, ao contrário de Jones Manoel, não somos de “passar pano” para posturas reacionárias. Primeiro, porque sabemos que até mesmo a motivação para o “esforço” (nem sempre bem sucedido, como é possível ver em supostos “deslizes”) em se distanciar das concepções stalinista não está numa verdadeira ruptura de organizações como a UP, o PCdoB e o PCB com esta tradição, mas, sim, por tentarem se aproximar dos movimentos de opressão, sem romper com esta mesmíssima tradição.
Nas últimas décadas, stalinistas mundo afora, depois de traírem sistematicamente as lutas dos oprimidos (sendo responsáveis, inclusive, por amplos setores dos movimentos de negros/as, mulheres, LGBTI+, indígenas etc., até hoje, verem o marxismo e o comunismo com desconfiança ou violenta antipatia), embarcaram na onda do “revisionismo”, que tenta apagar e refazer sua própria história, dando novos contornos para uma perspectiva que, inevitavelmente, joga contra o verdadeiro combate à opressão.
No Brasil e no mundo, esta História é longa e tem várias vertentes. Nos anos 1950 e 1960, por exemplo, revestiram sua oposição aos nossos direitos com um discurso-farsa de que a luta de “classes” se opunha ao combate à opressão, traindo todas as elaborações do marxismo revolucionário. Jogaram no lixo da História, as elaborações tanto de Marx, quanto de Lênin, Krupskaya, Trotsky, C.L.R. James e tantos outros e outras que defenderam a necessidade de uma luta combinada, permanente, mesmo defendendo, sempre, que, numa sociedade de classes, a completa libertação dos oprimidos está essencialmente condicionada à aliança destes setores com a classe trabalhadora, em confronto aberto com a burguesia, e à tomada do poder pelos que produzem as riquezas.
Uma postura que não tem nada a ver com uma tradição que, para além dos muitos crimes cometidos, por exemplo, afastou Clóvis Moura do PCB, em função de sua defesa da luta de “raça e classe”, fez com que os stalinistas fossem, durante décadas, contrários às ações afirmativas (como às cotas étnico-raciais) e, em relação às LGBTI+, contribuíssem diretamente para nossa opressão, discriminação e marginalização.
Hoje, os herdeiros e continuadores desta tradição, como a UP, o PCB e o PC do B, em maior ou menor grau, podem até fazer uma leitura supostamente “crítica” do stalinismo. No entanto, não basta proclamar que o stalinismo cometeu erros, ou até justificá-los pela “situação objetiva” e o contexto histórico em que estas decisões foram tomadas.
Para nós, do PSTU, é preciso combater o stalinismo e todo retrocesso contrarrevolucionário que este movimento significou para nossa classe. Não é possível construir uma sociedade socialista sem as LGBTIs e os setores oprimidos da classe trabalhadora. Essa não pode ser uma declaração formal de apoio “passivo” aos setores oprimidos, nem é uma luta “para depois”, quando as condições “econômicas” estiverem resolvidas. É imprescindível combater a opressão desde já, para unir a classe trabalhadora na luta conjunta pela revolução socialista.
A defesa das vidas trans é uma tarefa de toda a classe trabalhadora
Como estamos falando do peso das tradições nas políticas e atuação das organizações no presente, ao contrário das provocações rasteiras de Jones Manoel, nos orgulhamos de termos o Trotskismo como referência.
E não porque nossa corrente histórica não tenha cometido erros e ainda tenhamos muito pra corrigir e no que avançar. Mas, porque, independentemente disto, nossa corrente não mediu esforços para manter a essência da tradição do marxismo revolucionário, a começar pelo entendimento de que um dos papéis fundamentais da opressão — como escreveu Marx ainda nos anos 1870 — é, ao mesmo tempo, potencializar a superexploração daqueles e daquelas que são historicamente marginalizados e dividir a classe trabalhadora, minando sua capacidade de luta. Essa é uma prática conscientemente estimulada pela burguesia, através das ideologias que propaga por todos os meios ao seu alcance — como igrejas, sistema educacional, meios de comunicação etc. —, e que, por isso mesmo, deve ser encarada como parte da luta de classes.
Foi isto que fez com que nós, do PSTU, aqui no Brasil, ainda no final dos anos 1970, contribuíssemos, através da Convergência Socialista (CS), para a fundação de entidades como o Movimento Negro Unificado (MNU) e o Somos: Grupo de Afirmação Homossexual, defendendo no interior destas entidades a necessidade de travarmos o combate contra a opressão com independência de classe e numa perspectiva socialista.
Por isto, também, desde da época da CS, mantemos Secretarias internas (de mulheres, negros e negras e LGBTI+) para podermos elaborar sobre nossas questões, fornecer formação política e teórica, dentro e fora do partido, e defendermos posições e um programa que, quando votado, é um patrimônio de toda nossa organização, defendido, com vigor e convicção, onde quer que atuemos e por toda nossa militância, independentemente de orientação sexual, identidade de gênero, raça ou etnia.
Hoje, é também esta convicção que motiva nosso repúdio à nota da UP. Em nada contribui para que as pessoas trans se aproximem de uma perspectiva revolucionária, que de fato as possa libertar. Pelo contrário. Aliás, em um de seus trechos, a nota resume o papel militante de pessoas trans comunistas a “fazer luta política e ajudar os companheiros e companheiras a entender sua condição”.
Para nós, de forma alguma, este deve ser nosso papel como militantes LGBTI+. Muito menos é isto que queremos de nossos companheiros e companheiras héteros e cisgêneros. O que precisamos é lutar, política e socialmente, para que as pessoas trans se vejam como parte da classe trabalhadora, e desenvolvam sua militância para esmagar esse sistema que as oprime e explora. E que os trabalhadores e as trabalhadoras como um todo entendam que não serão completamente livres enquanto classe – como também já foi dito em outros termos por Marx, Lênin e Trotsky – enquanto milhões de homens (sejam eles e elas trans, não-binários, gays, lésbicas ou bissexuais) tenham suas vidas e mortes condicionadas pela opressão.
O combate à LGBTIfobia — e em especial à transfobia — é a condição mínima para que a classe trabalhadora se unifique na luta pelo socialismo, por uma sociedade verdadeiramente livre. A luta das pessoas trans é uma luta de toda a classe trabalhadora e precisa ser defendida e fortalecida por todos os setores da nossa classe, porque só a construção, coletiva, de uma sociedade socialista, onde trabalhadores e trabalhadoras governem, manifestando livremente suas diferenças, sem que elas sejam transformadas (como faz o capitalismo) em desigualdades que nos distanciam da justiça, da liberdade, da igualdade ou da possibilidade de vivermos de forma digna e plena.