Entenda o por que Bolsonaro quer controlar STF
O início do segundo turno das eleições presidenciais foi tomado pela discussão sobre a proposta de aumentar o número de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). A proposta foi defendida pelo vice-presidente, agora senador eleito pelo Rio Grande do Sul, general Hamilton Mourão (Republicanos).
Não é só aumentar o número de cadeiras na Corte. Eu vejo que a gente tem que trabalhar em cima daquilo que são decisões monocráticas, em cima dos mandatos para os mandatários da Suprema Corte – eu acho que não pode ser algo até os 75 anos ou 10 ou 12 anos”, afirmou. “Isso deve ser discutido. E outra discussão que o presidente Bolsonaro colocou é a quantidade dos magistrados”, acrescentou.
Na sequência, o deputado federal Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo Bolsonaro na Câmara, defendeu a proposta de aumentar o número de ministros do Supremo dos atuais 11 para 16 integrantes. “É uma necessidade de enquadramento do ativismo do Judiciário”, justificou, sem esconder o objetivo do bolsonarismo.
O próprio Bolsonaro, em diversas entrevistas e lives nas redes sociais, também defendeu aumentar o número de ministros do STF. Até hoje, Bolsonaro indicou dois dos atuais 11 ministros do STF: Nunes Marques e André Mendonça. Caso seja reeleito, vai poder indicar mais dois em 2023.
No primeiro turno, o bolsonarismo conseguiu eleger várias figuras deploráveis para o Parlamento, especialmente para o Senado, onde PL terá 15 das 81 cadeiras na próxima legislatura, seguido pelo União Brasil (12) e outros partidos menores do Centrão que Bolsonaro pode alugar pela via do orçamento secreto para obter um maior controle do Congresso. Pelas regras constitucionais atuais, é o Senado que realiza as sabatinas e vota os candidatos à vagas de ministros ao STF indicados pela Presidência da República. Inclusive, pode votar até mesmo o de ministros da Corte, como defendem muitos bolsonaristas.
A repercussão negativa da proposta obrigou Bolsonaro a dizer que “não tem proposta nenhuma”, durante o debate presidencial realizado no dia 16 de outubro. Mas ninguém acredita em suas mentiras e sabe que seu verdadeiro projeto é instaurar um regime autoritário no país, várias vezes manifestado em dezenas de ameaças golpistas. Afinal, esperar o que de uma figura repulsiva que sempre defendeu a ditadura, os torturadores, a expulsão ou o fuzilamento de opositores e coisas do gênero! Um projeto que certamente pode contar com a fiel ajuda do Centrão, como comprova a tentativa de Arthur Lira em criminalizar pesquisas e impor pena de 10 anos a quem “errar” o resultado. Essa é só uma pequena demonstração da disposição dessa corja em seguir adiante com Bolsonaro e seu projeto de ditadura.
A última vez que o número de ministros do STF foi alterado foi durante a ditadura militar (1964-1985), período da história que Bolsonaro elogia e defende. A mudança foi uma manobra para que o Supremo tivesse 16 ministros, facilitando o controle da Corte pelos militares.
A proposta de Bolsonaro é gravíssima. Mas não pelo fato de ser um ataque à “democracia” em abstrato, tal como falam os articulistas da grande imprensa. Afinal de contas, essa é uma democracia burguesa, que serve aos ricos e poderosos. Todas as instituições da democracia burguesa servem à dominação de classe dos capitalistas (um ínfima minoria) sobre a classe trabalhadora (a esmagadora maioria). Nela diferentes frações ou setores da classe dominante governam se revezando no controle do aparato do Estado. Assim como o poder Executivo e o Congresso, o STF também serve à dominação burguesa. Recentemente, por exemplo, o STF cedeu ao lobby patronal e suspendeu Lei do Piso dos trabalhadores/as da Enfermagem. Se hoje estivéssemos diante de uma poderosa mobilização da classe trabalhadora, capaz de substituir o regime por outro muito mais democrático, como uma democracia operária, todas essas instituições não hesitariam um segundo sequer em lançar uma cruel repressão contra o povo.
No entanto, a democracia burguesa pressupõe a existência de liberdades individuais e coletivas: liberdade de organização, de manifestação, de expressão, de reunião etc. Essa é uma conquista extremamente importante, arrancada com muita luta pela classe trabalhadora. Quando Bolsonaro ameaça controlar ou fechar o STF, está querendo impor uma ditadura do capital, suprimindo as liberdades democráticas.
E isso não é algo que mereça indiferença. Para os trabalhadores, não é indiferente se há ou não liberdade para se organizar e lutar. Liberdade de imprensa, de organização política e sindical, de livre opinião e associação são fundamentais principalmente diante dos ataques aos direitos dos trabalhadores que se anunciam. É por isso que defendemos o voto crítico em Lula, para derrotar Bolsonaro e seu projeto autoritário. Mas alertamos: não se deve depositar nenhuma confiança em um eventual o governo Lula e seu projeto. A classe trabalhadora deve se preparar para lutar e defender suas reivindicações, na perspectiva de avançar num projeto socialista.
A crise do capital e da democracia dos ricos
A crise econômica mundial atual é a maior da história do capitalismo, mesmo comparada à famosa crise de 1929. A desvalorização das mercadorias, da capacidade produtiva, do valor, associada à destruição direta, é a via pela qual o capitalismo pretende superar sua crise. Isso requer a destruição e desvalorização da força de trabalho (resultando em desemprego, aumento da exploração e queda da renda), a liquidação de direitos sociais, a erosão inflacionária, a privatização de empresas públicas e a abertura de novas fronteiras para o capital voltar a acumular. Essa é a única via para os capitalistas conseguirem aumentar novamente suas taxas de lucros.
No entanto, a burguesia encontra enorme resistência para aplicar essas medidas quando enfrenta a classe trabalhadora em luta. A profunda crise da democracia dos ricos tem a ver com isso. Por décadas, partidos reformistas de esquerda ou partidos da direita tradicional se revezaram no poder aplicando todo um receituário neoliberal (em diferentes grau e escala) no sentido de viabilizar a taxa de lucro dos capitalistas. O resultado foi a ampliação da desigualdade social; segundo a Oxfan, o mundo tem 2.153 super-ricos que detêm uma riqueza maior do que outros 4,6 bilhões de pessoas.
Outro resultado foi o desgaste dos partidos tradicionais vistos como agentes diretos da aplicação desses planos e responsáveis pela piora das condições de vida. A emergência dos chamados partidos anticapitalistas em diversas partes do mundo foi uma resposta à deterioração dos partidos tradicionais, mas teve voo curtíssimo, pois rapidamente passaram a colaborar com o reformismo tradicional, sendo vistos com um “puxadinho destes” – vide Syriza (Grécia), Podemos (Espanha), Bloco de Esquerda (Portugal) e o PSOL no Brasil.
Nesse contexto emerge a chamada nova ultradireita, como Trump nos EUA, Bolsonaro no Brasil, Viktor Orbán, na Hungria, entre muitos outros, que em parte conseguem capitalizar o sentimento de rechaço ao regime com o discurso “contra todos que estão aí”, mas que, ao fim e ao cabo, servem para manter “tudo o que está aí”, isto é, criar melhores condições para o capital seguir acumulando, atacando os direitos sociais e aumentando a superexploração.
Para isso, dividem a classe trabalhadora com xenofobia, racismo e opressão. Ao mesmo tempo que seu “ataque ao sistema” é, na verdade, um ataque às liberdades democráticas. Querem adicionar características mais autoritárias ao regime político, mantendo alguma fachada “democrática”, para reprimir qualquer tipo de reação social e colocar na ilegalidade as organizações dos trabalhadores, criminalizando suas lutas.
A ultradireita e seu projeto autoritário
O bolsonarismo é parte do crescimento mundial da ultradireita, que recruta os setores mais desesperados da sociedade, especialmente nas classes médias em crise, para seu projeto. Uma vitória eleitoral de Bolsonaro o colocaria mais perto de concretizar uma mudança reacionária no regime. O controle do STF seria um passo importante nesse caminho, tal como fez o chavismo na Venezuela. Mas, ao contrário do que diz, é o próprio Bolsonaro o principal agente da “venezualização” do Brasil, ao distribuir milhares de cargos a militares de alta patente, aplicar uma política econômica que aprofundou a pobreza e a fome e, agora, com o seu projeto de controlar a Suprema Corte, tal como fez o regime venezuelano.
No entanto, seria mais adequado – inclusive ideologicamente – comparar o projeto de Bolsonaro ao seu homólogo europeu Viktor Orbán, o ultradireitista que governa a Hungria desde 2010.
Orbán é conhecido por sistematicamente atacar os migrantes e refugiados, LGBTIs e mulheres. “Não queremos nos tornar povos mestiços”, afirma. Defende a pena de morte, a “família tradicional” e os valores da Europa cristã. Também ataca os “globalistas” e a União Europeia, ao mesmo tempo que aceita seu dinheiro e o canaliza para os seus aliados corruptos e familiares. A União Europeia, por sua vez, apesar de todas as condenações formais, continua enviando dinheiro para seu governo, pois sabe que ele tem utilidade em deter o fluxo migratório para o continente.
Quando Orbán foi eleito em 2010, a Hungria estava mergulhada na crise econômica internacional. Havia uma crescente insatisfação com o partido socialista (na verdade, um partido socialista-liberal*) que estava no poder no momento do estouro da crise, e aplicava um programa econômico abertamente neoliberal. Ao mesmo tempo que fazia discursos reacionários contra migrantes, mulheres e LGBTs, Orbán realizou profundas modificações no regime que lhe asseguraram a reeleição por três vezes consecutivas, em 2014, 2018 e 2022.
Seu governo mudou a composição da Suprema Corte, implementou uma reforma eleitoral favorável ao seu partido, o Fidesz (Aliança Cívica Húngara), e restringiu a liberdade de imprensa. Desse modo, Orbán teve o caminho livre para aplicar sua política reacionária, xenofóbica e antioperária, mantendo uma fachada democrática com ritos tal como eleições periódicas.
As reformas constitucionais deram a Orbán a possibilidade de nomear mais juízes para a Suprema Corte, obtendo uma maioria alinhada com seu governo. Seu governo também reduziu o tamanho do Parlamento, modificou as regras de financiamento privado de campanha a favor de seu partido e reformulou e criou novos distritos eleitorais que são responsáveis pela eleição dos deputados. Essas novas regras favorecem imensamente Orbán. “As fronteiras desses novos distritos também parecem ser desenhadas a favor do Fidesz (…). Os distritos historicamente inclinados à esquerda foram divididos e misturados em distritos historicamente inclinados à direita, criando menos distritos onde os candidatos de esquerda têm relativamente certeza de vencer”, explica Kim Lane Scheppele, professora de sociologia de Princeton, em um artigo no New York Times. Vale a pena ler o seu artigo completo.
A reestruturação do sistema eleitoral ajudou Orbán a se manter no poder, mesmo com seu partido conseguindo um número menor de votos. Mas essa reformulação da legislação eleitoral também possibilitou um controle ainda maior do Parlamento. Por exemplo, quando a Corte constitucional derrubou as leis que criminalizavam o ato de ser um sem-teto, o Parlamento alterou a constituição para incluir o que a Corte havia rejeitado. Ou seja, na Hungria não ter um lar e morar na rua é um crime.
Na pandemia, aproveitando-se dos poderes ditatoriais votados pelo Parlamento, Orbán aproveitou para fazer uma série de detenções de dirigentes da oposição. Várias pessoas foram presas em suas casas e detidas por horas. Baseados na “legislação de emergência” que pune quem publica supostas “informações falsas”, “comentários alarmistas” ou por “colocar em perigo o público”, a polícia monitorou e reprimiu continuamente os opositores e a circulação de informações.
A censura à imprensa não é exercida diretamente, mas o governo dificultou a vida dos jornais críticos, suspendendo as verbas de publicidade estatal e impondo taxações aos não alinhados ao governo. Em 2017, um estudo da Universidade Centro-Europeia, em Budapeste, apontou que cerca de 90% dos veículos de imprensa húngaros são hoje de propriedade direta do Estado ou mantidos por oligarcas ligados ao Fidesz.
Além disso, o governo realizou expurgos massivos contra o funcionalismo público. Não se sabe ao certo o número de demissões, mas juízes, professores, técnicos, entre outros funcionários que esboçaram desacordo com o governo, foram substituídos por aliados. “Clientelismo”, “favoritismo”, “nepotismo”… são a norma do preenchimento dos cargos públicos no país.
Em face do novo ciclo de crise econômica, Orbán aprovou uma lei que flexibiliza a carga horária e o pagamento das horas extras no país, chamada de “lei da escravidão”. A medida provocou greves e mobilizações, levando às ruas os maiores contingentes contrários a Orbán desde o início de seu governo. De acordo com a lei, os trabalhadores húngaros agora podem cumprir até 400 horas extras anuais (antes eram 250), e os empregadores podem adiar o pagamento por até três anos.
Além da repressão direta, o governo promoveu uma campanha de difamação e calúnias contra os protestos sociais. Orbán reagiu fomentando ainda mais a xenofobia, utilizando o temor dos húngaros em relação aos muçulmanos para reconquistar apoio em um momento em que o Fidesz vinha perdendo votos em eleições regionais. Também respondeu aos protestos dizendo que tudo seria uma “conspiração” financiada pelo bilionário George Soros, ou pelas “forças” que querem inundar a Hungria de “perigosos” imigrantes.
Derrotar Bolsonaro nas eleições e nas lutas
É preciso derrotar Bolsonaro neste segundo turno e impedir o avanço do seu projeto autoritário. Uma vitória do governo o deixará mais próximo de tentar impor um controle sobre o Supremo e o Judiciário; de manipular o sistema eleitoral através da fraude do voto impresso para se perpetuar no poder; de aprovar medidas contra a liberdade de imprensa e criminalização dos movimentos sociais e sindicais, qualificando-os como “ameaças terroristas”.
Medidas que deixarão o governo em melhores condições para avançar na destruição da legislação trabalhista; no ataque ao funcionalismo com a reforma administrativa; na destruição e entrega da Amazônia para garimpeiros, multinacionais e o agronegócio; na abertura das Terras Indígenas à mineração; na pilhagem e privatização das nossas riquezas e na repressão das lutas dos trabalhadores e dos movimentos sociais.
Além disso, o governo ainda poderá se utilizar de grupos armados fascistas, ampliando o seu armamento, para atacar greves e mobilizações, o que intensifica a urgência e a necessidade dos trabalhadores, camponeses e indígenas organizarem a sua autodefesa.
A crise econômica e social tende a se ampliar no próximo ano, segundo a previsão dos próprios organismos do capital. O incêndio silencioso que corrói a sociedade pode explodir num incêndio de proporções imprevisíveis, e Bolsonaro não hesitará em promover uma brutal repressão contra o povo, utilizando meios ditatoriais, grupos fascistas e até mesmo as Forças Armadas para mergulhar o país num banho de sangue e impedir que seja apeado do poder.
Derrotar Bolsonaro nas eleições é um golpe contra esse projeto. Por isso que defendemos o voto crítico em Lula, para derrotar Bolsonaro e seu projeto autoritário. No entanto, é preciso alertar que nenhuma eleição vai derrotar definitivamente o bolsonarismo, produto da crise do capital e da democracia dos ricos. Não será derrotado com a reedição do projeto da Frente Ampla, em torno a Lula-Alckmin, de governos burgueses de conciliação de classes e de administração do capitalismo em crise. Ao contrário, essa é a via que leva inevitavelmente ao fortalecimento do bolsonarismo, como demonstram exemplos do recrudescimento da ultradireita nos EUA, Peru, Chile, Argentina, entre outros países. Precisamos superar esse sistema, acabar com as raízes que deram origem à ultradireita, numa batalha pelo socialismo, com independência da classe trabalhadora da burguesia e com o avanço da mobilização, da consciência e da sua organização.
* O social-liberalismo, ou “Terceira Via”, foi o movimento em que os partidos socialistas da Europa, na segunda metade dosanos 1990, apresentaram um projeto e um programa econômico, social e político, supostamente equidistante tanto do liberalismo quanto do socialismo. Abraçado pelo então primeiro-ministro britânico, Tony Blair, o projeto ganhou a adesão do então chanceler alemão Gerhard Schroeder e dos primeiro-ministros Wim Kok, da Holanda, e Massimo D”Alema, da Itália. O social-liberalismo representou a incorporação do neoliberalismo por tradicionais partidos de orientação social-democrata: respeito aos “mercados”, adesão às políticas de ajuste estrutural do FMI e Banco Mundial, defesa programática das reformas trabalhistas e previdenciárias, entre outras medidas.