Mulheres

Machismo e estupro marital no programa “Casamento às cegas”

Shirley Raposo

15 de julho de 2024
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Reprodução Netflix

Na última quarta-feira, 10, foi ao ar pela Netflix o episódio “Reencontro” do reality show “Casamento às cegas”. É um reality show onde homens e mulheres buscam relacionamentos sem se verem. Eles conversam em cabines isoladas, se encontram pessoalmente pela primeira vez após o noivado e, até o final do programa, devem decidir se querem ou não se casar. O programa exibido recentemente revelou se os casais formados permaneceram juntos após um ano. Contudo, uma denúncia de abuso marcou o episódio: o doloroso relato da participante Ingrid Santa Rita. Casada com Leandro Marçal no reality, Ingrid revelou, inicialmente, que o casal se “separou devido a atitudes desrespeitosas dele”.

Em um vídeo divulgado na quinta-feira, 11, Ingrid afirmou ter sido estuprada diversas vezes por Leandro. “Não conseguia reagir. Sempre me vi como uma mulher muito bem resolvida, pensava que isso nunca aconteceria comigo, que, se acontecesse, seria na rua. Mas estava acontecendo na minha casa“, desabafou. Segundo Ingrid, Leandro tentou praticar sexo oral, com as mãos e com penetração enquanto ela dormia. “Eu sempre acordando, pedindo para parar. Comecei a sentir nojo daquela relação e daquelas tentativas”, relata.

O que é estupro marital?

O estupro é definido pela prática sexual sem o consentimento da vítima, independente de ter ou não penetração. Quando essa sequer está apta a consentir, então, chama-se estupro de vulnerável. É o caso de pessoas entorpecidas por álcool ou drogas (lícitas ou ilícitas), crianças, pessoas com problemas de saúde mental, pessoas em coma, dormindo ou incapacitadas de outra forma. Aqui precisamos reforçar Não é Não, mas mais do que isso é preciso se atentar ao sim. Já o estupro marital ocorre quando se dá entre pessoas casadas ou que tenham relacionamento afetivo, como o marido contra a esposa.

As leis burguesas atuais, ainda que sua aplicação efetiva seja limitada, prevê todos esses casos.

  • Art. 213 – Estupro: constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. Se resultar em lesão corporal de natureza grave ou se a vítima for menor de 18 anos ou maior de 14 anos: reclusão, de 8 a 12 anos. Se resultar em morte: reclusão, de 12 a 30 anos.
  • Art. 217-A – Estupro de Vulnerável: ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos. Pena: reclusão, de 8 a 15 anos. Se resultar em lesão corporal de natureza grave: reclusão, de 10 a 20 anos. Se resultar em morte: reclusão, de 12 a 30 anos.
  • O artigo 61 do Código Penal define como agravante o fato de um crime de qualquer natureza ser cometido contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge”. O Código Penal prevê esse aumento da pena e cabe ao juiz definir quanto que vai ser”. O Código Penal também define, no artigo 226, que as penas serão aumentadas até a metade do tempo se o autor do crime for um ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge ou companheiro da vítima.

Dados do Estupro Marital no Brasil

O Mapa Nacional da Violência de Gênero mostra que, entre 2011 e 2022, 1 em cada 8 agressões sexuais foram praticadas por cônjuge ou namorado da vítima, caracterizando o estupro marital. No mesmo período, o Brasil registrou 350 mil agressões sexuais contra mulheres, sendo 42,5 mil cometidas por cônjuges ou namorados. A maioria das vítimas de violência sexual praticada por parceiros são negras, representando 66% dos casos. No entanto, devido à percepção do estupro como algo natural, há uma grande subnotificação desses casos.

A promotora do Ministério Público de São Paulo Fabiana Dal`Mas, do GEVID (Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica), alerta sobre a revitimização das mulheres. Comentários como “ele é um bom pai” ou “qual homem nunca fez isso?” ou ainda “ele é tão legal e bom trabalhador” são comuns e reforçam a violência contra as vítimas. O machismo enraizado na sociedade leva homens e até mesmo mulheres a descredibilizar as denúncias de estupro, tratando-as como naturais por serem cometidas por maridos, namorados ou ex-parceiros.

A igreja muitas vezes usa a Bíblia para dizer que a mulher tem um débito com o marido, uma ideia reforçada pela antiga legislação brasileira. O Código Civil de 1916 trazia a premissa de débito conjugal ou obrigação do sexo com a esposa, que foi retirada pelo Estatuto da Mulher Casada de 1962 e pelo Novo Código Civil de 2002. A Lei Maria da Penha, embora sem investimento adequado, e a Lei 12.015 de 2009 reforçaram a proteção contra violência sexual.

Cultura do estupro nas redes sociais

Em um vídeo do UOL com o depoimento de Ingrid, existem diversos comentários de mulheres dizendo que passaram pelo mesmo problema e que só agora entendem que isso não é normal:

  • “Passei por isso durante 18 anos e nunca passou pela minha cabeça que era abuso”
  • “Eu fui estuprada, várias vezes pelo meu marido na época…..não sabia que era estupro… pq fui ensinada a satisfazer o marido. MAS A MAIORIA DAS VEZES EU NÃO QUERIA E FALAVA NÃO,  ELE NÃO LIGAVA PRO MEU NÃO E CONTINUAVA… e eu ficava paralisada…. pq era meu dever de esposa…. Horrível  graças que vivo sozinha hoje em dia.”
  • “só quem passou por isso sabe o que é ver ser agressor e não poder fazer nada, sempre reviver aquilo apenas por ouvir o nome dessa pessoa…. força.”

No lado oposto, comentários de homens que buscam defender o abusador, seja por normalizar o abuso, seja por descredibilizar a denúncia:

  • “O que me surpreende é deixar pra denunciar isso em um programa de tv. Foi estuprada, vai pra delegacia, faz um corpo delito, processa, eu acho que ela só quiz causar. Tem que investigar muito bem esse caso.”
  • “Eu lamento essa situação, porém acho que deveriam acertar na justiça. Não defendo ele, mas a exposição foi ridícula.”
  • “Ela acabou com a vida dele. Simples assim. A partir de amanhã, a vida dele estará devastada. Vai se arrepender o resto da vida de ter entrado no programa.”
  • “Putz……este assunto NÃO é assunto público né…com todos estes detalhes. Se sentiu violada…..vai na delegacia. Nem consegui ver o vídeo todo…eu hein. Problema entre quatro paredes…..é problema do casal….você NÃO foi forçada a ficar no relacionamento.”
  • “É  muito perigoso casamento para  homens  em  tempos atuais”

E ainda existem aqueles que são contra o estupro, mas que consideram que esse cara não é normal, mas sim um doente, um monstro, ou outro adjetivo que cria um distanciamento entre os homens que abusam e os “normais”:

  • “Hoje em dia é perigoso a mulher casar enxergando, que dirá às cegas com um psicopata estranho, num reality.”
  • “A terapia dele é cadeia! Ele é um maníaco e poderia estar dopando ela…”
  • “Claramente um caso de abuso narcisista.”

Nas postagens nas redes sociais de Ingrid existem centenas de comentários de mulheres dizendo já ter passado por isso e descobrindo que é um abuso, ao mesmo tempo que vários homens condenam a denúncia dizendo que Ingrid quer “aparecer” e que esse é um assunto de casal.

Os homens que estupram estão no nosso entorno

Esse contexto se assemelha a pesquisa divulgada em 2009 por Amanda Hess, no texto: “Estupradores que não acham que são estupradores” onde Thomas MacAulay Millar, do blog Yes Means Yes!, estudou 1.882 universitários, descobrindo que 6% confessam estupro ou tentativa de estupro sem reconhecerem isso como tal, mesmo admitindo que repetidamente forçam ou embriagam mulheres para sexo e se mostram reincidentes. A pesquisa mostra que a maioria dos estupros por conhecidos é cometida pelos mesmos homens, e que eles admitem os atos tranquilamente desde que não se use a palavra estupro, pois não se veem como estupradores. O texto defende chamar esses homens de estupradores, sem minimizar seus atos, e encorajar as mulheres a denunciar.

É preciso criar meninos e meninas ensinando sobre a importância do consentimento e o respeito à autonomia. A luta contra a cultura do estupro e do assédio é crucial. Precisamos acolher as vítimas, denunciar os estupradores com firmeza e parar de descrevê-los como monstros, quando na verdade são homens comuns que não reconhecem seus atos e veem as mulheres como suas posses devido ao machismo. Reconhecer que estupradores não podem fazer parte dos nossos contatos e amigos é essencial para romper com o silêncio e enfrentar esse problema.