Juventude negra e eleições em São Paulo: reflexões sobre a reparação que precisamos
Everton, da região Noroeste da cidade de São Paulo (SP)
Com a chegada de mais um ano eleitoral, assistimos ao aparecimento de todo tipo de oportunista se colocando como grande defensor da população negra. O processo eleitoral é como o flautista que, ao tocar seu instrumento, convoca a rataria para fora de suas salas parlamentares. Ainda que durante quatro anos não tenham feito nada de eficaz para a população negra, no ano eleitoral vêm com novos discursos e novas promessas, novas ilusões para ganhar votos.
É importante que nós, ativistas e militantes engajados na luta contra o racismo e o genocídio do nosso povo, estejamos vacinados contra as ilusões dos oportunistas parlamentares. Para isso, é preciso termos em mente quem são nossos inimigos, quais são nossos problemas, como solucioná-los e quais são as nossas ferramentas de luta.
A cidade de São Paulo
Com os ascensos de mobilização contra o racismo que têm acontecido nos últimos anos, como no caso do George Floyd, que incendiou os EUA e também teve reflexo sobre os movimentos negros no Brasil; o assassinato de Marielle; as agressões racistas nos supermercados (como o caso Carrefour) e contra entregadores; os episódios de violência policial racistas filmados e amplamente denunciados nas redes sociais, têm crescido a conscientização racial da juventude. Diversos jovens que anos atrás se autodeclaravam brancos, hoje se declaram negros, “pardos” e indígenas, se opondo à ideologia do branqueamento que o Estado brasileiro e a burguesia brasileira criaram durante o século XIX.
Esse fenômeno de conscientização racial da população tem se refletido nos censos. Na cidade de São Paulo, estima-se, com base na pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022 , que existam 5 milhões de negros, em uma população de 11 milhões. Para se ter uma ideia, no censo de 2000 o número era de aproximadamente 3 milhões, e em 2010, 4 milhões.
Esse crescimento vem atrelado à diminuição da população branca, fruto da conscientização dos negros que antes se denominavam brancos e vêm mudando a compreensão de sua identidade. Na realidade, é muito provável que esses números sejam ainda maiores, considerando que o racismo continua incidindo sobre o processo de autodeclaração – o que aponta para a necessidade de ampliar a conscientização.
Nesse mesmo sentido, outro ponto a ser destacado diz respeito à população indígena. Ainda que a autodeclaração também venha aumentando nos últimos censos, o impacto da ideologia racista na consciência da população continua sendo grande. Basta olhar para o norte do país para concluir que a porcentagem da população descendente de indígenas de acordo com os censos não dá conta da realidade.
Mas nem tudo são flores em SP
O Mapa da Desigualdade demonstra que existe um verdadeiro apartheid na cidade de São Paulo, onde a massa de negros e negras está nas periferias da cidade. Os bairro mais negros de São Paulo são Jardim Angela, Grajau e Parelheiros, no fundão da zona sul; na zona leste, temos Tiradentes, Itaim Paulista, Lajeado; na zona norte, Brasilândia, Jaraguá, Perus; e na zona oeste, Raposo Tavares e Jaguaré. Ou seja, fora do centro-sul da cidade, existe um verdadeiro cinturão do racismo paulista.
É fato que, nos bairros que compõem esse cinturão, os índices refletem a crise social brasileira. Apenas uma das consequências disso é que a média de idade ao morrer varia de 60 a 65 anos, enquanto nos bairros ricos e brancos a expectativa de vida atinge os 80 anos. São, portanto, 20 anos de vida a menos para negros e negras.
Esses vinte anos são reflexo de uma vida inteira de exploração capitalista e opressão racista, dos serviços públicos sucateados na área da saúde, dos empregos informais ou temporários e dos salários rebaixados em que uma família inteira vive com 1 ou 2 salários mínimos.
O que capitalismo e a burguesia têm a oferecer para os jovens negros e negras: violência, informalidade e desemprego
Apesar de todo o discurso de empreendedorismo, investimento em ações, ou “seja seu próprio patrão”, que a burguesia e figuras como Pablo Marçal oferecem aos jovens, a realidade é outra. Em estudo feito pelo Instituto Latino-Americano de Estudos Socioeconômicos (Ilaese), o panorama para a juventude negra brasileira é o seguinte: os jovens no Brasil representam 17% da população (14 a 24 anos), dos quais 5,2 milhões estão desempregados, representando mais de 50% do total de desempregados (9,4 milhões). Destes, 66% são negros.
Os jovens que não trabalham e nem estudam (nem-nem) somam 7,7 milhões e 68% são negros. Além disso, da parcela que está empregada, 37% dos homens e 23% das mulheres não concluíram o ensino médio. 86% dos jovens tinham empregos que consideravam pouco desafiadores. E a grande maioria dos jovens negros, 56% estão em empregos informais. Sem considerar os empregos formais que são na escala 6×1, ou seja, trabalha-se 6 dias na semana e folga-se 1, inviabilizando qualquer vida para além do trabalho.
É importante destacar que o capitalismo e o racismo brasileiros reservam especialmente às jovens negras as piores perspectivas de futuro. Por um lado, os dados revelam que a informalidade e a terceirização atingem principalmente, e de maneira mais brutal, as mulheres negras. Considerando ainda que 63% dos lares brasileiros são chefiados por elas, a realidade é a de sobrecarga de tarefas, precariedade das condições de vida e a falta de acesso a serviços públicos essenciais de qualidade, acarretando em diversos problemas de saúde, tanto físicos quanto psicológicos.
Não menos importante é destacar que os maiores índices de violência doméstica e sexual na infância e juventude referem-se ao grupo das mulheres negras. Sabendo que 60% dos casos de estupro são cometidos contra crianças e adolescentes de 10 a 19 anos e que 74% dos abortos são praticados por mulheres negras, as atuais políticas de restrição do direito ao aborto legal, não só em São Paulo, mas em todo o país, são diretamente racistas.
Diante dessa situação, é fundamental que qualquer candidato à prefeitura ou a vereador tenha uma posição firme no combate a esses problemas, defendendo medidas reais que possam mudar a realidade e as perspectivas para a juventude negra.
Se a burguesia oferece informalidade e empregos em escala 6×1 aos jovens, nós, socialistas e antirracistas, devemos defender uma formação de qualidade e empregos com plenos direitos e bons salários à juventude. Abolir a escala de trabalho 6×1, por exemplo, é uma forma de combater a precarização da vida do nosso povo e de gerar novas oportunidades de emprego.
Além disso, é urgente o fim das terceirizações, que hoje consome 13 bilhões do orçamento público para oferecer serviços de péssima qualidade e enriquecer meia dúzia de donos de empresas. Essa forma de privatização dos serviços públicos transfere o dinheiro arrecadado através de impostos pagos pela população negra para setores da burguesia branca. Com esse dinheiro, seria possível investir em educação, saúde e cultura.
Uma das possibilidades de utilizar o orçamento da cidade em prol da juventude negra trabalhadora é a criação de escolas técnicas municipais voltadas à formação dos jovens para ingressarem nos serviços públicos, com a garantia de um emprego público após a conclusão dos estudos. Essa medida não só combate a evasão escolar e o desemprego na juventude, mas garante empregos de qualidade e ainda contribui para a melhoria dos serviços públicos ofertados à população. Tanto as escolas quanto os postos de trabalho devem ter cotas de 80% aos jovens negros, negras e indígenas, enquanto os outros 20% devem ser destinados aos jovens de baixa renda em geral.
Também no que diz respeito à educação, é importante garantir uma formação científica e crítica desses jovens. Ao invés do Novo Ensino Médio (NEM), que limita o currículo oferecido aos estudantes (e que, ao contrário da propaganda dos governos, não os prepara para a vida profissional e nem para o ingresso no ensino superior), precisamos que se cumpra a obrigatoriedade das aulas de História da África e da história do nosso povo negro e indígena no Brasil e que haja um amplo acesso ao conhecimento científico. Além disso, é fundamental a criação de projetos de educação sexual nas escolas, fortalecimento das jovens e combate à cultura do estupro desde a infância. Através dessas medidas, é possível pavimentar o caminho para uma educação voltada tanto à profissionalização quanto à compreensão do mundo e da sociedade.
O direito ao futuro digno que nossas jovens merecem não será conquistado através de discursos eleitorais vazios, mas com medidas sérias que priorizem o investimento em serviços públicos de combate à violência doméstica e sexual, desde delegacias até programas de lares temporários e oportunidades de emprego, para que as vítimas não fiquem reféns da dependência de suas famílias ou parceiros, permitindo o rompimento do ciclo da violência.
A garantia do aborto legal deve ser encarada como uma prioridade por qualquer candidato que defenda de fato as causas da população negra. O Hospital Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte, que era referência na realização do aborto nos casos previstos por lei (estupro, anencefalia e risco de vida à mãe), sofreu um enorme ataque do prefeito Ricardo Nunes (MDB), que ordenou a interrupção do serviço e alterou a gestão do hospital, que tem ameaçado os médicos de forma truculenta e ilegal, além de vazar dados sigilosos das pacientes. É urgente a volta dos procedimentos no Hospital, assim como sua ampliação.
Os candidatos não devem ter receio de abrir o debate com a população sobre a necessidade de ampliar o direito ao aborto, para que as mulheres negras não arrisquem suas vidas realizando o procedimento de forma ilegal e sem segurança, e para que toda mulher possa decidir se deseja continuar com uma gestação ou não.
A cultura criminalizada: os bailes funk
Hoje na periferia de São Paulo, de norte a sul, leste a oeste, os bailes funk ou fluxos reúnem centenas de jovens. Em ano de eleição, os bailes também viram alvos dos oportunistas. Em 2023, Ricardo Nunes, em parceria com a produtora de funk GR6, inaugurou quadras de futebol em algumas comunidades. Neste ano, o Congresso recebeu pedidos para criar o Dia Nacional do Funk.
Quem vê de fora acredita que esses deputados e prefeitos defendem cotidianamente os bailes ou propõem medidas para viabilizar os eventos em espaços culturais adequados para que não prejudiquem o cotidiano da população das favelas. Porém, pelo contrário, o Estado brasileiro e a burguesia, têm criminalizado esses bailes. Somente em 2019, a Polícia Militar (PM) estimou que realizou 7,5 mil operações pancadão, que consiste na repressão a jovens que curtem o baile funk na periferia. Em uma dessas operações, em Paraisópolis, a polícia assassinou 9 jovens. Essa é a verdadeira política real que o Estado brasileiro tem oferecido ao funk. Declarar o Dia Nacional do Funk sem apresentar medidas reais é puro oportunismo eleitoral.
Nós, socialistas, precisamos defender a construção de espaços culturais nas periferias, onde os jovens possam organizar oficinas artísticas e shows, bailes, fluxos, entre outros. Com a criação desses espaços, além de promover a cultura das quebradas, também podemos solucionar os conflitos com parte dos moradores que vivem nos arredores de onde os bailes acontecem. Se o trabalhador não consegue dormir, ou então, pessoas do espectro autista entram em crise devido ao som alto, a solução para isso não é enviar a polícia militar para assassinar nossos jovens, como em Paraisópolis. A juventude, majoritariamente negra, tem o direito de aproveitar o seu baile sem correr o risco de ser morto pela PM, e é função do poder público garantir espaços culturais onde isso possa acontecer da melhor maneira, sem prejudicar o restante dos moradores.
Combater o genocídio e a violência policial
A faceta mais brutal do racismo brasileiro é o genocídio da nossa população, principalmente dos jovens negros. De 2013 a 2023 foram mortos 3.447 pessoas em São Paulo em ações policiais, sendo, 69,5% (2.358) negras. 57% são jovens de 15 a 29 anos, e 70% desses jovens são negros.
São necessárias medidas urgentes para conter esse extermínio. Um recurso que tem surtido efeito na diminuição da letalidade policial – e por isso tem sido combatido pela corporação e pela direita, como o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) – é a adoção das câmeras corporais. É fundamental que as candidaturas defendam que toda a tropa utilize-as e que, principalmente, o acionamento seja feito de forma automática (sem que o agente possa escolher o que gravar ou não) e que a gestão das imagens esteja sob controle da população civil, e não da PM.
No âmbito municipal, o candidato a prefeito ou vereador deve defender que a Guarda Civil Municipal (GCM) também implemente as câmeras corporais, sob gestão de órgãos independentes. Além disso, é preciso que os comandantes sejam eleitos nos bairros, movimentos sociais, fábricas e locais de trabalho. A força da GCM deve estar a serviço da classe trabalhadora e dos moradores dos bairros periféricos, e não atuar como cães de guarda da burguesia.
Candidatos que não façam o debate sobre a “segurança pública” de um ponto de vista a defender a juventude que está sendo assassinada pelas polícias, estão do lado da burguesia na guerra contra os negros e indígenas. Enquanto Ricardo Nunes tem como seu vice um ex-comandante da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA), Guilherme Boulos (PSOL) convidou também um ex-comandante da polícia mais assassina e genocida do Estado, para formular seu programa de segurança pública. O que de bom pode sair para a juventude negra de um programa vindo da ROTA?
Burguesia brasileira: nossa herança da escravidão
Clóvis Moura, em Sociologia do Negro Brasileiro, debate que durante muitos anos se falou que a situação do negro brasileiro era uma herança da escravidão. Porém, quando analisamos o capitalismo brasileiro, vemos que na verdade esse sistema se apropriou dos mecanismos de exclusão criados no período da escravidão e os potencializou. O que realmente é uma herança da escravidão, segundo Clóvis Moura, é a burguesia brasileira, que herdou sua fortuna do período escravocrata e a utilizou para tornar-se capitalista e manter a exclusão da população negra.
Um bom exemplo é o caso da Família Setúbal, que tem familiares na época da colônia vinculados ao tráfico de escravizados, e atualmente são os principais acionistas do banco Itaú. A família Setúbal é apenas um dos exemplos, existem outros.
Essa é a cara dos nossos inimigos. Um candidato que não se oponha aos setores burgueses, não tem como ser consequente com a luta antirracista, pois a herança da escravidão é justamente a burguesia brasileira. É fundamental termos candidaturas com independência de classe, ou seja, que não aceitem ser financiados pelos burgueses brasileiros e não defendam seus interesses.
Organizações da classe trabalhadora e do povo preto x Estado burguês racista
As ilusões oportunistas de políticos de esquerda ou de direita são justamente o fato de dizerem que basta votar neles para que implementem as medidas de campanha. Defendem uma concepção, consciente ou inconscientemente, de que o racismo brasileiro é apenas uma questão de falta de cultura e educação. Outros identificam o racismo como algo “estrutural”, porém não enxergam o capitalismo como sendo essa estrutura, e dessa forma, acreditam ser possível acabar com o racismo por meio da educação e políticas de conscientização nas empresas capitalistas.
Essas ideologias, na prática, apesar de toda boa vontade, acabam ocultando o fato de o racismo ser um problema intrínseco ao Estado burguês brasileiro e ao capitalismo no Brasil. A burguesia tentou nos exterminar em um primeiro momento, vendo que não conseguiria, criou ideologias para nos apagar etnicamente. Um extermínio em nossas mentes, que provoca fenômenos como o que estamos vendo: cresce o número de negros no Brasil não porque estão nascendo mais negros, mas porque somente agora as pessoas começaram a ter consciência da sua negritude.
Isso é também uma faceta do genocídio do povo preto. E esse genocídio existe para sustentar o Estado brasileiro e seu capitalismo, relegando os negros aos piores postos de trabalhos, escala 6×1, trabalho informal e salários rebaixados, para assim obter uma massa de desempregados e subempregados. Desse modo, a burguesia força para baixo os salários dos trabalhadores em geral, pois se você tem milhões de desempregados ou no subemprego, não tem porque pagar um salário alto para um funcionário, já que você pode escolher outro que vai aceitar o cargo por um valor reduzido.
Ao mesmo tempo, a burguesia morre de medo dessa massa de negros oprimidos e explorados que ela criou. A história do nosso povo preto é a história dos quilombos, como o de Palmares, que durou quase 100 anos, história de revoltas como a dos Malês e fuga das senzalas. A burguesia sabe que se não nos controlar com muito terror estatal, a população vai se levantar e reivindicar seus direitos, por isso tamanha é a violência do Estado contra nossos jovens.
Um candidato a prefeito que leve a sério a questão negra, não vai vir a público mentir para o povo negro, vai deixar claro que se ganhar a prefeitura vai usá-la para impulsionar a luta e a organização do povo preto contra seus algozes. Somente a organização dos de baixo pode acabar com os bilionários que comandam o Estado atualmente, e usam seus lucros para controlar o Estado e tomar medidas que mantém nosso povo nessa situação.
Não é o prefeito sozinho que vai mudar e implementar nossas medidas de reparação ao nosso povo, muito menos a Câmara Municipal, mas sim nossa auto-organização.
O governo dos trabalhadores e do povo pobre é o grande objetivo do PSTU, e militamos há décadas para construir uma organização política que permita aos trabalhadores conquistar esse objetivo. A pré-candidatura a prefeito do Altino Prazeres representa essas ideias. Por isso, convidamos a todos os ativistas a conhecerem e apoiarem a sua campanha, e principalmente a se organizarem cotidianamente no PSTU!