Cultura

J. Borges: simplesmente artista

Artista pernambucano foi responsável por estabelecer a xilogravura como arte e foi um dos maiores nomes da cultura popular

Jorge H. Mendoza

26 de julho de 2024
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J. Borges. Foto: Museu do Pontal / Divulgação

Morreu nesta sexta-feira (26) o xilogravurista, cordelista e poeta J. Borges, aos 88 anos de idade. O artista estava em sua casa, em Bezerros, e faleceu de causas naturais, segundo informações da própria família.

Borges foi, sem dúvidas e reconhecidamente, um dos maiores mestres da xilogravura brasileira. Nascido no agreste pernambucano, na mesma cidade em que cresceu e viveu a vida toda, Borges começou a trabalhar desde cedo. Trabalhou com jogo do bicho, confeccionou cestas e balaios, móveis e brinquedos, lajes e tijolos. Frequentou brevemente a escola por um ano, quando tinha 12 anos, o suficiente para aprender a ler e fazer algumas contas. Ou seja, nunca teve instrução formal.

Autodidata, Borges cultivava em si uma admiração pela leitura e pela cultura popular. E como uma flor de cacto que nasce no sertão, brotava no seu peito uma paixão pela poesia. “… [A região nordeste] está encravada de poesia. Até a situação da terra, com a seca ou a chuva, atrai o sentimento.” Adorava contar causos e reproduzir histórias que viu ou que ouviu contar.

Foi em 1956 que Borges comprou seu primeiro lote de folhetos para escrever seu primeiro livreto: “O encontro de dois vaqueiros no sertão de Petrolina“, ilustrado por Dila, de Caruaru. Segundo o próprio Borges, foram vendidos “cinco milheiros de muita sorte“. Os bons resultados de seu primeiro lançamento incentivaram Borges a dedicar-se integralmente àquilo que amava. E pouco tempo depois lançou “O verdadeiro aviso de Frei Damião sobre os castigos que vêm”. Por economia, entalhou ele próprio em uma colher de madeira de jenipapo a fachada da igreja de Bezerros. A peça permanece exposta em seu ateliê como lembrança do início de sua carreira como xilogravador.

O forró dos bichos, de J. Borges

Do cordel à xilogravura como arte

Trabalhando como folheteiro, em pouco tempo Borges já dispunha de máquinas tipográficas e passou também a ser editor de folhetos. Nos anos 1970, por encomenda de um professor universitário de Recife, Borges produziu duas obras em tamanhos maiores do que comumente se usa nos cordéis. Pouco tempo depois, por intermédio do folheteiro Olegário Fernandes de Caruaru, produziu outras duas gravuras para Ivan Marquetti, artista plástico do Rio de Janeiro, com os temas de Bumba-meu-boi e do Cavalo marinho (dança).

Vale mencionar que nessa mesma época, em outubro de 1970, no Pátio São Pedro, Ariano Suassuna lançava formalmente seu movimento Armorial. De caráter romântico e em alguma medida até um pouco conservador, o movimento buscava produzir arte erudita genuinamente nordestina a partir de elementos da “cultura popular”. Esse movimento encontrou justamente em Borges uma produção frutífera.

Relembrava Borges que ficou sabendo que “…assim que ele [Suassuna] viu as gravuras perguntou quem era a fera que fazia aquilo. Logo depois, fui chamado à Universidade Federal de Pernambuco para conhecê-lo e para dar entrevistas a meio mundo de jornalistas que ele tinha convocado. Depois dali eu não parei mais”. Os dois mantiveram uma longa amizade.

Foi graças a Borges, então, por esses pequenos episódios, que a xilogravura deixou de ser uma mera técnica de impressão muito associada aos livretos de cordel e passou a ganhar crescente autonomização, como uma expressão artística em si mesma.

Borges parece ter tido raízes, mas não fronteiras: cresceu e viveu em Bezerros, mas seu trabalho foi exposto nos Estados Unidos, França, Alemanha, Suíça, Itália, Venezuela e Cuba. Isso sem falar nas abundantes reproduções não autorizadas que rodam o mundo.

O monstro do sertão, de J. Borges

Seus temas e emblemas

Borges foi um artista profícuo e permaneceu ativo até suas últimas semanas. Seus temas vão desde os escolhidos pelos clientes comerciais até às demandas do mercado de arte. Ilustrou capas de importantes nomes da literatura como Eduardo Galeano (“As palavras andantes”), José Saramago (“O lagarto”) e uma edição comemorativa de “Dom Quixote”, de Miguel Cervantes.

Suas obras passam por temas corriqueiros e cotidianos como feiras, mudanças e natureza, passando pela realidade social do sertão, como no caso do cangaço e das festas populares, até assuntos religiosos e outros fantásticos. Muito próximos aos temas dos cordéis como “O forró dos bichos”, “O monstro do sertão”, “A mulher que botou o diabo na garrafa” e “A chegada da prostituta no céu”. A separação entre o real e o fantástico, aliás, nunca encontrou em Borges um aliado.

Fascinado pelas aventuras e pelo mistério, tal como nas temáticas dos cordéis, suas obras refletem bem a disputa entre o bem e o mal, entra a natureza e o humano, entre o divino e o profano, refletindo assim, na distorção de um espelho fantástico, a vida no agreste e sertão pernambucano tal como os próprios sertanejos a veem.

Outra que não encontrou no xilogravurista um aliado foi a exclusividade. Borges era um entusiasta da arte que praticava. Sempre ministrou cursos e manteve abertas as portas de seu ateliê, à beira da BR-232, a rodovia Luiz Gonzaga, onde recebia clientes, turistas e admiradores. Acabou formando, assim, gerações de xilogravuristas. Além dos trabalhadores de seu ateliê, a família Borges toda acabou se especializando na arte, como é o caso de seus filhos Pablo e Bacaro Borges.

Capa do cordel "A mulher que botou o diabo na garrafa", de J. Borges

Seu legado

Borges foi um artista popular? Provavelmente é o que dirão em sua memória. Talvez alguns o chamem de naif, pela pouca instrução e autodidatismo. Outros, talvez, um “artista regional”. Mas nesta breve notícia-homenagem, gostaria de dizer que essas definições e fronteiras talvez não se apliquem aos artistas da natureza de Borges.

O já mencionado Eduardo Galeano, em seu poema “Os ninguéns”, diz que esses são os “Que não fazem arte, fazem artesanato. / […] / Que não têm cultura, têm folclore“. Mas a beleza em ser um ninguém é poder ser também um pouco todo mundo. E no seu bom humor e na paixão pelos causos Borges tinha, com certeza, um pouco de todo pernambucano.

Suas obras foram rapidamente incorporadas em todos os lugares e não há uma loja de souvenirs no estado que não tenha umaa reprodução de uma obra sua. Ao lado de outros mestres como o escultor Vitalino, é impossível imaginar Pernambuco sem passar pela sua obra. Suas gravuras permanecem no imaginário popular.

Borges foi, simplesmente, Artista.