Colunas

“Hip Hop estilingue” (2): em sintonia com a Intifada, desafiando a Nakba

Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

1 de março de 2024
star0 (0 avaliações)
Ritmos e poesias que ecoam décadas de uma heroica luta contra o apartheid sionista, o genocídio e a limpeza étnica

Dando sequência ao artigo anterior (leia aqui), a ideia, agora, é discutir como os protagonistas e músicas do Hip Hop palestino repercutem dois processos que se chocam permanentemente. Por um lado, carregam as dores, sofrimentos e perdas provocadas pela contínua Nakba, a catástrofe constante iniciada em 1948, quando Israel criou a si próprio, utilizando-se de todas as armas típicas do terror de Estado.

Por outro, são vozes, ritmos e poesias que ecoam décadas de uma heroica luta contra o apartheid sionista, o genocídio e a limpeza étnica, em particular através de poderosos levantes, ou Intifadas, que sacudiram os territórios palestinos entre 1987 e 1993 e de 2000 a 2005, não por acaso os mesmíssimos períodos em que o Hip Hop surgiu e se desenvolveu nos territórios ocupados, na Cisjordânia, em Gaza e em onde quer que a juventude palestina estivesse.

Vozes sufocadas pela dor e que explodiram contra a Nakba contínua

Não surpreende que no rap que jorra dos corações e mentes dos jovens palestinos não faltem lamentos, tristeza e perdas. Não faltem referências à “catástrofe” que já destruiu milhões de vida acobertada pela farsa de um Estado-apartheid que se diz legítimo, divinamente predestinado e exemplo de civilização e democracia. Tudo isto abençoado pela burguesia e o imperialismo mundiais e justificado pela luta contra bárbaros e selvagens terroristas.

E, por isso, também não é uma coincidência que tenha sido uma resposta a esta falsificação da História que, no final de 2000, chamou a atenção para o DAM, grupo considerado pioneiro do Hip Hop palestino, formado pelos irmãos Tamer e Suhell Nafar e o amigo Mahmoud Jreri.

Foi em novembro daquele ano que eles lançaram uma música que, até hoje, é um verdadeiro hino contra o Estado de Israel: “Min Erhabi” (“Quem é o terrorista?”, cujo clipe publicamos no Canal do PSTU, em 2009, com legendas em português, com o seguinte refrão:

“Quem é que é o terrorista? Eu sou um terrorista? / Como é que sou um terrorista enquanto vivo no meu país? / Quem é que é o terrorista? Você é um terrorista! / Me tiraram tudo o que tinha enquanto vivia no meu país”.

Como expressão dos jeitos de ser e se comunicar da juventude mundial atual, quando foi lançada, em novembro de 2000, “Min Erhabi” estourou em blogs, salas de conversa, redes sociais, plataformas de vídeo e canais como o “Re-Volt”, sendo baixada mais de um milhão de vezes em apenas uma semana.

Estrangeiros em suas próprias terras

Algo que se deve tanto às suas inegáveis qualidades artísticas quanto ao contexto em que foi lançada e à localização do DAM. O impacto que causou pode ser medido pela reação do governo sionista, através da então Ministra da Cultura israelense Miri Regev (hoje, Ministra do Transporte), que declarou que a música era um “ato de violência” contra o Estado.

Ou seja, os acusou de “terroristas”. Uma acusação que pode resultar em prisão, tortura e morte, principalmente para aqueles, como os três jovens, que são “palestinos de 48”, criados em Lydda (ou Lod), cidade localizada no território ocupado por Israel.

Uma realidade que, inclusive, moldou o genial nome adotado pelo grupo, uma abreviação de “Da Arabian MCs” (“Os MCs Árabes”), que também significa “persistir” ou “permanecer”, em árabe; e “sangue”, em hebreu. Uma forma genial de nomear um Hip Hop no qual sangue e persistência jorram, muitas vezes, com a mesma intensidade. Mas, também, onde os “laços de sangue” são fundamentais para gente que é estrangeira em suas próprias terras.

Coisas que o DAM sempre soube transformar em músicas excepcionais como “G’areeb Fi Biladi” (“Estrangeiro no meu próprio país”, de 2007). Nela, além de desmascarar a noção de que possa existir um Estado que se diga, simultaneamente, democrático e judeu, já que, nele, tudo é proibido a quem não tem uma “alma judaica”, o grupo reafirma sua identidade e, ainda, envia uma mensagem de pertencimento e esperança para seus irmãos e irmãs palestinos em outros territórios. Diz a música:

“Não traí a minha pátria / E os meus ombros não vacilaram / Enfrentei os meus opressores / Órfão, nu e descalço / Carreguei o meu sangue na palma da mão / E não deixei baixar as minhas bandeiras / E sustentei a relva verde / Nos túmulos dos meus antepassados”.

Versos para alimentar a chama ardente da rebeldia

Até mesmo por seu pioneirismo, o DAM há muito também tem servido com um eixo em torno do qual o Hip Hop palestino tem tentado reconstituir a unidade de seu povo. Seja através de suas composições combativas, seja na busca permanente de um diálogo criativo com aqueles que foram dispersos pela diáspora forçada.

Exemplo disto é a belíssima “Resale in zenzana” (“Carta de uma cela da prisão”), cujo refrão, cantado como se fosse a “voz” de uma criança nascida no cárcere, é de uma dolorosa beleza:

“Não chore, mamãe / não desperdice suas lágrimas / Não chore, mamãe / Suas lágrimas que caem como chuva irão apagar o fogo que arde dentro de mim”.

Gravado em 2011, em apoio a prisioneiros políticos que estavam em greve de fome, o clipe, por si só, é um ato de rebeldia contra os muros e décadas de limpeza étnica, ao reunir o DAM, o Trio Joubran (naturais da cidade de Nazaré e conhecidos pelo uso do “oud”, um instrumento de cordas tradicional na cultura árabe), Bachar Khalifé (cantor e multi-instrumentista nascido o Líbano), Nibal Malshi (nascida em Haifa e que faz uma mescla da música tradicional palestina com o pop) e o cantor e ator Ibrahim Sakalla.

Antes mesmo deles, em 1998, o MWR (cuja sigla é formada pelos nomes de Mahmoud, Waseem, Richi, que atuam ao lado de Charlie, o DJ Chuck) já fazia raps que eram chamados a um levante, a uma nova Intifada, necessário até mesmo para que o povo palestino pudesse existir.

Nascidos em Akka (ou Acre, nos territórios ocupados por Israel) e, portanto, assim como o DAM, emparedados por leis e formas de violência típicas de um regime de apartheid, esses jovens do MWR fizeram de suas músicas reafirmações da própria identidade, em músicas que resgatam suas tradições e pertencimento, como “Ashanak Arabi” (“Porque eu sou árabe”), cujos versos iniciais e finais, compostos há 21 anos, sintetizam o que é viver segregado:

“Por que estamos vivendo em uma época sem felicidade e esperança? / Quando você está procurando um emprego, eles o demitem / eles o recusam e dizem que você não é qualificado / e por quê? Porque você é árabe! / onde quer que você vá, querem que você mostre sua identidade – sem motivo / sem motivo / por que não podemos ser iguais? / por que não somos tratados como seres humanos? (…) / Um policial me vê, me prende imediatamente e me faz algumas perguntas racistas, e por quê? Porque sou árabe”. / Deixem-me viver (…)”.

Soltando a voz pra explodir prisões dentro de prisões

Criada com estilingues nas mãos e rimas fervilhando na cabeça, essa juventude palestina achou no Hip Hop uma forma de repercutir aquilo que presenciava cotidianamente nas ruas. Este também é o caso do coletivo “Palestinians Rapperz”, criado, em 2003, como um dos primeiros grupos de Gaza (mais especificamente na região de Khan Younis, hoje lamentavelmente famosa pelos incessantes bombardeios de Israel).

Formado por Mohammed Al-Farra (ou D.R, o Dynamic Rapper), Mahmoud Fayyad (Kanaan), Moataz Al-Hewaihy (Mezo) e Ayman Meghames, eles são autores de raps potentes como “Al Watani” (algo como “minha pátria/nação”) que, ao chamar atenção para as especificidades da luta por autodeterminação nacional dos palestinos, continua inspirando as novas gerações.

O que também vale para o “Ramallah Underground” (ou seja, dos subterrâneos da principal cidade da Cisjordânia), também criado em 2003, por Stormtrap, Boikutt e, depois, Aswatt, e expressão do alto nível de politização e conscientização que o Hip Hop alcançou na Palestina, como fica evidente em uma declaração de Boikutt, em uma entrevista dada para o portal Gulfnews.com, em 23/07/2007.

“Há um muro ao nosso redor, há [colônias] no topo de cada colina, [com colonos] que podem atirar em nós a qualquer momento. Em todos os lugares que vamos somos impedidos por intermináveis [postos de fronteira]. Em meio a tudo isso, precisamos nos lembrar de que ainda há esperança”, disse Boikutt, cujo nome artístico ele próprio define na forma de um poema de combate: “boicote à ocupação, à opressão, ao racismo, à discriminação e à comercialização da música”.

As primeiras rimas de Boikutt chegaram às redes sociais em 2002, quando ele estava em prisão domiciliar, com um tanque israelense estacionado em sua porta. Quando o grupo se formou, e já como reflexos das contradições criadas dos territórios ocupados, suas composições também já incluíam pesadas críticas à Autoridade Palestina e aos Acordos de Oslo (assinados, em 1993, entre o governo de Israel e a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), dirigida por Yasser Arafat, com as bençãos deBill Clinton).

Críticas também destacadas em 2011, quando Boikutt deu uma entrevista para o portal “The Eletronic Intifada”, falando como era viver em uma cidade como Ramallah, na Cisjordânia.

“É como uma bolha. Basta dirigir apenas dez minutos em qualquer direção e você perceberá que é uma prisão. Há o muro do apartheid israelense que resulta em uma prisão a céu aberto. E há, também, o governo da Autoridade Palestina (AP) e suas forças policiais que estão posicionadas em todos os cantos de Ramallah. Eles estão constantemente nos controlando, mesmo que estejamos apenas vagando dentro de nossa própria prisão”, disse ele há 12 anos, quando tinha 25.

E este é exatamente o título de sua música mais conhecida: “Sijen ib Sijen” (“Prisão dentro de uma prisão”, com legendas em inglês). Diz a letra:

“Enquanto os líderes se masturbam entre si / Os assentamentos se multiplicam, crescem e se expandem! / Querem resolver o problema? / Desmantelem nosso governo! / Talvez então possamos começar algo”.

Vale dizer, ainda, que exatamente pelas dificuldades criadas ao se viver numa prisão dentro de outra, hoje, os membros Ramallah Underground, apesar de continuarem produzindo juntos e em parcerias com outros(as) rappers, se encontram dispersos em três continentes: Aswat está em Dubai (Índia), Stormtrap, em Viena (Áustria) e Boikutt permanece em Gaza.

Uma Intifada musical: um levante de vozes contra a opressão sionista

Dispersos pelo mundo ou emparedados dentro de suas próprias terras, jovens palestinos continuam produzindo um Hip Hip combativo e poético, promovendo o que a rapper britânico-palestina Shadia Mansour chamou de uma “Intifada musical”, em uma entrevista à agência BBC, em 07 de setembro de 2010, quando fazia sua primeira turnê pela Cisjordânia.

“E uma intifada musical, um levante musical contra a ocupação da Palestina, o conservadorismo e a opressão às mulheres (…). A primeira coisa que notei nos artistas locais de hip hop é que a sua música é revolucionária – muito semelhante à minha”, disse a rapper, com a autoridade de quem gravou “Kollon 3endon Dababaat” (“Eles todos têm tanques”, com legendas em português). Dizem os versos iniciais que reverberam as vozes de uma juventude que cresceu aprendendo a “gritar” mais alto que tiros e bombas e de se fazer ouvir num mundo onde muitos querem silenciá-la:

“Eles todos têm tanques e nós temos pedras / eles destroem as nossas casas e matam as nossas crianças…/ O sionismo tem de ser derrotado / bang bang bang bang…/ Pensam que suas armas me assustam? (…) / Sou corajosa e não tenho medo de tiros”.

E, por isso mesmo, uma juventude que, a exemplo de Shadia Mansour, também tem feito do Hip Hop um instrumento de luta contra aquilo que os divide para além dos muros sionistas: o machismo, a LGBTIfobia, a xenofobia ou quaisquer outras formas de opressão. Este é o tema central do próximo, e último, artigo.

Mais textos de Wilson Honório da Silva