artigos

HERTZ DIAS | PIB e pobreza no Maranhão: o deus dos ricos e os pobres mortais

Hertz Dias

24 de fevereiro de 2023
star0 (0 avaliações)
Maranhão é o Estado com o maior número de pessoas extremamente pobres do Brasil, aponta IBGE — Foto: Reprodução/TV Mirante

Hertz Dias, professor da rede pública e dirigente do PSTU-MA

“Vamos comemorar! Os grandes investimentos em nosso Estado vêm tendo ótimos resultados. O IBGE aponta que, em 2017, o PIB do Maranhão cresceu 5,3%, quatro vezes mais que a média nacional de 1,3%. É a segunda maior alta do Nordeste e o quarto maior crescimento em todo o país”. (Postagem feita na página do governo do Maranhão, por Flávio Dino, em novembro de 2019)

“2022 ainda nem terminou, e o Maranhão já apresenta o sexto ano consecutivo de recorde na produção de grãos, segundo dados do IBGE. A perspectiva é de crescimento de 4,7% em relação ao ano passado, acima da média nacional que ficou em 3,4%, para cereais, leguminosas e oleaginosas”. (Carlos Brandão, governador do Maranhão, em postagem feita nas suas redes sociais, em outubro de 2022)

“Há uma piada de economistas que diz: Bill Gates entra num bar e, de uma hora para outra, todos os que estão lá são milionários (se dividirmos a riqueza concentrada naquele espaço pelo total de pessoas)”. (David Pilling, editor do jornal britânico Financial Times.)

______________

Uma série de pesquisas publicadas recentemente escancararam o mar de pobreza em que o Brasil e, muito particularmente, o Maranhão estão mergulhados.[1] Espantoso, entretanto, é o grau de naturalização dessa situação. Em nossa opinião, o atual governador, Carlos Brandão, do PSB, assim como os seus antecessores (Flávio Dino, Roseana Sarney, Jackson Lago, …), universaliza os dados do Produto Interno Bruto (PIB)  para esconder o  drama de quem mal consegue se alimentar.

O PIB, enquanto medida econômica das somas de riquezas e serviços de um país ou região, foi criado no contexto da crise capitalista que estourou em 1929 nos Estados Unidos e se espalhou pelo planeta. O seu criador foi o economista Simon Kuznets com a pretensão de mensurar a situação econômica do país e propor saídas para a crise. Em entrevista cedida para a BBC, Diane Coyle, especialista no tema e professora da Universidade de Cambridge, afirmou que Simon Kuznets “começou tentando medir o que era realmente produtivo em um aspecto significativo. O que realmente trazia bem-estar à sociedade”. [2]

Porém, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, o critério para essa medida mudou radicalmente e quem deu a tônica para tal mudança foi o influente economista britânico John Maynard Keynes, que teria dito: “Eu não preciso saber quanto de bem-estar existe, porque estamos em guerra. O que preciso saber é o quanto a economia pode produzir e o mínimo essencial que as pessoas precisam consumir, para saber quanto sobra para financiar a guerra”, conforme registrou Diane Coyle.

Desde então, a tônica passou a ser essa. O PIB não distingue atividade poluente das não poluentes e ainda incorpora ao seu valor as atividades que são utilizadas para remover a poluição, ao invés de deduzi-las. Isso, porque ele só leva em consideração o produto final, inclusive o que é exportado, e não os processos produtivos e o bem-estar das pessoas. Ainda na década de 1930, o próprio Simon Kuznets passou a discordar desse novo formato.

Trazendo para a nossa realidade, não importa se os maranhenses estão passando fome; se o cerrado está ameaçado; se o trabalho escravo é cada vez mais comum entre nós; se os indígenas estão sendo mortos; se um dos meus parentes teve três dos seus cinco filhos assassinados em menos de 10 anos; ou se pessoas doentes ainda são transportadas em redes; o importante é que o PIB está em alta. Vamos comemorar!

Tampouco importa se a declaração de patrimônio por habitante do Maranhão é a menor do país (R$ 6,3 mil), 15 vezes menor que a do Distrito Federal (R$ 95 mil) que ocupa o extremo oposto; ou se somos a unidade da federação com a maior proporção de pobres (57,90%), sendo 72,59% no Litoral e na Baixada.[3] Não, não importa, o que importa é o PIB!

O PIB leva consideração o mundo das mercadorias

Se o mercado mundial exige que se produza mais farelo de soja, nem que seja para alimentar porcos, isso é ótimo para o crescimento do PIB. Mas, se as terras ocupadas para produção de soja fossem destinadas para fins da reforma agrária e utilizadas para produção de feijão, arroz, mandioca, hortaliças para saciar a fome de 94% de nossas crianças, isso não seria bom para o PIB[4].

O PIB não leva em consideração o mundo das pessoas, mas o mundo das mercadorias, não só por ser a lógica interna do PIB em si, mas a lógica do capitalismo. Nele, tudo aparece invertido. Os objetos se humanizam e os seres humanos se reificam. Lamenta-se mais a queda do PIB que a do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

Sendo assim, quem vai chorar por uma criança que morre subnutrida no Maranhão? Se 94% delas vivem em situação de pobreza ou extrema pobreza, é problema de menor importância ou de importância alguma, pois o PIB vai bem. Tanto é que a resposta dada pela Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular (SEDIHPOP) diante da pesquisa divulgada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) foi a de que existem diversos programas “para garantir a infraestrutura e o estímulo dos pais, a fim de que eles tenham seu próprio negócio por meio do Mais Renda, além dos Restaurantes Populares.” [5]

Se o bem-estar das pessoas não entra na mensuração do PIB, tal como havia proposto seu criador, não há porque Carlos Brandão se preocupar com politicas públicas para amenizar esse drama, basta dar declarações  evasivas em que os pais que não conseguem alimentar seus filhos virarão empresários.

E os trabalhadores, por que não se dão conta disso? Porque a burguesia não se apresenta como uma classe social com interesses opostos aos dos trabalhadores, ela aparece diluída na sociedade e as suas ideias aparecem como universais. Assim, todos devem comemorar o crescimento do PIB, mesmo que as geladeiras, as panelas e as barrigas de 56% dos habitantes estejam vazias.

Arrancando o véu dos falsos profetas

Se o capitalismo, de maneira geral, é um mundo de cabeça virada para baixo, no Maranhão é um mundo plantando bananeira com a cabeça enfiada na lama. A distância entre os produtores (trabalhadores) e o produto do seu trabalho se mede pela distância entre a qualidade de vida de uma criança pobre e a de uma burguesa. O PIB não pertence a todos, ele pertence aos ricaços que, mesmo entre os 6%, devem ser um pingo de gente.

O “Deus PIB” do Maranhão ajuda a esconder a situação desoladora da classe trabalhadora e das criança. É preciso desfazer essa consciência fantasiosa e identificar quem produz, como  produz, quem organiza a produção e a distribuição do que é produzido. Por essa via, o PIB deixará de ter vida própria e passará a ser entendido no contexto das relações sociais.

Então, se o PIB produzido no Maranhão em 2020 foi de 67 bilhões, a preços correntes, correspondendo a um incremento de 119, 9% em relação a 2007 (PIB de R$ 30,553 bilhões correntes)[6] porque então apenas uma minúscula parte ficou com a classe que o produziu? Para onde foi destinada essa produção? Onde estão os empregos gerados? Por que os trabalhadores estão desempregados? Por que 94% dos seus filhos vivem na pobreza?

Por esse caminho, arrancamos o véu dos falsos profetas ligados ao governo, e as falsas projeções feitas por seus economistas. A  Federação das Indústrias do Estado do Maranhão (Fiema), por exemplo, faz uma projeção de que o PIB do Maranhão deverá chegar a R$ 133 bilhões em 2026, caso todos os investimentos previstos sejam, de fato, implementados; e que como resultado teríamos 202.788 mil empregos gerados em nosso estado.

Ora, como o próprio governo tem anunciado, o PIB do Maranhão só tem crescido. Porém,  59,1% da nossa força de trabalho está na informalidade e 9,7% desempregada, somando quase 70% de trabalhadores fora do mercado formal de trabalho [7].

Considerando que o estado do Maranhão tem a maior média de filhos por família do Brasil, conforme dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2021, fica mais que explícita a relação entre desemprego e subemprego dos trabalhadores e a pobreza dos seus filhos.

Mesmo em condições desumanas, quem tudo produz são os trabalhadores, só que sem saber que o fazem. Esconder isso é questão de vida e morte para os mais ricos, e o PIB é um desses esconderijos de luxo.

Os governos dizem: “eu fiz hospital x, escola y, estrada z”. Já os empresários atribuem os seus ganhos, as suas qualidades às forças divinas; “Tudo que tenho devo a Deus!”  Já pensou o governador Carlos Brandão afirmando “obrigado, trabalhadores, por toda a alimentação que vocês produzem e nós exportamos”? Ou Wilson Matheus confessando “Obrigado, meus funcionários, se não fosse por vocês eu não estaria entre os 10 homens mais ricos do Brasil”. Imagine a reação desses trabalhadores que não conseguem sequer alimentar os filhos? Por isso, que é mais fácil atribuir a eles ou a uma força sobrenatural, aquilo que só os trabalhadores conseguem fazer, que é produzir as riquezas.

Não se caracteriza um governo, olhando acriticamente para o tamanho do PIB. Racionalmente falando, olhar para a situação das crianças e adolescentes, é um parâmetro mais seguro. A pobreza para a qual foram empurradas é a expressão mais profunda da decadência do Estado, convertido num quintal colonial da China, Canadá, dos Estados Unidos e da União Europeia. Porém, o governo utiliza, conscientemente, o PIB como medida acima de tudo e todos, para não ter que enfrentar o mal-estar em que os trabalhadores e seus filhos vivem. Investimentos em saúde, educação e saneamento básico não constituem a estrutura do PIB.

É preciso reverter a lógica capitalista

É preciso reverter essa lógica para que os seres humanos sejam reumanizados e os objetos desumanizados. A economia precisa ser racionalizada e planificada para atender às necessidades das pessoas e não de um mercado desmiolado que aparece aos nossos olhos como se fosse um deus, tal como o PIB. Essa é uma tarefa histórica que só os trabalhadores poderão realizar.

Mas alguém poderá objetar que: pela profundidade desta mudança, uma mudança revolucionária, ela não aconteceria em escala estadual, e sim nacional? Sim, é verdade, mas o debate acerca dessa necessidade deve ser feito em todos lugares e com o máximo de urgência e ele não está dissociado de algumas medidas que devem se implementadas tais como acabar com isenção de impostos aos grandes grupos empresariais, tributação das grandes fortunas, redução da jornada de trabalho para 30 horas semanais ou 6 horas diárias para geração de empregos e fazer a reforma agrária para aumentar a oferta de alimentos mais baratos. Tudo isso é possível e necessário para que se faça arrancar do mapa da fome e da pobreza 94% de nossas crianças.

Referências

[1] Os dados de duas pesquisas chamam atenção. Uma é das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) intitulada “As Múltiplas Dimensões da Pobreza na Infância e na Adolescência no Brasil: Estudo sobre as privações de direitos que afetam crianças e adolescentes no País”. A outra é um novo “Mapa da Riqueza”, pulicada pela Fundação Getúlio Vargas unindo os dados do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) à da Pnad Contínua: o índice de Gini (instrumento para medir o grau de concentração de renda em determinado grupo). Ambas publicas em fevereiro de 2023.

[2] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-45260572

[3] Os dados são da pesquisa da Fundação Getúlio Vargas no qual nos referimos acima.

[4] Dados da pesquisa da UNICEF indicada acima.

[5] Essa declaração consta numa matéria que foi publicada na página do G1 Maranhão. Leia aqui.

[6] Dados divulgados pela Federação da Indústria do Estado do Maranhão (FIEMA). Para maiores informações, leia aqui.

[7] Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e publicada no final de 2022.