Haiti: Gangsterismo, miséria e crise da dominação capitalista
Otávio Calegari, de Santiago (Chile)
Há vários anos, o Haiti tem vivido uma profunda crise econômica, política e social. Agora, esta crise está se aprofundando e pode conduzir o país a um verdadeiro caos.
Antes de compreendermos a situação atual, devemos voltar um pouco ao passado. Em 2022, em resposta à dura realidade que a classe trabalhadora e os pobres viviam, ocorreram enormes manifestações e importantes greves, que eram continuidade de um processo iniciado em 2018.
Naquela época, escrevemos que o Haiti vivia uma verdadeira rebelião popular. Nossos companheiros do Batay Ouvriyé, central sindical haitiana, com forte presença na classe trabalhadora industrial da capital Porto Príncipe, fizeram vários apelos à mobilização
Desde o assassinato do ex-presidente do Haiti, Jovenel Moïse (em julho de 2021), o governo haitiano tem sido chefiado por Ariel Henry, nomeado Primeiro-Ministro, por Moïse, dois dias antes do seu assassinato. No final de 2021, Henry suspendeu as eleições presidenciais e parlamentares que estavam marcadas (o Parlamento já tinha sido dissolvido), mantendo o poder “quase” unipessoal, apoiado pelo verdadeiro poder no país, os Estados Unidos.
Instabilidade e disputas interburguesas
Devido à enorme instabilidade política, tornada ainda mais explosiva pelas manifestações em massa, pelo poder das gangues e pela fragilidade da polícia haitiana, o governo, há meses, tem solicitado uma nova missão da Organização das Nações Unidas (ONU), para “estabilizar” o país.
Devido à decomposição do Estado haitiano e à incapacidade da burguesia haitiana em chegar a acordos para estabelecer o seu domínio no país, multiplicaram-se grupos armados ligados a determinados políticos, partidos e empresários, cada um com os seus próprios interesses e negócios.
Hoje, alguns líderes destas gangues têm mais poder que a Polícia Nacional. Os mais conhecidos e destacados na mídia são Jimmy Chérizier (apelidado de “Barbecue”), ex-policial e atualmente chefe do “G9”, grupo que reúne nove grupos armados e era muito próximo ao ex-presidente Moïse. Outro é Johnson André (apelidado “Izo”), que lidera o grupo “Vilaj de Dye – 5 Segonn”.
Segundo estudiosos do gangsterismo no Haiti, existem outros líderes ainda mais poderosos, mas menos proeminentes na mídia. Há décadas, esses grupos têm fortes relações com o aparato estatal.
Em meio à crise e à violência, uma população refém e faminta
A crise se agravou nas últimas semanas, com ataques coordenados por várias gangues a instituições públicas e privadas, exigindo a demissão de Henry. Na última quinta-feira (14 de março), a casa do Diretor-Geral da Polícia Nacional do Haiti foi incendiada por um desses grupos.
Motoristas de ônibus denunciam que gangues controlam as estradas, cobrando pedágios dos transportadores, o que aumentou os preços dos alimentos e causou uma diminuição considerável no transporte de mercadorias para diferentes partes do país.
As gangues também mantêm o principal porto do Haiti, em Porto Príncipe, sob seu controle, dificultando o fornecimento de combustível à cidade, ao ponto de que o produto está desaparecendo dos postos, já sendo vendido pelo dobro do preço no mercado paralelo.
Segundo uma análise da ONU, nas próximas semanas poderá haver uma fome devastadora no país. Os níveis de fome em Porto Príncipe já se assemelham aos das zonas de guerra. Hoje, o principal problema não é a produção de alimentos; mas, sim, o transporte de mercadorias para as grandes cidades e a sua distribuição.
Nos últimos anos, esta situação caótica já fez com que mais de 360 mil pessoas se deslocassem internamente, em busca de condições de sobrevivência.
Governo de unidade nacional manipulado pelo imperialismo
Há poucos dias, com o agravamento da crise, Ariel Henry anunciou sua demissão. Henry estava em Porto Rico e não pôde retornar ao Haiti. O primeiro-ministro anunciou que renunciará imediatamente, quando for formado o Conselho de Transição Presidencial (CPT), órgão que pretende assumir o comando do Estado, como governo de unidade nacional entre os diferentes partidos burgueses e organizações empresariais.
A CPT está sendo formada a partir de reuniões realizadas pela Comunidade Caribenha (Caricom), na Jamaica, com a presença de partidos e organizações empresariais haitianos e do Secretário de Estado dos Estados Unidos, Anthony Blinken.
Entretanto, a formação do novo governo ainda não é uma realidade, pois uma profunda crise permanece aberta no Estado haitiano, totalmente incapaz de organizar a dominação burguesa e imperialista no país.
Uma nova tragédia
A possibilidade de uma nova ocupação militar
O imperialismo norte-americano tem tido dificuldades em organizar uma nova missão de ocupação, uma vez que a maioria dos Estados que cumpriram esse papel em 2004 (com o início da Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti, ou Minustah), hoje, mostram relutância em levar a cabo uma nova invasão.
Há algumas semanas, o Quênia aceitou liderar a nova intervenção militar, que até agora não saiu do papel devido às exigências do governo do país africano, que só quer ocupar o país apenas após a formação da CPT, e à dificuldade dos Estados Unidos liberarem dinheiro para a transferência de tropas do Quênia.
Os governos dos EUA e do Canadá são os principais promotores da nova ocupação e, também, seus principais financiadores. É muito provável que a ocupação comece nas próximas semanas, com a formação da CPT. No entanto, devido à magnitude da crise, também existe a possibilidade de não haver condições para a formação do governo provisório e realizar uma ocupação nos moldes que estão sendo propostos.
Único interesse do imperialismo
Uma nova ocupação significaria um retrocesso para o povo haitiano. Um confronto entre tropas de ocupação e gangues armadas poderia significar um enorme derramamento de sangue, afetando centenas de milhares de famílias. Também é possível que os EUA consigam negociar com algumas destas gangues, fazendo acordos para que mantenham zonas de influência, para permitirem a “governabilidade”.
O objetivo de uma nova ocupação é fazer o mesmo que fez a Minustah. Ou seja, garantir uma certa estabilidade política e econômica para que as empresas estrangeiras continuem a explorar a mão-de-obra barata da classe trabalhadora haitiana e conter o fluxo migratório do Haiti para outros países, como os EUA, Canadá, República Dominicana, dentre outros.
Nada foi resolvido
A ONU ocupou o Haiti durante 13 anos, sob o comando dos EUA, e nenhum dos problemas sociais básicos foi resolvido. Portanto, todas as organizações da classe trabalhadora, em todo o mundo, devem opor-se a uma nova ocupação, que só trará mais sofrimento e miséria ao Haiti.
Por outro lado, a situação atual é insustentável e poderá conduzir a uma guerra civil ou a uma miséria ainda maior para a população. Portanto, é necessário discutir uma saída dos trabalhadores e trabalhadoras para a crise.
Saída
É preciso reagir à barbárie
Não é exagero dizer que existe uma situação bárbara no Haiti, principalmente na capital do país. Os níveis de miséria e violência atingem limiares desconhecidos noutras nações das Américas, chegando muito perto aos dos países mais pobres de África.
A população vive um verdadeiro inferno, sem saber se terá o que comer no dia seguinte ou se seus familiares serão assassinados pela polícia ou por grupos armados. Segundo relatos dos nossos colegas do Batay Ouvriyé, a situação das organizações populares é totalmente defensiva, uma vez que as manifestações populares são frequentemente atacadas por grupos armados.
Organizar a autodefesa e a luta pela revolução
É muito difícil opinar sobre quais medidas poderiam ser tomadas pelas organizações operárias, populares e camponesas no país, uma vez que as condições de segurança para a realização de reuniões, assembleias ou mobilizações são mínimas. Há alguns meses, houve uma reação popular importante, com linchamentos de membros de gangues. Este é um exemplo importante de reação popular.
Em função da situação atual, qualquer possibilidade de se ter uma solução operária e popular para a crise depende da organização da autodefesa dos setores operários, populares e camponeses, com a formação de milícias populares armadas.
Não há outra forma de enfrentar as gangues, a polícia e uma possível ocupação senão armando os trabalhadores e trabalhadoras. Não podemos dizer como isso pode ser feito, seja através do confisco de armas que entram pelos portos, de ataques surpresa a gangues, de ataques a delegacias e quartéis de polícia ou por outros meios.
As milícias operárias, populares e camponesas deveriam estar a serviço da organização democrática da classe trabalhadora nas fábricas, nos bairros e no campo. Uma revolução operária, camponesa e popular que varra as gangues e o decadente Estado haitiano é a única maneira de libertar o país da sua crise permanente.
A única saída
Esta revolução deveria repensar toda a organização social e econômica do país, começando pela nacionalização dos grandes bancos, das companhias telefônicas, das fábricas e das terras dos grandes proprietários.
Uma das prioridades deve ser garantir o abastecimento das cidades, com alimentos produzidos no campo. No Haiti, grande parte da produção agrícola e do abastecimento às cidades é realizada por pequenos empresários. É necessária uma aliança entre este setor e os trabalhadores das grandes cidades.
A burguesia e o imperialismo haitianos provaram ser totalmente incapazes de resolver a enorme crise humanitária que o Haiti atravessa há várias décadas. Somente um governo da classe trabalhadora com o campesinato pobre poderá ditar outro rumo para o Haiti.
Saiba mais
O que foi a Minustah
Em agosto de 2004, o exército brasileiro participou e liderou uma ocupação colonial no Haiti, sob a cobertura de uma ‘missão de paz’ da ONU. A Minustah, como ficou conhecida, foi uma exigência do imperialismo norte-americano, na época presidido por George W. Bush.
Em seu primeiro mandato, Lula atendeu prontamente ao chamado de Bush e aceitou que o Brasil liderasse a ocupação. A Missão durou até 2017 e acumulou um farto cardápio de violações. Em 2005, um ataque na favela Cité Soleil de Porto Príncipe, comandada pelo general Augusto Heleno (vejam só!), deixou centenas de feridos e pelo menos 80 mortos.
Em 2011, soldados da Minustah foram acusados de estarem envolvidos em vários casos de estupros e agressão sexual. Em 2010, um surto de cólera matou 10 mil haitianos. Os soldados da Minustah do Sri Lanka introduziram a doença no país.