Nosso adeus a Gal Costa, a voz de cristal da Tropicália
Roberto Aguiar, Salvador (BA)
Em uma entrevista, Maria Bethânia diz que a voz de Gal Costa tem a preciosidade de um cristal. Acho que não há definição melhor. Hoje, essa voz cristalina, a mais bela e potente da Tropicália, silenciou-se. Indiscutivelmente, o Brasil perdeu uma das suas maiores cantoras. Como disse Gilberto Gil, amigo e parceiro de tantas canções, isso é “muito triste e impactante”.
Nascida em Salvador, capital da Bahia, no dia 26 de setembro de 1945, Maria da Graça Costa Penna Burgos, tinha 77 anos de vida e 57 anos de carreira. Em sua voz, registrou clássicos da Música Popular Brasileira como “Baby”, “Meu nome é Gal”, “Chuva de Prata”, “Meu bem, meu mal”, “Pérola Negra” e “Barato Total”.
Sempre amou a música, acompanhava o melhor da MPB pelo rádio. Tinha uma admiração enorme por João Gilberto, seu maior ídolo. “”Minha grande e fatal influência é João. Ele era um homem que tinha aquele canto com uma estética absolutamente genial”, disse em entrevista ao jornal Folha de São Paulo (fevereiro/2021).
Foi balconista em uma loja de discos em Salvador. Gostava de cantar e tocar violão. Conheceu Caetano Veloso no início dos anos 1960, de lá para cá não se largaram mais. Em 1965, ela apresentou músicas inéditas de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Lançou “Eu vim da Bahia”, samba de Gil sobre a origem da cantora e do compositor. 1967, lança com Caetano o seu primeiro álbum, intitulado “Domingo”. Juntos, cantam “Coração vagabundo”, música de Caetano Veloso, que permaneceu no repertório de Gal. Foi somente neste disco que o nome “Gal” apareceu, antes disso, era chamada pelos amigos de “Gau” e “Gracinha”.
Gal atual
Gal Costa foi uma revolução das vozes e dos costumes na música brasileira. Participou do disco “Tropicália ou Panis et Circencis” (1968), álbum-manifesto que foi pedra fundamental do movimento tropicalista. Foi voz ativa na luta contra a ditadura militar. Enquanto seus amigos-irmãos Caetano e Gil estavam exilados na Europa, ela subia aos palcos com uma postura revolucionária para uma mulher naquela época.
Seguiu assim no processo de redemocratização. Em 1994, protagonizou uma cena emblemática. Durante uma apresentação do show “O Sorriso do Gato de Alice” no Rock in Rio, enquanto cantava “Brasil, Mostra a Tua Cara”, composição de Cazuza, com uma postura firme e agressiva, deixou seus seios à mostra, o que gerou polêmica na época.
Agora, durante a pandemia, se posicionou firmemente contra a postura genocida do presidente Jair Bolsonaro. Em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, em fevereiro do ano passado, disse:
“Tá muito difícil com Bolsonaro. Fora Bolsonaro. Não sou uma pessoa que entende muito de política, mas acho que o regime democrático é o melhor para se conviver com as diferenças. E acho que o governo tem a obrigação de cuidar das pessoas. Acabar com a desigualdade social. Na pandemia, ficou evidente a miséria e a pobreza. Todo governo tem obrigação de cuidar dos mais pobres, do bem-estar e da saúde do povo”.
Multifaces
Gal Costa tinha trânsito livre na MPB. Foi a voz potente da Tropicália e suas canções de protesto, mas não resumiu a isso. Passeou pelo samba, por marchinhas de carnaval, pelo suingue de Jorge Bem Jor, pela bossa nova de Tom Jobim e João Gilberto, pelas canções praieiras de Dorival Caymmi, pelo baião de Luiz Gonzaga e pela canções de amor de Lupicínio Rodrigues. Uniu a Tropicália com a Jovem Guarda, cantando Roberto e Erasmo Carlos.
Gal sempre teve uma forte ligação com o teatro. Foi parte da inauguração do teatro Vila Velha, em Salvador, em 1964, com o espetáculo “Nós, Por Exemplo”. No ano seguinte, junto com seus amigos, apresentou “Arena Canta Bahia” e “Em Tempo de Guerra”, dirigidos por Augusto Boal, em São Paulo. Em 1971, dirigida por Waly Salomão, foi responsável por um dos espetáculos de maior repercussão da história da MPB, “Fa-Tal”, que depois viraria um dos seus álbuns mais cultuado.
Junto com Maria Bethânia, Gilberto Gil e Caetano Veloso criaram o grupo conhecido como “Doces Bárbaros”, que protagonizou shows memoráveis, resultando num disco definidor da contracultura da década de 1970.
Na atualidade, Gal buscou sintonia com a nova geração de cantores e compositores brasileiros. Desde o disco “Estratosférica” (2015), sob produção musical de Kassin e Moreno Veloso, ela deu voz a músicas inéditas de Arthur Nogueira, Céu, Criolo, Mallu Magalhães e Zeca Veloso, entre outros nomes da geração anos 2010. No disco “A Pele do Futuro” (2018), incluiu músicas dos novatos Tim Bernardes, Silva, Emicida e Marília Mendonça (1995 – 2021).
Gal estava em turnê com o show “As Várias Pontas de uma Estrela”, no qual revisitava grandes sucessos dos anos 1980, que marcaram o cancioneiro popular da MPB. Ela havia dado uma pausa em shows, após passar por uma cirurgia para retirar um nódulo na fossa nasal direita, em setembro.
Infelizmente, não se recuperou da cirurgia. Hoje, 9 de novembro de 2022, a MPB perde uma de suas estrelas. O nome dela era GAL, FATAL, TOTAL, TROPICAL. Gal da Bahia, do Brasil e do Mundo. A nossa “tigresa de unhas negras e íris cor de mel”. A Vaca Profana da MPB, que com sua rebeldia e revolta, sem temer e titubear, sempre derramou o “leite mau na cara dos caretas”.
Nossa admiração e respeito por Gal será eterno. Ela deixa um filho, Gabriel (17 anos), dezenas de amigos e milhões de fãs com o coração partido. Ficamos com as lembranças e suas canções, nosso amor por Gal será infinito e sublime.
Gal, descanse em paz! (26 de setembro de 1945 – 9 de novembro de 2022)