Negros

Flavinho, presente! Que seu axé e garra continuem pulsando em nossas lutas!

Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

7 de junho de 2024
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Ser militante “organizado” há muito tempo tem uma dimensão que, às vezes, lamentavelmente, se perde em meio às lutas e disputas que atravessam e moldam nossas vidas: as relações humanas e amizades que estabelecemos pelo meio do caminho, muitas vezes atropeladas pelos ritmos e “sentidos” dos movimentos e das passeatas; estremecidas pelo “calor do debate” e os “destemperos”, em meio às polêmicas políticas, ou desafiadas por legítimas divergências que nos colocam em campos distintos, em função de diferentes análises e concepções do mundo.

Uma dimensão que, contudo, sempre tentei cultivar e valorizar bastante e, por isso mesmo, foi esta a primeira coisa que me veio à mente quando, há pouco, recebi a tristíssima notícia do falecimento do Flávio Jorge, o Flavinho, militante histórico da luta antirracista e do Movimento Negro Unificado (MNU), que se fez presente, sempre e com muita garra, em todas as lutas importantes que aconteceram neste país nas últimas décadas.

Por isso, decidi escrever este texto. É, em primeiro lugar, uma forma de abraço a seus familiares, os companheiros e companheiras do MNU e todos aqueles e aquelas que militaram com o Flavinho. Escrevo para saudar sua memória e suas lutas, mas também como alguém que teve o prazer de chamá-lo de amigo.

Conversas à sombra do Baobá

Naquela espécie de filme que se passa em nossas mentes diante da perda de gente querida, as imagens que me remetem ao Flavinho sempre têm discussões acaloradas e polêmicas sem-fim, com uma cara que, meio franzino e dono de um sorriso lindo, largo e acolhedor, virava um verdadeiro pantera negra, quando colocava o dedo em riste, crescia pra cima do povo, e assumia uma expressão que, tenho certeza, todos e todas que militaram com ele conhecem muito bem.

Cenas sempre entrecortadas por muitas, muitíssimas, conversas e troca de ideias, seja nos corredores de reuniões e eventos do movimento, seja nos botecos e todos aqueles cantos e festas que juntam a negrada, principalmente os ativistas. Um tipo de relação que, tenho certeza, foi moldada por nossas histórias, que compartilham uma “ancestralidade” diferente, mas, pra mim, tão importante quanto àquela estabelecida pela Diáspora forçada e simbolizada pelos Baobás.

Conheci o Flavinho no início dos anos 1980, quando ambos fazíamos parte de correntes que impulsionaram a construção do Partido dos Trabalhadores. Eu havia recém me tornado militante da Convergência Socialista (CS, uma das correntes que deu origem ao PSTU) e ele atuava na Democracia Socialista (DS).

Assim, já nos conhecemos nos “estranhando”. Mas, até mesmo por compartilharmos alguns traços pessoais e um “jeito de ser” semelhantes, sempre nos demos bem. Algo que, pra mim, tem muito a ver com a coisa da “ancestralidade” compartilhada.

Apesar de nossas muitas divergências, no decorrer das décadas de militância conjunta no movimento, sempre houve uma camaradagem resultante, eu acredito, de que ambos nos formamos, como negros e militantes, à sombra de um mesmo “Baobá político”: o trotskismo.

Pra mim (e sei que é assim para todos e todas que, hoje, militam no PSTU) é impossível não reconhecer nele uma das raízes de nossa História, já que sua militância teve início na Liga Operária, em 1977, o grupo que, posteriormente, veio a ser a Convergência Socialista, na qual Flavinho militou até 1979.

Assim, quando nos encontramos, também foi impossível que não se estabelecêssemos uma espécie de respeito mútuo e, muitas vezes, cumplicidade. No mínimo, havia sempre muito sobre o que papear e muitas histórias pra contar.

Por exemplo, não havia como não bombardeá-lo com perguntas, sabendo que foi, como militante da CS, e defendendo políticas e programa que haviam sido elaboradas no interior da organização, que, em 1978, ele esteve nas escadarias do Teatro Municipal, defendendo a formação do Movimento Negro Unificado, o MNU. Algo que outro malungo que faz parte desta História, Petrônio Domingues, sintetizou em um texto, “Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos”, publicado em 2007:

“(…) O embrião do Movimento Negro Unificado foi a organização marxista, de orientação trotskista, Convergência Socialista. Ela foi a escola de formação política e ideológica de várias lideranças importantes dessa nova fase do movimento negro. Havia, na Convergência Socialista, um grupo de militantes negros que entendia que a luta antirracista tinha que ser combinada com a luta revolucionária anticapitalista (…).A política que conjugava raça e classe atraiu aqueles ativistas que cumpriram um papel decisivo na fundação do Movimento Negro Unificado: Flávio Carrança, Hamilton Cardoso, Vanderlei José Maria, Milton Barbosa, Rafael Pinto, Jamu Minka e Neuza Pereira.” (p. 113)

Ter convivido com esta geração que integrou, no interior da organização em que eu estava começando a militar, o “Núcleo de Negros Socialistas”, foi um privilégio e um aprendizado. E não há o que apague da minha memória que eles foram aqueles e aquelas que ousaram fazer um resgate mais do que necessário – na época, muito em função dos estragos criminosos que o stalinismo tinha feito em relação ao debate sobre opressões – da tradição do verdadeiro marxismo revolucionário, que sempre entendeu a relação inseparável da luta o racismo e demais formas de opressão

Coisas cuja importância, pra mim, continua inabalada, mesmo que tenhamos seguidos caminhos distintos. Algo que, sei, também é reconhecido por aqueles que, felizmente, continuam na ativa, como Miltão e Rafael, como foi por outros que sempre deixarão saudades, como o Hamilton e, agora, o Flavinho.

Um militante antirracista incansável, forjado na luta contra a ditadura

Muitas das histórias que ouvi do Flavinho, e também de compas daquela época com os quais continuo militando, como Zé Maria, Bernardo e Edu, têm a ver com o papel que ele cumpriu na luta contra a ditadura, ainda na época da Liga, em 1977, como dirigente negro e estudantil na Pontifícia Universidade Católica, a PUC.

Foi na mesma época que um grupo de operários e estudantes foram presos pela polícia, distribuindo panfletos em Santo André, no ABCD. Os oito presos eram militantes ou simpatizantes da então Liga Operária, dentre eles Celso Brambilla, Márcia Basseto Paes e José Maria de Almeida, o Zé Maria. Todos estavam sendo barbaramente torturados, foram enquadrados na famigerada Lei de Segurança Nacional (LSN) e eram mantidos incomunicáveis.

Foi neste momento que Flavinho e outros membros da Liga, tanto na PUC quanto na USP (além de universidades do interior, como São Carlos e Campinas), cumpriram um papel fundamental para organizar, no dia 2 de maio, um ato, no interior da PUC, com cerca de 5 mil estudantes, que detonou uma poderosa onda de protestos, a maior desde 1968, se tornando um dos marcos fundamentais do começo do fim da nefasta ditadura.

Lembro-me, ainda, que Flavinho falava com os olhos radiantes sobre aqueles dias, sobre a greve que envolveu dezenas de milhares de estudantes em defesa da soltura dos presos, sobre um ato de rua, ocorrido dias depois do da PUC, que levou cerca de 7 mil pessoas às ruas, enfrentando um verdadeiro bombardeio de gás lacrimogênio. Dias difíceis, mas carregados de esperanças, mesmo para aqueles e aquelas que, como ele, também conheceu as prisões da ditadura.

Se estas histórias abriam as porteiras pra várias conversas, as que se referem à reorganização do movimento negro; às articulações conspiratórias e reuniões clandestinas nos bailes de “funk” e “soul music”; à sua luta, nunca abandonada, por organizar os setores mais periféricos, dentre várias outras, sempre permitiram que nos cruzássemos pela vida com carinho e respeito.

Foi assim, por exemplo, que, quando eu ainda militava com a CS no interior do PT, passamos horas e mais horas em reuniões, geralmente nada “fáceis”, que resultaram na formulação do primeiro programa do partido para a questão racial; nos encontrávamos país afora nos debates sobre cotas, nos anos 1980; participamos de debates no Núcleo de Consciência Negra na USP, quando o fundamos em 1987; estivemos na organização da “Marcha Zumbi dos Palmares”, que levou cerca de 30 mil pessoas para Brasília, em 1995; nos articulamos para organizar a ocupação do Shopping Higienópolis, em 2012, contra o genocídio da juventude negra, levado a cabo, então, por ninguém menos que Geraldo Alckmin.

O axé dos “griots” nunca se dissipa

Enfim, lembrar do Flavinho é lembrar de alguém com quem sempre foi possível “golpear junto”, mesmo que seguíssemos caminhos separados. Nossas trajetórias tornaram impossível que contornássemos ou amenizássemos nossas diferenças. Algo bastante público. E não teria como ser diferente.

No decorrer das décadas, sempre petista, Flavinho ajudou a criar, militou ou dirigiu várias organizações. Fez parte da Executiva da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen), foi secretário Nacional de Combate ao Racismo do PT, e atualmente fazia parte Conselho de Participação Social (o “Conselhão”) do governo Lula.

Como disse pra ele, um dia, mesmo respeitando toda sua trajetória, acredito que um de seus “legados” mais importantes é ter sido um dos responsáveis, quando atuava na Fundação Perseu Abramo e no Instituto Soweto, pela organização e publicação da versão facsimilar das vinte edições da seção “Afro-Latino-América”, publicada no jornal “Versus”, entre 1977 e 1979.

E não lhe disse isto só porque o período coincide com a atuação de militantes da CS na editoria do jornal, ou, inclusive, por termos, nós mesmos, no PSTU, alimentado a intenção de fazer esta publicação. Mas porque os textos ali publicados, até hoje são fontes fundamentais para entender a História dos movimentos negros no Brasil e no mundo, com destaque para a África e a América Latina, com instigantes elaborações e debates envolvendo raça, classe e revolução.

É por isso, também, que esta homenagem ao Flavinho é a saudação a um “griot” de nossos tempos. Alguém que, como os homens e mulheres na África, carrega, preserva e conta nossas histórias e saberes. Histórias com as quais nem sempre podemos concordar, mas são, inegavelmente, parte dos erros e acertos, dos debates e polêmicas, que cumprem papéis fundamentais na construção do futuro.

E não tenho dúvida de que Flavinho sonhava com um futuro sem racismo, sem opressões, sem genocídios, mais livre, mais igual e mais justo. Como também sei que, mesmo, contraditoriamente, num governo de conciliação de classe, ele nunca abandonou a concepção de que, como Malcolm X nos ensinou, “não há capitalismo sem racismo”.

E é isto que me remete à foto que aparece na matéria. Foi uma das últimas vezes em que nos encontramos, não por acaso num ato contra o genocídio negro, na Paulista, em agosto de 2023. Na época escrevi algo nas redes, saudando este encontro da velha e da velhíssima guarda, dentre eles, Flavinho, Miltão, Rafael, Luis Carlos, que militou comigo no NCN, e o Cuti, do Quilombhoje Literatura.

E é com esta imagem em mente que me despeço do Flavinho, com certeza também em nome de meus companheiros e companheiras do PSTU (vide nota da Direção Nacional do partido), reafirmando que suas lutas e sua vida não serão esquecidas. Também fazem parte das nossas. Tanto dos que tiveram o prazer de militar e conviver com ele, quanto das futuras gerações. E, quando, “fizermos Palmares de novo”, com certeza ele estará lá.