Fela Kuti e sua revolução sonora
No dia 15 de outubro, comemora-se o aniversário de Olufela Olusegun Oludotun Ransome-Kuti, conhecido mundialmente pela alcunha artística de Fela Kuti. Controverso, polêmico, ou como o próprio se definia: “superstar, cantor, músico, panafricanista, poligâmico, místico e lenda”, Fela foi um dos responsáveis por sacudir a música popular ao criar seu próprio gênero, o Afrobeat, onde a complexidade do jazz e a psicodelia dos anos 60 e 70 se encontraram definitivamente com a música africana.
O contexto de sua obra, porém, deriva de toda uma mudança fundamental no que seriam as produções da época. Se é verdade que Bob Marley, Peter Tosh e Lee “Scratch” Perry tornaram a Jamaica, o rastafarismo e os inúmeros ícones culturais e sociais da pequena ilha no Caribe poderosos símbolos para o que seria o reggae na trilha sonora das revoluções africanas, Fela foi tão contestador quanto, se não mais: autodeclarado líder de sua própria nação (a República Kalakuta), seu sucesso em seu país (a Nigéria) e consequentemente no mundo, colocavam-no em choque permanente contra o regime militar nigeriano. Os gigantes do reggae podem ter sido os pastores de uma nova era. Mas o verdadeiro incendiário das multidões foi Fela Kuti.
Quem foi Fela Kuti – os primórdios
Fela nasceu em 1938, em um berço burguês: sua mãe é Funmilayo Ransome Kuti, aristocrata, professora e uma das ativistas mais populares pelos direitos das mulheres na Nigéria – sendo apelidada de “Mãe da África”. Já seu pai, Israel Oludotun Randsome-Kuti, foi um popular pastor e líder político entre os professores. Educado aos refinados modos da corte Iorubá, aos 8 anos, seu pai matricula-o na escola de música para aprender as primeiras notas do piano. Esse fato foi fundamental para tornar Fela um obcecado por música, se acostumando desde criança a longas sessões de ensaios e jams, como são chamados os encontros onde músicos de jazz improvisam.
Em 1958, com apenas 20 anos, sua mãe, então viúva, decide mandá-lo para Londres, na esperança de que uma vida longe da rica cena musical da capital nigeriana Lagos fosse um estímulo para o rapaz se tornar doutor. Fela, porém, viajou com outros objetivos: ao desembarcar, cancela a matrícula na faculdade de medicina e se inscreve para a faculdade de música. Incialmente, forma o Ransome-Kuti and His Highlife Rakers, chegando inclusive a ter notoriedade na noite londrina com dois discos, mas ele logo se cansaria. Apenas um ano depois, demite todos os músicos e refaz a banda, agora com o nome de Koola Lobitos, e decide só aceitar músicos da África Ocidental e do Caribe na busca de seu estilo próprio.
Em 1963, com o diploma debaixo do braço e um proeminente emprego como caça-talentos na sucursal nigeriana da emissora estadunidense NBC, Fela retorna a Lagos, onde reformaria sua banda novamente com músicos locais. Ele usa seu emprego como ponte para contratar os músicos mais proeminentes da cidade, e torna o Kooba Lobitos um fenômeno entre os amantes de jazz. Ao que parecia, os temores da mãe foram por água abaixo: Fela era feliz, bem-sucedido com música em seu próprio país, gozava de um emprego estável e construía sua família.
Em 1969, porém, a Nigéria viraria de ponta cabeça em uma Guerra Civil, que colocaria o país em um estado de sítio sem prazo para acabar. O país, que já vivia sob as pesadas botas de uma sequência de golpes militares, fechava-se por completo a qualquer manifestação criativa, e Fela, temendo por sua carreira, recebe de bom grado o convite para uma temporada nos Estados Unidos. Daí em diante, o então criativo músico torna-se o verdadeiro furacão para a fúria dos poderosos da Nigéria.
Os anos 1970 – a fúria negra toma as ruas e as ondas sonoras
Se é verdade que Fela sempre foi esclarecido dado seu berço, por outro lado, ele sempre gozou de seus privilégios de classe. Longe de uma vida de dificuldades, Fela Kuti não tinha até os anos 1970 as populares histórias de perrengue que povoam tantos contemporâneos. Não havia traços da pulsante rebeldia que povoam o Afrobeat em sua obra, o discurso pela união de todos os povos africanos, ou sequer críticas à indústria musical e à ditadura nigeriana quando desembarcou para essa temporada nos Estados Unidos.
Sua vida é radicalmente alterada quando, em meio a uma apresentação, Izsadore Smith, importante ativista dos Panteras Negras em uma das maiores células do partido nos Estados Unidos – a regional Los Angeles – fita os olhos em Fela no palco. Enquanto Fela crescera só se preocupando com a carreira, Izsadore, seguindo a trilha de muitos militantes, começara no movimento estudantil na faculdade de Antropologia. Ainda caloura, descobriu que descendia de jamaicanos traficados ilegalmente aos EUA. Era praticamente o oposto: enquanto Fela Kuti fugia, Izsadora abraçava suas raízes, empunhava seu black e seu orgulho nas ruas contra o verdadeiro massacre que a polícia da Califórnia promovia na época, ostentando orgulhosamente o título de polícia mais assassina dos Estados Unidos.
O affair de ambos, ainda que curto, mudara para sempre a vida de Fela. É Izsadora que apresenta para ele a obra de Malcom-X, leva-o para reuniões dos Panteras Negras e mostra para ele os trabalhos de toda uma geração revolucionária de músicos. Nina Simone se reinventava, entrando de cabeça nas lutas pelos direitos negros. Miles Davis usava e abusava dos experimentos psicodélicos de Hendrix e Sly nos anos 1960 enquanto declarava em entrevista: “Sei que já fiz tudo pela música, mas não me chame de lenda viva. Lendas usam bengala, e eu estou produzindo. Me chame de Miles, Miles Davis”. Outros artistas então jovens, como Betty Davis e George Clinton (com sua gangue Parliament/Funkadelic) também tomavam de assalto as ondas sonoras estadunidenses, para o desespero da sociedade americana. Mas nenhum desses gêneros arrepiou tanto os cabelos quanto a invasão jamaicana.
Uma das terras “mãe” do panafricanismo por conta de Marcus Garvey, a Jamaica, por uma série de características distintas de sua história e de sua indústria musical (que valem inclusive outro texto), tornou-se um dos países que mais exportava artistas para o mundo ao longo da década. Famosos pela criação dos soundsystens nos anos 1950 (os populares “paredões”, como são chamadas as estruturas do lado de cá), os jamaicanos espalhados em uma imensa comunidade de imigrantes mundo afora difundiam o ska, o rockysteady e o reggae nos guetos dos Estados Unidos e da Inglaterra, transformando sua cultura num verdadeiro fenômeno nas periferias das capitais ocidentais.
Esse alcance, porém, trata do fenômeno nos Estados Unidos e na Inglaterra, que ainda que tenha sido imenso, não chegou perto do verdadeiro terremoto que a música jamaicana causou na África. A semelhança dos africanos com os rastafari, que releram a obra de Marcus Garvey e tornaram em demônio o colonizador, trocaram a terra sagrada de Jerusalém pela Etiópia e Jesus por Haile Selassie, o último príncipe do império Etíope (referenciado como Jah) tornaram o reggae um sucesso sem precedentes em todo o continente.
Grupos revolucionários em toda a África bradavam junto com Bob Marley e os Wailers “Get up and stand up for the rights/get up and stand up, don´t give up the fight!” (“Levante-se e permaneça de pé por seus direitos/Levante-se e permaneça de pé, não desista da luta!”). Izsadore levava Fela em seus braços para conhecer tudo isso, apresentava-o o mundo, ao passo que o músico, após os 30, reconhecia pela primeira vez o valor da luta de sua mãe, o crescimento do panafricanismo que tomava também as ruas da Nigéria e toda a luta de seu continente contra a colonização.
Por problemas contratuais, Fela é forçado a voltar para a Nigéria, mas volta transformado. Muda sua banda para “Africa 70”, e adota definitivamente o formato de big band, com mais de dez músicos sobre o palco, tornando suas apresentações um verdadeiro espetáculo. E forma sua própria comuna, a República Kalakuta, um estúdio e residência para todos que tivessem disposição para adotar seu próprio compromisso: o fim da ditadura nigeriana e do abuso de poder sobre seu povo.
Kalakuta X a ditadura
Além de seu próprio estúdio/comuna, com suas economias, Fela reforma uma conhecida boate na Nigéria, o Afro Spot, localizada dentro de um hotel em Lagos, e transforma o espaço na Afrika Shirne, em um movimento para treinar suas apresentações, e, ao mesmo tempo, ampliar seu público cativo. É desse movimento sua fase mais criativa, quando passa a investir na criação de seu gênero particular, o Afrobeat.
Fundindo suas experiências da música estadunidense com sua bagagem em gêneros africanos, Fela aumentou ainda mais o formato tradicional das bandas de jazz, adicionando, além dos elementos do piano, conjunto de sopros (sax, trompete, clarinete, entre outros.) e bateria; outros elementos percussivos tradicionais da Nigéria com coros africanos.
Não havia regras para a execução do Afrobeat: os músicos se prostavam no palco, revezavam-se entre as funções e passavam horas a fio tocando e repetindo os movimentos, em um compasso rítmico frenético. Isso dava às apresentações um ar de constante novidade, já que nenhum show da Africa 70 era igual ao outro. Como sua boate estava dentro de um dos hotéis mais famosos de Lagos, Fela começa a notar em seu público pessoas de toda a África, e passa a seguir seus contemporâneos jamaicanos que misturavam o creole jamaicano e variações linguísticas dos rastas com versos em inglês. Dessa invenção, surge toda uma fusão entre o Iorubá e o inglês, fazendo suas gravações serem distribuídas por todo continente.
Ao longo de 7 anos (1970-1977), Fela e sua banda emergem em toda a experimentação que o Afrobeat podia proporcionar, ao mesmo tempo em que tornavam seu controverso estilo de vida e seu discurso anticolonial cada vez mais presentes nas apresentações. A república Kalakuta, para além de ser uma verdadeira antena de tudo que acontecia de mais vanguardista na música africana, abrigava revoltosos de todo o continente, promovia o amor livre entre os residentes e organizava artistas de todas as formas – dança, teatro, cinema – compromissados na luta pela derrubada das ditaduras africanas. Tal postura tornou o local alvo de ataques constantes do exército nigeriano. Prisões e torturas dos membros da comuna, tiroteios ao local e ameaças frequentes às famílias faziam parte da rotina do grupo, que fazia cada vez mais sucesso na juventude nigeriana.
Em 1974, após o lançamento do primeiro disco formal de Afrobeat, o exército local tenta forjar uma prisão definitiva para Fela, entrando na Kalakuta com dois cigarros de maconha e um mandato de busca. Percebendo a tentativa, Fela encontra os cigarros e engole-os, mas a polícia o leva a prisão e mantém ele lá na tentativa de encontrar os cigarros em suas fezes. A popularidade do músico, porém, atingia até dentro dos muros da prisão, e com a ajuda de outros presos, Fela troca as fezes com outra pessoa e é liberado. O incidente serve de inspiração para um de seus discos mais populares, o Expensive Shit (“Merda cara”, em inglês).
O tiro pela culatra foi tamanho nesse episódio que Fela torna-se de fato um nome a ser considerado como líder de toda a nova geração, e o músico passa a participar de reuniões constantes com grupos paramilitares. É dessa época que surge o disco considerado por muitos sua obra prima, Zombie, lançado entre 1976 e 1977.
No disco, Fela descreve os soldados do exército nigeriano como zumbis, submissos à comandos estúpidos. O álbum chega a primeiro lugar das paradas em diversos países africanos, e uma espécie de grito de guerra nas manifestações continente afora. Enquanto Fela bradava misturando inglês e iorubá: “sem cérebros, sem trabalho, sem bom senso, esquerda e direita, diga a ele para matar, diga a ele para morrer, esquerda, direita”, as cantoras de sua banda no final de cada verso repetem: “zumbi, zumbi, zumbi”.
Isso catapulta seu nome de um problema local para um problema internacional, causando a fúria final do exército contra a República Kalakuta. Em um ataque sem precedentes, em 1977, o exército invade o estúdio com nada menos que mil soldados, espanca todos os presentes e mata Funmilayo, mãe de Fela, arremessando-a de uma janela. O estúdio é incendiado e centenas de registros não lançados são queimados. Sua boate também é invadida e destruída, tornando seu nome proibido em praticamente em todas as casas de show da Nigéria. Fela responde enviando o caixão da mãe para o quartel principal em Lagos e lançando duas músicas sobre o episódio, mas o estrago estava feito. Praticamente sancionado, Fela começa a viver de suas economias e enfrentar dificuldades.
Queda na produção e carreira política
O ataque ao estúdio Kalakuta tem o duplo impacto que, ao mesmo tempo em que encerrou a era mais criativa de sua carreira, promovera seu nome como o grande rebelde da música africana. Seus shows fora da Nigéria, pois o próprio praticamente não conseguia mais tocar no país, tornam-se cada vez mais incendiários. Sua situação chama a atenção do mundo para o Afrobeat, e o artista passa a se apresentar nos palcos dos grandes festivais de jazz mundo afora. Mas as constantes perseguições políticas simplesmente não deixavam-o recuperar todo o patrimônio, levando a um longo período de dificuldade financeira.
Nos anos 1980, com a primeira eleição democrática da Nigéria em mais de dez anos, o próprio lança seu partido e se intitula o “Black President”. Sua candidatura é recusada e o partido cassado. Em 1984, os militares retornam ao poder, e Fela é preso acusado de corrupção, com poucas provas. Agora renomado internacionalmente, seu nome envolve uma campanha que dura mais de um ano, e o músico é liberto em 1986. Em 1987, com os dez anos do ataque à Kalakuta, movimentos e partidos de toda a Nigéria ajudam o músico a organizar uma série de performances sobre o evento, e no ano seguinte, o Afrika Shirine é reaberto. Com sua nova banda (a Egypt 80), o músico passaria o ano seguinte ajudando a reorganização da cena artística e política de Lagos enquanto se reestruturava economicamente.
Em 1989, já renomado, realiza o maior show internacional de sua carreira, lotando um estádio com o U2, Santana e outros artistas em uma campanha da Anistia Internacional. No fim do mesmo ano, lança seu último clássico – Beasts of No Nation – mas afasta-se definitivamente dos estúdios na década de 1990. Em 1997, após anos de rumores da ditadura militar de que ele era na verdade homossexual e sofria de uma doença intratável, Fela falece de AIDS. A despeito da ditadura vigente, seu funeral até hoje é um dos maiores da história da Nigéria, com mais de um milhão de pessoas acompanhando seu caixão e bradando os gritos de guerra do eterno presidente da cultura Nigeriana: “Zumbis, zumbis!”
O legado de Fela Kuti
Fela Kuti segue sendo, de longe, o músico mais influente do século passado em toda a África. Mesmo sem ter a fama e a extensão dos grandes nomes do reggae, que também foram popularíssimos em todo o continente na época, o músico por outro lado não sofreria as distorções que esses artistas tiveram sobre sua obra. Dificilmente você encontrará uma música de 12 minutos criticando militares em um comercial de carro, a despeito do que já aconteceu com Bob Marley, por exemplo.
O Afrobeat, a despeito de seu nome seguir pouco reproduzido, tem o grande legado de levar a música e a estética nigeriana para os grandes palcos. Com isso, seu trabalho segue sendo referenciado por toda uma geração que busca fugir do padrão americano-inglês de cultura. Rincon Sapiência, por exemplo, citou a obra de Fela como uma das grandes referências na estética de seu disco “Mundo Manicongo”.
Seus filhos, como Sam Kuti, seguem levando a obra e o Afrobeat para palcos mundo afora. Pude acompanhar um show do Egypt 80 com Sam em 2018 na Virada Cultural de SP. A tensão do centro paulistano, com um público ápatico tentando se proteger do frio, porém, não equivaleram à potente performance do músico. O Afrobeat definitivamente não foi feito para lugares gelados.
Fela Kuti foi um artista revolucionário, que usou sua música como uma poderosa ferramenta de protesto, inspirando gerações de músicos e ativistas. Se Miles recusou o epípeto de lenda viva, Fela, muito mais bonachão e combativo, assumiu-o ainda nesse plano e bradava para quem quisesse ouvir que mudaria a história. E, como pouquíssimos o fez. Contra todas as opressões e os regimes que nos esmagam e exploram, seguimos gritando com rebeldes de mundo afora nas tentativas de repressão: “Zumbis, Zumbis!”.