Esse tal de PIB e você: tudo a ver mesmo?
No início de setembro, o país foi inundado por uma série de boas notícias relacionadas à economia. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), tivemos um crescimento de 1,4% em relação ao trimestre anterior, ou de 3,3% em relação ao mesmo período do ano anterior.
Pode parecer pouco, mas representa quase 1% a mais que as projeções esperadas pelas instituições do mercado, o que, para eles, é bastante. O que, por sua vez, aumenta as expectativas para o crescimento no fechamento de 2024. Algo como 2,7% ou 2,8%.
O noticiário econômico é, em geral, um negócio difícil de entender. Jogam uma sucessão de números, recheiam com declarações de especialistas supostamente surpresos de agências ou universidades servis ao mercado, como uma FGV da vida, e pronto: cria-se um clima de otimismo como, enfim, o Brasil estivesse decolando tal como a já clássica capa da revista britânica Time, com o Cristo Redentor subindo aos céus tal como um foguete, lembra-se?
O que em geral não vemos é a contextualização desse cenário. Quando lemos que o tal do PIB (Produto Interno Bruto) está crescendo, significa que o país está, em média, gerando mais riquezas. No começo do ano, por exemplo, o agronegócio estava bombando. A indústria, os serviços e o comércio, e todo o resto, poderiam estar à míngua, mas toda grana embolsada pelo agro, que hoje incendeia o país, compensava esse resultado que fazia a alegria de meia dúzia de bilionários.
Pois bem, agora, dizem, o tal do crescimento estaria mais robusto, com as famílias consumindo mais, e acompanhado por um crescimento dos investimentos, o que, em tese, garantiria um período de bonança mais sustentável. Investimento significaria a construção ou ampliação de mais fábricas, por exemplo, ou o aumento do ritmo da construção civil, enfim, uma certa base para que o país continue crescendo mais à frente (o que em “economês” chamam de Formação Bruta de Capital Fixo).
O Ilaese (Instituto Latino Americano de Estudos Socioeconômicos) problematiza muito bem esse conceito de PIB (entenda mais aqui), mas vamos considerar os próprios conceitos ditos oficiais. Um crescimento de 2,7%, por exemplo, alardeado como incrível, foi simplesmente a média do que o país cresceu durante os anos FHC, marcados pelo desemprego, desindustrialização e desnacionalização. Já o nível de investimento voltou ao nível de 2022, e está 13% abaixo de 2013.
Mas o desemprego também estaria recuando, constam as planilhas do governo na Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), a uma taxa de 6,8%, o que nos traria de volta a… 2014! Pouco antes de o país mergulhar na maior recessão da sua história. Aqui também, assim como um PIB, existe um problema conceitual sobre o que é considerado desemprego. Principalmente depois da contrarreforma trabalhista de Temer, e às vésperas de o Supremo Tribunal Federal (STF) legitimar a excrescência do “trabalho intermitente”, qualquer coisa virou emprego, e, se você não está jogado na calçada vivendo de esmola, é considerado, sob essa perspectiva, um ativo trabalhador.
Cadê esse PIB?
Os resultados oficiais do PIB, porém, contradizem a percepção da população. Datafolha de agosto mostra que 42% do povo acha que a economia piorou. Levantamento AtlasIntel, também de agosto, mostra que 47% da população considera que o cenário está ruim. Genial Quaest de julho afirma que para 36% dos entrevistados a economia piorou nos últimos meses, e 32% dizem que está tudo igual.
O que explicaria isso? Para o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o mesmo que havia dito que a taxação das blusinhas da Shein não prejudicaria o povo, e que ele só compraria livro na Amazon, a explicação estaria nas redes sociais e numa sórdida campanha “protofascista” contra o governo.
Um renomado professor do Instituto de Economia da Unicamp, Waldir Quadros, uma vez em plena sala de aula, confessou seu método de pesquisa. A primeira etapa tratava-se justamente de andar pelas ruas e observar o clima e o ânimo da população, principalmente da classe trabalhadora. A partir daí, debruçava-se sobre pesquisas, dados e planilhas para confirmar, ou não, sua percepção. Já o governo, o mercado e a imprensa fazem o contrário: a partir de um suposto cenário positivo, tentam convencer a população que está tudo bem, e quem não concordar certamente é um “protofascista” ou alguém sem opinião própria, incapaz de enxergar seu próprio mundo e totalmente influenciável.
A realidade, porém, é que, primeiro, mesmo se considerarmos os índices oficiais do governo, esse suposto crescimento é medíocre, muito aquém das expectativas da população, sobretudo após a pandemia, o desgoverno de Bolsonaro e a eleição de Lula. Mais do que isso, a inflação sobre os produtos da cesta básica, principalmente dos alimentos, afeta em cheio as famílias mais pobres. Algo que deve piorar com as queimadas provocadas pelo agronegócio.
Neste tema, recomendo a recente live realizada pelo próprio Ilaese sobre inflação.
Segunda coisa, índices sobre crescimento, emprego e até mesmo renda não consideram o acelerado processo de precarização, sobretudo após a reforma trabalhista de Temer. Um entregador do Ifood, ou um uber, que precisa trabalhar 2, 3, ou 4 horas a mais por dia para manter uma renda mínima que ganhava pouco tempo atrás, está feliz com a situação, ou é um manipulado pela extrema direita?
Ou os quase 10 milhões de jovens entre 15 e 29 anos, cerca de 20%, que estão sem trabalho e fora da escola, a chamada geração “nem-nem”, tem motivos para comemorar? (Leia levantamento aqui)
A economia melhorou? Certamente, mas não para o povo. Para os banqueiros, industriários e mesmo o agronegócio, não tem mesmo motivos para reclamação. O que não se pode dizer do restante do povo.
PIB sobe, PIB desce, o povo só desce
Agora, veja o dilema absurdo que traz essa dinâmica, no contexto de uma economia capitalista. Diante do que seria um crescimento inesperado, até mesmo em relação aos empregos, o mercado exige o aumento dos juros pelo Banco Central. Os juros são um mecanismo que, sob a justificativa de controlar a inflação, “enxugam” o capital ocioso da burguesia, remuneram a taxas escorchantes e, na prática, limitam e encarecem o crédito no mercado. Quem vai colocar seu dinheiro na praça se pode deixá-lo engordar nos cofres do governo, às custas do dinheiro da Saúde e Educação? Ou seja, é uma medida consciente para dar uma brecada no crescimento, aumentar a dívida pública e encher ainda mais os bolsos dos banqueiros, que detêm esses títulos.
Lembra-se da grande briga de Lula com Campos Neto, acusando-o, com toda a razão, de sabotar o crescimento para enriquecer os rentistas? Pois bem, Campos Neto termina seu mandato no final do ano e o indicado por Lula ao cargo, o também banqueiro Gabriel Galípolo, já vem avisando que, com ele, não tem essa de juros baixos não. Já avisou ao mercado que, sob o seu comando, o céu é o limite para os juros. “Ter medo de juros no Banco Central é como ser açougueiro e ter medo de sangue“, chegou a dizer a um seleto grupo do mercado. O sangue aqui, evidentemente, não é o dele, nem dos executivos, CEOS e banqueiros que o ouviam.
Trocando em miúdos, o que seria uma aceleração da economia e a redução do desemprego, com o consequente aumento da demanda, ou seja, as pessoas comprando mais, é visto não como algo bom, mas como um problema para o mercado e o Banco Central, e, inclusive, o indicado por Lula. E isso porque a função do Banco Central, hoje “independente” (ou controlado diretamente pelo mercado financeiro), segundo a própria legislação, seria também a de proteger os empregos. Mas o emprego para o BC é um problema, não uma solução. Uma maluquice, não?
Do outro lado (ou do mesmo lado), temos o governo comemorando esses índices. Ao mesmo tempo, representantes do Ministério da Fazenda já indicaram a intenção de aproveitar essa suposta despiora da economia para avançar em projetos como a desvinculação dos pisos constitucionais da Saúde e Educação, incompatíveis com o arcabouço fiscal, além, da desvinculação de benefícios sociais e previdenciários do salário mínimo. Ou seja, seria uma oportunidade para avançar em mais ajuste fiscal e ataques históricos à classe trabalhadora.
Na semana passada, a Câmara já aprovou a proposta do governo de um corte de R$ 6,6 bilhões no Benefício de Prestação Continuada (BPC), um benefício pago a idosos carentes e pessoas com deficiência, que deve atingir mais de 670 mil pessoas. Um parêntese importante aqui: com os votos da bancada do PSOL.
Sem saída dentro deste sistema
Voltando ao tal do PIB. Ainda há, no âmbito do mercado, uma discussão sobre o crescimento da economia, sua real proporção, causa e sustentabilidade. No governo, discute-se como aproveitar isso para avançar no arcabouço fiscal e nas desvinculações de benefícios sociais, o que era, aliás, o sonho de Paulo Guedes, o superministro de Bolsonaro.
O que, sim, é certo, é que a classe trabalhadora vai continuar perdendo. Em tempos de crise, os ataques recaem sobre a população. Já o contrário, quando a economia supostamente cresce, ela cresce para alguns, e vira um problema para o mercado, e a classe trabalhadora também sai perdendo. E para o governo, é uma oportunidade para ataques mais estruturais.
Não há saída para os trabalhadores, portanto, por dentro desse tal de PIB, assim como não há saída por dentro do capitalismo.