Eloah e Wendel: duas vítimas mais recentes de uma polícia responsável por metade das crianças atingidas por arma de fogo no RJ
Começamos o dia com mais uma notícia triste e revoltante. Eloah Passos, de apenas 5 anos, e Wendel Eduardo, com 17, são as duas mais recentes vítimas da violência policial (e, inegavelmente, racista) do Rio de Janeiro.
Ambos eram moradores da Ilha do Governador, na Zona Norte da cidade. Wendel foi fuzilado na garupa de uma moto, durante a madrugada. Eloah foi morta dentro de casa, enquanto brincava, pulando em cima da cama, uma forma de diversão (que todo mundo que cresceu na periferia e nas quebradas sabe) que é típica de quem não tem opções ou espaços para o lazer.
“A viatura da Polícia passou mandando tiro. Foi na hora que eu ouvi o estalo na janela. Quando fui ver, ela estava caída em cima da cama. Estava sentindo muito dor. Eu tentei reanimá-la, mas não teve mais jeito (…) A gente acha que nunca vai acontecer com a gente, mas quem mora na favela sabe que qualquer hora pode acontecer”, disse à imprensa Ana Cláudia da Silva, de 31 anos, mãe da criança, em meio ao desespero pela perda.
A interrupção precoce e violenta da vida dos dois não foi entrelaçada pelo “destino”; mas, sim, pela brutalidade policial e o uso da força letal como formas de controle social. O tiro que atingiu Eloah foi disparado contra os manifestantes que, naquele momento, protestavam contra a execução de Wendel.
Horas depois dos crimes, a Secretaria Estadual da Polícia Militar do Rio de Janeiro afastou o comandante do 17º BPM (Batalhão da Polícia Militar), na Ilha do Governador. Uma medida que está muitíssimo longe do que é necessário. É preciso dar um basta ao genocídio da juventude pobre, preta e periférica.
48% das crianças vítimas de tiroteio foram atingidas por tiros da polícia
O assassinato de Eloah e Wendel ocorreu um dia depois da divulgação de um levantamento estarrecedor feito Instituto Fogo Cruzado, e publicado no portal “Futuro Exterminado”, revelando que, nos últimos sete anos, 601 jovens foram vítimas de tiroteios no Grande Rio. Desse total, 267 foram mortos e 334 feridos, sendo 78% adolescentes.
Do total, 48% (nada menos que 286 crianças) foram atingidas durante ações policiais, resultando na morte de 112 delas e deixando outras 174 feridas, muitas delas com graves sequelas para toda a vida. Números que, evidente e lamentavelmente, devem ser ainda maiores, já que as ações policiais, além de se mesclarem às milicianas e paramilitares, costumam ser encobertas pela impunidade.
Ao comentar o resultado do levantamento, Cristina Oliveira, diretora do “Futuro Exterminado”, foi categórica: “Em nenhum lugar do mundo tantas crianças são baleadas sem que a sociedade se indigne. Aqui não pode ser diferente (…). A história do Rio de Janeiro é marcada por crianças e adolescentes mortos e feridos. A gente sabe que não são casos isolados. Ágatha Félix, Maria Eduarda, João Pedro, Kauã, Alice, Emilly e Rebecca. Todo mundo lembra de um destes nomes”.
Somente este ano, 16 crianças com até 14 anos já foram baleadas no estado. Doze delas vítimas de “balas perdidas”, que, não por acaso, quase sempre “encontram” corpos pretos, pobres e periféricos.
Lula, não é “despreparo”! É política de Estado!
Na quinta-feira, dia 10, Lula esteve em um evento com o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), e fez um discurso que os apoiadores do presidente petista qualificaram como “crítico” ao bolsonarista e de exigência de mudanças na atuação da polícia carioca.
“Para isso, ela tem que estar bem informada. E eu não estou jogando a culpa em nenhum governador. O governo federal tem que assumir a responsabilidade de ajudar os governadores no combate à violência porque o crime organizado está tomando conta do país. A gente não pode culpar a polícia, mas tem que dizer que um cidadão que atira em um menino que já estava caído é irresponsável e não estava preparado do ponto de vista psicológico para ser um policial”, disse Lula.
Mas, convenhamos, no que este discurso difere do que tem sido dito por sucessivos governantes (municipais, estaduais e federais) sobre o tema, inclusive os localizados na extrema-direita do espectro político?
Afinal, culpar o “crime organizado” (ou a “guerra às drogas”) é um dos lugares comuns mais enfatizados para “justificar” a violência policial e do Estado. Isentar os governadores de qualquer irresponsabilidade, então, é pura hipocrisia, já que são eles os comandantes diretos das forças de repressão.
E, ainda, falar que não se pode culpar a polícia é simplesmente inadmissível. Como também, falar em “despreparo” é, no mínimo, um contrassenso histórico, já que nossas polícias são conhecidas por seu treinamento, inclusive sob a orientação de governos e instituições estrangeiras, a começar por Israel e os Estados Unidos. E pior: carregam todo o “preparo” e nefasta e criminosa tradição da ditadura militar, um entulho que nunca foi desmontado, inclusive pelos governos petistas.
Lutar por sociedade em que possamos viver plenamente
Por isso mesmo, é preciso muita “boa vontade” para entender a fala de Lula como crítica ao bolsonarista. Infelizmente, ela soa muito mais como uma desculpa para a conivência do petismo com situações que em nada diferem daquilo que estamos vendo no Rio de Janeiro, na Baixada Santista e país afora, como denunciamos no artigo “Chacinas da polícia deixam rastro de sangue pobre e negro”, publicado na última edição do “Opinião Socialista”.
“[Na Bahia], estado governado há 16 anos pelo PT, pelo menos 19 pessoas foram mortas pela polícia, somente entre os dias 28 de julho e 1° de agosto. As chacinas ocorreram em Salvador, Itatim e Camaçari (…). Dados apontam que a Polícia Militar da Bahia é a mais letal do Nordeste. Segundo relatório de 2022, da Rede de Observatórios de Segurança, a cada 100 mortos pelas forças policiais baianas, 98 são negros e, lá, somente no ano passado, a PM matou 1.464 pessoas, representando 22,7% do total das 6.430 mortes registradas no país”.
Pelo mesmo motivo, só é possível concluir este artigo repetindo algo que foi escrito por Zé Maria, em outra matéria publicada na última edição de nosso jornal (“Uma guerra contra os pobres”):
“Não temos dúvida de que, enquanto houver capitalismo, as instituições policiais vão estar sempre a serviço da defesa do sistema, contra a população. Numa sociedade governada pelos trabalhadores a segurança pública não será exercida dessa forma e sim através da auto-organização da própria população. No entanto, isso não pode nos impedir de lutarmos por mudanças desde já, não podemos simplesmente continuar assistindo cenas como essas que vimos nas chacinas mais recentes”, escreveu o companheiro.
Uma luta que passa pela nossa auto-organização e autodefesa, no combate necessário “para acabar com toda forma de opressão e exploração a que somos submetidos no capitalismo. Na luta por uma sociedade socialista onde possamos, todas e todas, vivermos plenamente, como seres humanos que somos”, como concluiu Zé Maria. Uma sociedade onde nossas crianças e jovens não tenham o seu futuro exterminado.