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“É uma vitória em honra daqueles que tombaram na luta e derramaram seu sangue em prol dessa luta”

Jeferson Choma

8 de agosto de 2024
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Iriomar em assembleia da comunidade. Fotos Jeferson Choma

O Maranhão é recordista em conflitos agrários no campo brasileiro. De acordo com os dados publicados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre 2015 e 2021, foram registrados 1.172 conflitos por terra no estado, envolvendo 112.504 pessoas. Somente em 2019, foram 173 casos, quando o Maranhão ficou na liderança desses conflitos no país. Em 2020 ficou em segundo lugar, com 203 casos registrados; e, em 2021, em terceiro, com 97.

Uma das regiões mais conflitantes é a Baixada Maranhense, cuja paisagem é única e faz parte da Amazônia Legal brasileira. Formada por lagos e campos sazonalmente alagáveis, a região abriga territórios quilombolas, indígenas e camponeses, cujo modo de vida é caracterizado pela agricultura de subsistência, na pesca realizada em seus inúmeros lagos e nos campos utilizados coletivamente pelas comunidades. Devido aos seus complexos ecossistemas, boa parte da região forma a Área de Proteção Ambiental (APA) da Baixada Maranhense. Contudo, nos últimos anos esses territórios estão ameaçados pela expansão da criação de búfalos, pelo cercamento realizado ilegalmente por fazendeiros e grileiros de terras, bem como por iniciativas dos governos de criar portos e ferrovias para beneficiar o agronegócio e a exportação de minérios, além de projetos para incentivar a criação comercial de camarão, cujo impacto ambiental é imenso.

Além disso, o governador Carlos Brandão (PSB) sancionou a Lei 12.169/2023, que tem sido chamada de “Lei da Grilagem”, que favorece os latifundiários e ainda suspende a regularização fundiária das terras tradicionalmente ocupadas por população quilombola, quebradeiras de coco e demais comunidades camponesas tradicionais.

Um dos conflitos mais graves da Baixada ocorre na comunidade de Flexeiras, no município de Arari, onde camponeses lutam contra o cercamento e a grilagem de seus campos de uso comum desde 2018. A reação contra a resistência camponesa foi bárbara, com muitos moradores presos e lideranças assassinadas. Mas, no final de julho, a comunidade obteve uma importante e exemplar vitória, quando a Justiça reconheceu a posse camponesa do território. 

Para falar sobre a situação, o Opinião Socialista entrevistou Iriomar Teixeira, do movimento Fórum e Redes de Cidadania do Maranhão e advogado dos camponeses.

A Justiça reconheceu a posse dos camponeses sobre os territórios da comunidade de Flexeiras, em Arari, na Baixada Maranhense. Por que isso é importante?

Iriomar Teixeira – Porque reconhece um direito já sedimentado na consciência do povo camponês de Flexeiras, em Arari. É um reconhecimento daquilo que os camponeses já têm plena consciência, porque já estão lá há séculos e vivem da terra, moram e produzem nessa terra.

É importante porque o próprio Estado reconhece, através do Poder Judiciário, que é um poder distante do povo, um lugar de privilégio. Esse reconhecimento veio agora por meio da Vara Agrária, que é uma vara aqui no Maranhão, especializada em conflitos fundiários coletivos. É o reconhecimento da voz dos camponeses, da posse legítima dos camponeses.

Mas esse reconhecimento é fruto de muita luta das organizações do povo, por seis anos. Foram muitas as lutas. Mobilizações e atos das comunidades denunciando a invasão do latifúndio e, ao mesmo tempo, reclamando dos poderes do Estado.

Comemoração em Flexeiras após decisão da Justiça

Nesses seis anos teve muita luta e organização dos camponeses e um forte enfrentamento contra muitas autoridades, inclusive houve assassinatos, tentativas de assassinatos, criminalização e prisão de dezenas de camponeses. Conta para a gente um pouco dessa história.

Como é recorrente no Brasil, a comunidade foi vítima da grilagem de terras. Aqui foi isso. Um homem chamado Raimundo Nonato, latifundiário bastante conhecido na Baixada Maranhense, promoveu essa grilagem.

Houve a invasão à terra dos camponeses e, ao mesmo tempo, essa pessoa acionou o Estado dizendo que aquela posse era dele. E no primeiro momento, o juiz da Comarca de Arari concedeu uma liminar de manutenção de posse em favor desse grileiro, e mandou uma grande quantidade de policiais que invadiram a comunidade para que os camponeses não tivessem acesso à área. Isso foi no início de 2018.

Mas, mesmo assim, o povo não se intimidou nessa luta. Resistiram e não baixaram a guarda. Enfrentando situações e realidades muito parecidas com a de Flexeiras, essa resistência foi se espraiando no território da Baixada Maranhense, porque outras comunidades também foram se encorajando com esse exemplo dado pelo povoado de Flexeiras. Também houve atos de rua, denúncia no Ministério Público, na Delegacia de Polícia.

As autoridades de Arari não deram nenhum encaminhamento às nossas denúncias. Começou a ter um processo de criminalização muito grande das comunidades, das lideranças e dos lutadores.

Para você ter uma ideia, em 2019 foram decretadas várias prisões de camponeses. Também tiveram medidas judiciais restritivas proibindo as pessoas de transpor as cercas. Abusos de autoridade policial que, inclusive, pediam a proibição do direito de se reunir. Ainda assim, o povo continuou com a moral muito alta e avançando na retomada dos territórios roubados pelo latifúndio.

Em quatro anos foram oito ataques que terminaram em seis homicídios de camponeses. Foi um banho de sangue, na verdade. Por isso essa vitória significa tanto. É uma vitória em honra àqueles que tombaram e derramaram seu sangue em prol dessa luta.

Comunidade de Flexeiras

Por que a região da Baixada Maranhense, que abriga camponeses, povos quilombolas e indígenas é palco de tantos conflitos agrários?

A Baixada é marcada pelos campos alagados. É também uma região bastante rica, com pastagem e terras férteis. É um espaço muito bonito para o turismo. Nos últimos anos ela tem se tornado palco de muitos conflitos, porque há um interesse muito grande do latifúndio nesta região. E isso tem um incentivo do próprio governo, que desenvolve grandes projetos de criação de camarão, de peixe.

Além do mais, tem a duplicação da Ferrovia Carajás, que vai cortar a parte da Baixada até chegar perto da base militar de Alcântara, onde querem criar um novo porto. É por isso que as terras, do ponto de vista econômico, estão ganhando um valor muito alto. Obviamente que isso tem despertado o interesse de empresas e de grandes latifundiários na região.

Inevitavelmente vai haver conflitos. Porque os camponeses vivem dessas regiões e, às vezes, é até difícil de as pessoas entenderem. Na verdade, elas têm outra relação com uma região muito alagada. As pessoas moram nas ilhas, e esses grandes campos que muitas vezes as pessoas olham, pensam que está desabitado, fazem parte da posse camponesa, porque é uma posse um pouco pendular. As pessoas passam o dia no campo e à noite voltam para as ilhas, que são os pontos mais altos da Baixada. Por isso as pessoas pensam que é terra de ninguém. Mas, na verdade, é outra forma de relação que se tem com essa terra, com esses territórios.

E como você mencionou, tem bastante povos. Povos indígenas, o povo negro, as comunidades camponesas e pescadores. Por isso é uma luta muito importante. A Baixada está dentro de uma Área de Preservação Ambiental. Por isso também há uma luta muito grande, e levanta essa bandeira da preservação, porque é uma área importante do ponto de vista ambiental. É rota de aves de várias partes do continente, do mundo que vem se reproduzir aqui.  

Você falou dessas obras de infraestrutura que o governo vem planejando, em particular para a Baixada. Fale um pouco mais sobre esse porto que está sendo construído na Ilha do Cajueiro, próximo de Alcântara. Que tipo de impacto isso pode acarretar sobre as comunidades da Baixada?

Os impactos serão de várias ordens. Tanto do ponto de vista econômico como do ponto de vista ambiental e social. Vários territórios serão cortados ao meio. O governo estadual e o Governo Federal promovem esses grandes empreendimentos sem discutir com a população, sem fazer esse debate público com a sociedade e as comunidades afetadas.

Projetos, como sempre impostos goela abaixo para beneficiar uma meia dúzia, e para retirar commodities do nosso país. Como disse o grande escritor Eduardo Galeano, as veias abertas que continuam a jorrar sangue. Construir portos aqui no Maranhão facilita as exportações porque fica muito mais próximo da Europa, via marítima. Isso tudo, claro, para beneficiar os grandes, os ricos deste país, de maneira particular o agronegócio.

Os governos não respeitam sequer a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, que exige a consulta dos povos e comunidades tradicionais afetados por esse tipo de obra?

O Estado brasileiro é reiteradamente descumpridor dessas medidas, tanto no que se relaciona ao meio ambiente quanto ao trabalho escravo. Ainda que faça um discurso avançado pra fora, dentro nós sabemos o que acontece. Veja a destruição do Cerrado, da Amazônia. Agora, o incêndio na região do Pantanal.

No dia a dia, nós sabemos o que acontece. A prova disso é a própria Base de Alcântara, que tem criado conflitos permanentes com dezenas de comunidades quilombolas. As comunidades não têm espaço de debate.

Mas, se houver a organização do povo, é possível ter conquistas. Prova cabal é essa decisão e a vitória em Arari. Às vezes, é muito tempo e tem um preço muito alto para o povo. Vencer no Brasil, infelizmente, é assim.

Comunidade quilombola da Baixada Maranhense

O governador Carlos Brandão, em dezembro do ano passado, promulgou a Lei 12.169. Por que essa lei pode agravar ainda mais os conflitos agrários no Maranhão, em particular na Baixada?

Essa nova lei é, na verdade, só mais um instrumento para legitimar o roubo. Ela vai possibilitar a entrega do restante das terras públicas que ainda existem no Maranhão para o latifúndio. Esse é o objetivo principal dela. Em 1940, no Maranhão, praticamente 90% das terras eram públicas. Nos anos 1960, o então governador José Sarney editou a Lei de Terras do Maranhão e entregou enormes extensões de terras públicas às empresas, ao latifúndio e à grilagem. Isso resultou no massacre de camponeses, na violência e na expulsão das comunidades.

 O governo Brandão vai ampliar o conflito com essa nova Lei de Terras do Maranhão. Foi a Assembleia Legislativa que aprovou essa lei na calada da noite, que era proposta de um deputado envolvido em vários escândalos. Isso evidencia também que a Assembleia Legislativa do Maranhão é declaradamente inimiga do povo e, principalmente, do povo da terra.

O objetivo da lei é liquidar as terras públicas. Anteriormente se reconhecia o direito de posse de até 200 hectares. Mas agora isso foi ampliado para 2.500 hectares, permitindo a regularização fundiária de cada área individual. Isso vai permitir que o latifúndio possa ter reconhecidas terras que foram apropriadas ilegalmente.

E como os movimentos camponeses, quilombolas e indígenas do Maranhão devem reagir a essa lei?

Primeiro, derrotá-la. Não tem outra forma. E o governo já deu demonstração de que não vai revogá-la com diálogo. A única forma de se derrubar a lei é através da pressão popular. Os movimentos populares, especificamente aqueles que atuam no campo maranhense, devem assumir isso como uma bandeira, e pressionar o governo até que a lei seja revogada. Ou então as consequências serão drásticas aqui, com aumento dos conflitos, dos assassinatos, das ameaças e das milícias que têm crescido no campo.

Como você avalia a política agrária e ambiental do atual governo federal em comparação com o governo anterior? Você acha que tem diferença?

Acho que comparar qualquer coisa com o governo Bolsonaro, um governo de extrema direita, não é um bom parâmetro. Acho que do ponto de vista do discurso, claro, é outro patamar. Mas, do ponto de vista da efetivação, não há muita diferença. Eu acho que é uma agravante. Porque de Bolsonaro ninguém esperava nada.